Passageiros aguardam a partida do Ivanaldo III. Porto de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas. Janeiro de 2017

Río arriba, Río abajo

3600km de barco pelos rios amazônicos — segunda parte

Guilherme Mendes

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Mas, antes de voltarmos ao barco, duas semanas e meia em São Gabriel

A man walks down the street
It’s a street in a strange world
Maybe it’s the third world
Maybe it’s his first time around
He doesn’t speak the language, he
Holds no currency
He’s a foreign man
He is surrounded by the sound, the sound
[Paul Simon, em “You Can Call Me Al”]

…Desejei um feliz natal pra todo mundo ali mesmo, mas o problema persistia: não tínhamos noção de como alcançar a cidade de São Gabriel da Cachoeira, distante 26 longos quilômetros. Como que a situação pedia uma decisão extraordinária, os diversos caminhões carregando os produtos da lancha podiam ser a resposta. Um oficial da marinha polidamente se desculpou, pois sua picape estaria cheia de oficiais quando partisse; um caminhão não deu muita bola para meu pedido e apenas uma picape acenou com um talvez, caso sobrasse espaço. Nos agarramos a este talvez — e meia hora depois o motorista, materializado em nossa frente, nos convidava a subir na caçamba.

Não que houvesse muito espaço: além de uma lotação anormal de frutas e verduras, o caminhão em si já levava dois na cabine e dois na caçamba. Subimos eu e meus dois companheiros de viagem nos fundos, encaixamos nossas grandes mochilas (a minha ficou sobre o que parecia ser um enorme saco de pimentões amassados) e subimos. A cena — gravada no meu celular e, portanto, recuperada depois de meses — mostra dois homens sentados no teto da cabine da caminhonete de marca ignorada pelo repórter; meus amigos sentados de alguma maneira no fundo da caçamba; e eu, de pé, um pé sobre uma caixa de frutas e outro na grade de madeira, me segurando com uma das mãos nas cordas que prendiam uma torre de caixas de isopor.

Com uma das mãos — a outra tirava fotos.

https://www.youtube.com/watch?v=X90jc6mJQ-o

A estrada era uma materialização do que era repetido por anônimos desde Manaus: a estrada parecia uma grande trincheira. O prefeito de São Gabriel, prestes a deixar o cargo, meio que desistiu de cuidar do asfalto bem antes do esperado — e as vias locais eram um desastre real. Mesmo assim, a Amazônia Profunda, com suas maiúsculas conquistadas não por acaso, vai passando aos poucos: primeiro alguns pequenos lagos, com duas ou três dezenas de metros de diâmetro, que mais parecem buracos feitos por meteoros; depois as primeiras casas, habitadas por indígenas e suas redes estendidas na entrada; como era uma tarde de sol, crianças jogavam bola no areal sob uma luz incrível. Em um dado momento, pórticos do Exército aparecem, e soldados jovens, magricelas e entediados estão de plantão em sua entrada, fuzis em punho.

Chegamos na cidade — e, mesmo que não fosse preciso, trocamos a carona pelo desembarque toda a carga num mercadinho. Ganhamos uma garrafa de água estupidamente gelada e um “Bem vindos à São Gabriel” da proprietária.

Pais e filhos na praia de São Gabriel

E então, senhoras e senhores, alcançamos o canto do Brasil.

Se Santa Isabel do Rio Negro, que passamos logo no relato anterior, tem 62.000km² e é do tamanho da Croácia, São Gabriel, com seus 108.000 km², é do tamanho de Cuba — a terceira maior cidade do país. Mais que isso, a cidade impressiona geograficamente em tudo: o formato da cidade, com suas divisas com Colômbia e Venezuela, lhe rendem o apelido de “Cabeça de Cachorro” — abra o IGBE e veja a boca do bicho aberta. Nela. é possível chegar a vilas a quase 360 km do centro da cidade, uma viagem de quatro a cinco dias, acessível apenas de barco, ou duas horas de avião. A BR-307, planejada para cortar a Amazônia de sul a norte na época da ditadura, corta o município de sul a norte — é a única rodovia federal brasileira a passar por apenas um município. Mesmo assim, quase a totalidade do município é coberta pela densa floresta, e sua população é minúscula para seu tamanho: 43.800 habitantes, sendo uns 3% de brancos e 7% de membros do Exército, numa estimativa de um funcionário de carreira da saúde no município.

A maioria de brasileiros ali são eles mesmos, os verdadeiros filhos deste solo e mãe gentil. Nove em cada 10 moradores da cidade são indígenas, índio mesmo — daqueles que a gente vive prometendo devolver a terra e pedir desculpas toda vez que um escândalo político estoura. Se se debruçar nas estatísticas é interessante, a realidade é muito mais legal e perturbadora — para isso, vamos pular a estadia no hotel, a ceia de natal estrelando macarrão com linguiça,o primeiro passeio na praia do Rio Negro e vamos direto pra manhã de natal. A alegoria sobre essa cidade se passa na sua downtown.

Apesar do tamanho gigantesco, a área “urbana” da cidade se resume a quatro pequenos bairros — e o centro per se está concentrado na Avenida Castelo Branco, uma alameda de pouco mais de uns 800m. Nela se concentram os dois bancos da cidade (um Bradesco e um Banco do Brasil); o principal hotel da cidade (O Deus Me Deu) e as lojinhas que vendem de tudo um pouco — roupas, presentes, brinquedos, redes. E há o mercado municipal — a única coisa aberta nessa hora de almoço desse 25/12. Peixes à venda sobre caixas de isopor, um balde de piranhas, suco de cupuaçu natural a R$2 o copo, num terceiro mundo mais vazio que Manaus. E índios, muitos índios — aliás, eu e meus amigos somos o que parecem ser os três únicos turistas na cidade, alvo de olhares curiosos de todos esses indígenas.

Tudo ganha contornos de certa forma cômicos: A Irina, a jovem destemida que nos acompanha, é uma russa de 26 anos, a pele clara como era de se esperar, o rosto de feições bem definidas — mas porra, ela é uma russa. Eu, com um shorts, tinha todas as tattoos à mostra. O Sérgio, o brasileiro e namorado da Irina, até parecia bem discreto, onde ele poderia muito bem se passar como um militar de folga que esqueceu de tirar apenas uma parte da roupa de trabalho. Mesmo assim, comparados com um tukano ou um baniwa, parecíamos três suecos ou algo assim.

O engraçado da alegoria toda devolvermos a eles o mesmo olhar curioso — pois eles mesmos são tão diferentes quanto um brasileiro e um sueco: não sei se já te contaram, mas aquela selva congrega 23 etnias indígenas de quatro troncos diferentes, tornando aquela região num verdadeiro caldeirão étnico. Há os mais e menos índios, os com cara de mais ou menos peruanos, uns que estranhamente se parecem naturalmente mais pobres que outros, e por aí vai.

E a música que sai do mercado, vindo de uma das barracas de peixes, é um forró. Me recuso a transcrever a letra, pois nem ao menos sei que idioma era cantado — a organização indígena que representa as etnias da região fala em sete idiomas locais, mas eu mesmo conheci mais de 15 durante a viagem.

Uma cidade com pouca comemoração no natal (o IBGE não diz nada, mas a eles são evangélicos até o talo), onde sou vítima de olhares curiosos pras minhas tatuagens e ouço um forró cuja letra não reconheço: eis como brasileiros podem se sentir estrangeiros no próprio Brasil.

Barraca de peixes no mercado municipal de São Gabriel da Cachoeira.

Essa sensação é partilhada comigo por dois membros do Exército Brasileiro, mensalistas no modesto hotel à beira-rio onde nos hospedamos. Serão a “Doutora” e o “Doutor”. Ela é realmente doutora, uma médica gaúcha de Santa Maria de personalidade forte e que, contrariando as regras do hotel, fuma em local fechado e não larga o cigarro nem mesmo na hora de mexer o arroz (arroz de bituca, uma especialidade da casa). Ela me diz, num tom que você pode julgar irônico ou não, que ela “sempre quis trabalhar no Exército Brasileiro, mas não esperava ser mandada ao exterior”. O Doutor assim o é não pela sua formação médica (ele é um psicólogo cheio de livros de psicanálise no carro), nem pelo doutorado: um sargento de brigada afastado por doença e dono de um humor tão genial e amargo que uma comparação com o dr. House aqui não seria hipérbole.

Num fim de tarde onde a Doutora prepara as malas para voltar para casa (e rever a Chica, sua macaquinha de estimação), andamos eu e o Doutor pela beira do Rio Negro, a praia de areia alvíssima e com o Sol refletido na água, tornando os poucos banhistas apenas uma silhueta da luz dupla. As montanhas incrustadas de árvores ao fundo. As cachoeiras que dão nome à cidade — corredeiras, na verdade — espumando a água e tornando-a corrente e fresca. Enfim, a cena toda parece uma breve descrição do Paraíso, e metafisicamente isso se materializa como o Paraíso, um platô alcançado depois de muito esforço e ar-condicionado congelante. Uma recompensa justa e à altura de todos os sapos engolidos na vida parece ver o céu endurecer-se em tons de vermelhos cada vez mais violentos. O que pouco importa: isso tudo aparentemente deixa o Doutor entediado como o Diabo. Talvez o tempo nas Forças Armadas — duas décadas, ele me conta — o fez ficar com a sensação de que o povo brasileiro é corrupto, que o índio é preguiçoso, que a política não tem salvação, que o Exército não vai pra frente. Ele então se cansou “dessa merda toda”. Por isso aquela cena atinge uma ironia diga do melhor Philip Roth: enquanto a aposentadoria dele não sai, ele aguarda todos os dias, caminhando pela orla da cidade duas vezes por dia (com menos de quinhentos metros, a beira-rio é a uma das duas atrações turísticas dali). Naquele pôr-do-sol desgraçadamente maravilhoso, ele parece mentalmente resmungar que a sorte o deixou naquela situação — num Paraíso quase intocado desde o Gênesis, com um bom salário, sem nada pra fazer da vida. Fica aí uma boa lição sobre o tédio.

Se passam algo como duas semanas e é a segunda-feira depois do dia de reis.

Os eventos que ocorrem nesses 14 dias anteriores foram protagonizados numa comunidade indígena a cerca de 75km da cidade, são incríveis demais e fugiriam ao escopo desse relato. Você irá lê-lo em outro lugar e outra hora, eu garanto (EDIT: já disponíveis aqui). Mas só posso dizer que volto outra pessoa — mais bronzeado, com uns dez quilos a menos, um conhecimento inacreditável mas ainda minúsculo sobre a vida na mata e a organização indígena. Mas é bom voltar à civilização (quando se fica duas semanas sem ao menos sinal de telefone, esperando uma ligação no único orelhão da Telemar em quilômetros, vai por mim, uma cidade menor que meu bairro vira “A Civilização”) e também é muito bom retornar ao Wi-fi do mercado no centro (que eu piedosamente pedi a senha emprestado e que, para usar, passava tardes sentado na calçada).

A viagem passa do meio e me exige cuidados. A lista de coisas inutilizadas até aqui é alta: filtros solares (esquecidos em algum lugar, repostos por um outro que nem usei), uma bermuda (minha única bermuda jeans, esquecida em Manaus), um cartão de crédito do Bradesco (esquecido em casa) e meu relógio de pulso (que caiu e apagou). Meu Spotify precisa ter seus 14Gb de música baixada de novo e o Tinder eu nem sei mais como anda. Pouco a pouco, como um polvo, sou puxado pelos tentáculos da vida moderna e minhas preocupações se aceleram, e a sensação de ver as mensagens pipocando no celular é como ter de um chocolate amargo na boca.

Mas a Expedição Amazônia precisa seguir, preciso voltar pra Manaus o tanto quanto antes e — minha nossa, nem falei do barco ainda né? Sem voos regionais baratos nem voos gratuitos do Exército saindo da cidade, me restou ficar com meus já velhos amigos de viagem nesse ponto de ônibus. São 5h27 da manhã da terça, e a lenda garante que às 5h30 o ônibus em direção ao porto vai passar. A cidade é tão silenciosa que às 5h33 podemos ouvi-lo a três quadras de distância. Às 5h34, com um só farol ligado, sem iluminação interna, um verdadeiro prenúncio de desastre por R$4,50, embarcamos. Além daquele táxi por 70 pilas (se eu não podia antes, imagina agora), esse é o único que nos levará de volta ao porto do Camanaús antes do barco partir. Até procurei, mas não tem caminhão de frutas pra ajudar.

Agora sim: de São Gabriel da Cachoeira a Manaus, Rio Negro abaixo: 1150km em 49h30

O bilhete, adquirido por outros R$390, diz em letras azuis no canto que o B/M Gênesis é “O Mais Veloz do Rio Negro”. Mas quando o Expresso Waupés finalmente alcança o porto, e o nascer do sol é mais um espetáculo natural desses da floresta, descobrimos que vamos de Ivanaldo III, um barco de madeira de três conveses — um deles descoberto. O Gênesis, por alguma razão até o momento desconhecida, ficou em Manaus.

O que diferencia os barcos de madeira das lanchas é, essencialmente, seu tamanho — apesar de carregar apenas apenas 40 ou 50 pessoas a mais, a capacidade de carga é maior e, com isso, o rendimento não é tão bom. Mas já me sinto aliviado de não ver aparelhos de ar-condicionado e de poder, desde a nossa chegada bastante adiantada, atar a minha rede numa posição privilegiada, o mais longe possível do estrondoso motor. As minhas duas malas ficam num estrado abaixo da rede e, antes das sete da manhã, posso me deitar e terminar os últimos capítulos de Pulphead: o outro lado da América, livro de ensaios do John Jeremiah Sullivan que trouxe para reler aqui no Norte. Tudo organizado, bonito, os pássaros matraqueando, e ainda falta menos de uma hora por embarque. Eu posso dormir até acordar aqui. Deus, se existe, é um cara legal. E ao fundo, um barulho de motosserra começava a ficar mais e mais alto.

Mais e mais alto.

Mais e mais alto.

Até o ponto de ela sentar na rede do meu lado.

Ok, não se trata de uma motosserra, mas de um caso mais complexo: uma garota de uns sete anos de idade, com um gravíssimo transtorno de hiperatividade, e cujas ferramentas de comunicação não vão além de grunhidos altíssimos (daí seu maldoso apelido dado por mim). Enquanto o barco se atrasa para sair — já são quase 9 da manhã — a garota chuta a rede onde está deitada enquanto tenta se ajeitar. Como a distância entre cada uma das esteiras é mínima, a pernada da garota (que não é nada pequena, registre-se nos autos) me acerta em cheio, e meu balanço vai atacar as outras redes em cascata, como um bilboquê. Deus, se existe, é como goleiro em cobrança de pênaltis — não devia tê-lo elogiado antes da hora. E os chutes vão num crescendo, quinze minutos de pontapés violentos que eu recebo nas costelas, apenas pelo fato de que considero menos perigoso que recebê-los nas costas e mais digno que suportá-los na barriga.

Agora voltaram os gritos. Alguns que dormiam em outras redes acompanham o espetáculo e a mãe, sentada no gradil do convés, está inerte atacando um caça-palavras. Os gritos aumentam e agora junto com os chutes me fazem contar até dez e eu juro que se esse taekwondo não acabar no dez eu -

Aqui rapidinho: você já viu alguém tomando morfina? Tipo, na veia mesmo? Aquela dose forte de opioide direto no sangue, que abstrai até as dores mais violentas? A morfina que tira a dor de tantas guerras, que virou a heroína das cracolândias por aí? Pois bem, eu nunca vi — mas posso dizer que vi uma criança recebendo um smartphone. Mais que isso: que eu vi essa criança, a moto-serra chorona e violenta, receber da irmã mais velha um celular já carregado no clipe de “Bad Romance” da Lady GaGa e então, como um fenômeno inexplicável, simplesmente se aquietar — se aquietar não, simplesmente colapsar. Como se o celular fosse uma garrafa pet de morfina, a violência bruta de um corpo se debatendo e esperneando alto foi contida com uma tela sensível ao toque. Tudo — do caos até a estase — dura uns cinco segundos, e é uma cena que nos faz pensar muito no futuro da humanidade e, nem que por um instante, pensar que isso é muito Black Mirror. Tudo volta a um silêncio — na verdade apenas ao barulho do mesmo clipe da Lady GaGa — e finalmente planejo dormir.

Vilma S.

A Vilma estava no mesmo hotel que eu em São Gabriel, mas conversamos apenas depois de umas duas horas de zarparmos do porto. Fotógrafa de carreira, uns 40 anos na área, ela saiu do Paraná para um projeto autoral na Amazônia -muita gente faz isso, mas torço pra que você ainda ouça o nome dela em alguma exposição por aí. Nos tornamos grandes amigos Rio Negro adentro (fui seu ajudante de fotógrafo, carregando uma Leica e Canon de cima a baixo) e, durante uma tarde, nos sentamos na ponta do navio e debatemos a vida.

A floresta, enquanto nos debruçávamos para fotografar, se desdobrava em uma parede espessa de árvores, todas com no mínimo uns 20m de altura. O alto Rio Negro se assemelha a um cânion, cujas beiradas são de árvores altas, coladas umas nas outras e que assim vão sabe se lá quantos quilômetros mata adentro. De quando em quando, uma voadeira se desgarra da lateral do barco e acelera. Lá na frente, há uma outra embarcação caseira esperando a passagem do barco, e isso é o mais próximo de um ponto de ônibus na Amazônia que você vai ver.

Dessa vez, menos passageiros que saem da cidade são indígenas — há um militar reformado que vai renovar a carteira de motorista em Manaus; um caixeiro-viajante da Bahia, uma quantidade de senhoras e senhores sobre a qual não é possível pressupor nada sobre a vida deles sem uma extensa entrevista que eu não quero fazer. Quando já anoitece e a lua está cheia, iluminando o rio com a ajuda das estrelas agindo como brilhantes espalhados obre a camurça preta, nos aproximamos novamente de Santa Isabel do Rio Negro. Incrível como ela se parece cada vez menor a cada visita. O barco atraca — e, para garantir o melhor lugar da rede, a invasão é tão rápida que tem gente pulando direto pro segundo andar do barco, uma coisa de louco. A Vilma já se foi, e em seu lugar, numa rede lateral com vista privilegiada pro rio, fico eu, analisando os vendedores de banana frita e de garrafas com suco de açaí. O barco parte e, em menos de três horas, eternamente humilhado pela imensidão do rio, todos caímos no sono.

O Ivanaldo III avança pelo Rio Negro, e seu capitão-mirim acompanha tudo

O rio, olha, ele é como o mar.

Ele é largo — sério, você não vai ver rios como os amazônicos, com até 10km entre as margens. Ele é estranhamente calmo, já que a falta de humanos o torna silente, desapressado…e é perigoso: é um rio de piranha e de correntezas atrozes e surpreendentes — mesmo a 50 ou 60 metros de profundidade, as pedras no leito podem te sugar para baixo. No Solimões e afluentes como o Juruá, Purus e Mamoré, junte esses perigos todos ao Candiru, aquele minúsculo peixinho que pode entrar na uretra e outras cavidades e se alimentar do que tem lá. Deixe reservar sobre o sol equatorial e temos essa paisagem que desafia os humanos desde sua tenra existência.

Até 2008, cerca de 17% da Amazônia estava desmatada. Esse dado me assusta — não tanto pelo que já avançamos, mas pelo que seremos incapazes de avançar, mesmo se quiséssemos com todas as forças. Não abro aqui um debate sobre uso dos recursos naturais nem nada, mas só você andando pela floresta para ver como somos um quê de imperceptível e facilmente desprezível perante as obras da natureza. Eu sei, isso é piegas e eu pareço aquele seu tio fã de Raul Seixas. Os hippies do seu bong de durepóxi nos alertam como somos pequenos perante o Universo e suas forças, mas vai lá se enfiar num 3 dias/2 noites do B/M Gênesis (ou Ivanaldo III) para saber qual é o seu real lugar nos planos da natureza. E tome cuidado, pois a natureza não precisará de nenhuma força pra guardar seu esqueleto em qualquer canto da floresta ou do rio.

Passamos de Barcelos, a última escala antes de Manaus, tem umas 8 horas — mas só enxergamos a primeira comunidade ribeirinha agora. Oito horas sem ver quase nada diferente de terra (muita árvore), céu (muito céu) e mar (o rio, olha…). Juntos a ela, chegamos também à tempestade, que na última hora pairava no horizonte como uma muralha de nuvens. Assim que o Ivanaldo III avançou essa linha, as cores mudaram do azul claro para o cinza-opaco, e deste roxo escuro em menos de dois minutos. A chuva, que prometia ser uma dessas chuvas míticas que associamos à Amazônia, começou depois de uma meia hora, e foi recebida com alívio pela tripulação: aparentemente pegamos pouco dela, e em uma hora tudo estava seco novamente. “Pegamos a tempestade de lado, só uns 10% dela”, brinca comigo o militar reformado. “Se pegasse ela no meio você ia ver só”.

Novamente dormimos — eu, com minha vista privilegiada, dessa vez encoberta de nuvens. Deve ser uma meia noite e, segundo o capitão, alcançaremos a capital amazonense entre oito e nove da manhã. O céu permanece meio encoberto, mas o resumo da ópera é agradável. As luzes do convés se apagam e apenas as luzes do banheiro permanecem acesas (banheiros que, aliás, se parecem muito com aqueles da lancha — assim como a comida).

Aqui começa o que, de longe, será o Dia Mais Maluco de Toda a Minha Vida®.

E essa será a noite onde serei acordado às quatro da manhã por uma tempestade lateral, que em minutos transformará minha rede num pano de chão suspenso a um metro do chão. Chove tanto na lateral do barco onde eu estou que o piso conta agora com um volume considerável de água — e estamos no segundo convés, vejam só vocês. Devido à inclinação da embarcação, a água escorre em riozinhos pra parte de trás. A tempestade nos pega de surpresa na altura do arquipélago das Anavilhanas, e é tanta água, tanto barulho e tanto trovão que sinto uma crise de confiança com aquele barco de madeira. Aos poucos desenvolvo a ideia de que qualquer deslize e esse montão de madeira vai boiar comigo no rio, debaixo dessa madrugada de chuva tenaz. Resolvo então buscar um porto de confiança — e me refugiar, ainda que extremamente molhado, na cabine do capitão.

Morrendo de medo do meu futuro, sou recebido na cabine, por seu Eugênio, o comandante. E seu Eugênio está operando o timão — com o pé. É de arrancar o cabelo com as duas mãos de tão desesperador.

A cena ocorre no seguinte esquema: passageiro de primeira viagem ensopado da chuva se refugia na cabine de comando> passageiro recebe permissão para entrar>está tudo escuro, iluminado apenas por uns trovões ao longe e pelas primeiras luzes do dia>o silêncio da cabine é quebrado por um rádio que toca sem parar desde São Gabriel e que nesse momento toca “Infiel” da Marília Mendonça >o capitão, um cidadão que eu juro já ter visto uma vez num bar em Osasco tomando um rabo-de-galo uns doze anos atrás, e que se parece com qualquer senhor de idade e barriga saliente tomando rabos-de-galo por botecos Brasil afora, enfim, o capitão usa um boné estilo militar, regata, shorts e chinelo> o mesmo capitão está sentado numa banqueta de madeira que, por sua vez está assim meio que longe do timão> descubro que um capitão como nos filmes e desenhos, com a mão sobre o timão pilotando o tempo todo, é como o motorista de carro dos programas de TV, que fica mexendo o volante o tempo todo — ou seja, uma encenação porca> como não é necessário que o capitão faça movimentos o tempo todo, e ele está meio longe demais do timão pra usar as mãos, ele vai dando pequenos chutes na grande peça de madeira pra ir acertando a direção do barco.

Fico tão incrédulo com a cena que levo um tempo apenas para perguntar se está tudo bem. Como se fosse a trilionésima vez que é questionado, o capitão responde que sim, que aquela tempestade é tranquila, já que atinge o barco de frente. “O problema é quando pega de lado, aí você vai controlando. Mas aqui tá tranquilo, passou aqui e a gente segue reto e a gente já chega”. Ele ri da minha incredulidade de ele e tantos capitães não se perderem nessa monotonia das árvores. “Olha, inclusive tem um amigo meu que é bioquímico, e ele sempre faz essa viagem com a gente. Ele me pergunta a mesma coisa, ‘mas seu Eugênio, como o senhor não se perde aqui?’. E ah meu filho… com anos de navegação a gente aprende”. Mesmo assim, não há nenhum mapa nem GPS aqui. O radioamador está desligado. O laconismo e a falta de preocupação dele com sua enésima tempestade me deixam tão sem chão que saio do passadiço, cruzo o convés e encaro a íngreme escada rumo ao convés descoberto, a área livre do navio.

Ainda chove violentamente, e o vento traz as gotas de chuva como pequenas pedras na minha cara. A área onde eu e Vilma tiramos fotos quase dois dias atrás conta com um bar, umas cadeiras, uma TV que passa mais filmes ruins na hora do jantar. Está tudo ali, mas é como se víssemos aquela cena toda numa TV que passa imagens ao vivo de algo atingido por um furacão. O vento torna a coisa insustentável de tão frio — estou com o único shorts que tenho, um velho de guerra de secagem rápida. O dia já nasceu, mas é incrível que, com as nuvens baixas e a precipitação, quase não se vê as margens — a margem norte é vista a 3 ou 4km e a sul, provavelmente mais perto, está atrás de uma parede úmida. O barco parece estar navegando pelas águas de algum mar revolto do ártico, mas Manaus — Manaus! — está a uns 100km daqui.

Demoro para entender que o rio, ah, o rio é como o mar. E que precisa chover muito pra encher essa maravilha.

Saio do banho e a chuva acabou. O sol começa a se firmar e, sem nenhum aviso, Manaus está lá ao longe. A ponte de Iranduba, o novo cartão-postal da cidade (na verdade uma ponte estaiada meio inútil que liga nada a lugar nenhum) aparece como uma linha fina no horizonte. O rádio já começa a sintonizar as emissoras manauaras. 47h de viagem, e creio que vencemos.

Sim, vencemos. As tempestades — duas delas — ficaram pra trás. Mil e cem quilômetros ficaram pra trás. Uma quantidade de óleo diesel inimaginável (cerca de 2000L) também ficou pro pulmão do mundo respirar. E o barco de madeira, com todas as suas redes esticadas, se sobrepujou, enfrentou a eterna fúria da natureza em seu habitat, e venceu. O ser humano é o único animal que é foda pra caralho. E que delícia — vou poder ter sinal decente de 4G da Tim depois de três semanas, fazer uns stories pro meu Instagram com a ponte, a chegada ao porto. Para isso, resolvo garantir a bateria do meu celular, que está em 49% — não é necessário, sabemos disso, mas resolvo mesmo assim.

Enquanto coloco o celular e converso com o caixeiro-viajante baiano, o navio pega uma onda, como um ônibus pega uma lombada. O baque, inusitadamente forte como nenhum outro durante a viagem, faz com que meu celular deslize de uma base e voe perfeitamente para uma poça de água onde ele se desmonta todo e apaga. Em menos de três segundos eu já estou com ele em mãos, sacudindo corpo com uma mão e bateria em outra — mas é como ver um acidente de carro e ter a certeza instantânea de que não há sobreviventes ali. Me sento na ponta do navio e, ao lado de um capiau que trabalhou na construção daquela ponte, ouço a história de um número desconhecido de trabalhadores como ele que morreram preso no concreto de algumas das pilastras desta mesma ponte durante a obra. Seria uma história e tanto, se eu não estivesse com a cara mais fechada que uma pamonha e não conseguisse pensar em nada a não ser que O. Meu. Celular. Está. Morto.

Passamos a ponte. Chegamos ao porto. Guilherme, seja bem-vindo de volta à Manaus. Mas não se esqueça: esse será o dia mais maluco da sua vida e são ainda dez da manhã.

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