O Ana Beatriz V, perto de atracar em Juriti (PA)

Río arriba, Río abajo

3600km de barco pelos rios amazônicos — terça parte

Guilherme Mendes

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O porto de São Raimundo estava tão terceiro-mundo como quando o deixamos, 20 dias atrás. Não pareciam haver embarques próximos, mas a balsa estava lotada, cargas e gente pra todo lado. Um taxista — que nos abordou ainda em nossas redes, no andar superior — se dispôs a nos levar para o centro da cidade. No caminho, explicava que a fofoca generalizada era que o B/M Gênesis, encalhado no porto, estava ganhando um motor mais potente, de 800 cavalos, capaz de reduzir em até 12h o tempo de viagem. Discutimos onde comprar camisas do São Raimundo e sobre o campeonato amazonense. Enfim, conversa fiada em momentos de tédio.

E isso foi tudo de normal que aconteceu naquele dia.

Nas próximas duas centenas de minutos nada fez sentido, e passei a usar destes momentos como pináculos, cúmulos do que foi a viagem em si. São destes momentos que eu me lembrava no check-in do aeroporto voltando pra casa. São destes que eu primeiro me lembro quando alguém me pergunta como foi a viagem (“Ahn, a viagem? Ahn…e aquelas três horas passam realmente como um filme…olha, foi inacreditável”). E é tudo isso que vem escrito em meu diário abaixo da nada sucinta expressão: “Como (começar) a explicar?????”

Irina e Sérgio, depois de quase 30 dias de viagem desde Belém, merecem um descanso desse repórter grudento e se mandam pro Continental, o mesmo hotel onde se hospedaram antes de irmos à São Gabriel. São eles os guardas de minhas cargas nessa quinta-feira nublada, enquanto vou ao centro da cidade na quase impossível missão de recuperar meu smartphone. Anote a hora, são dez e quarenta ainda.

O centro de Manaus se parece um tanto quanto o centro velho de São Paulo, com ruas estreitas, porém acrescida de um número indefinido e aparentemente crescente de ambulantes vendendo comida, roupas, tênis, relógios, garrafas de açaí, loções falsificadas de remédios pra unhas dos pés. Talvez pela proximidade com o polo industrial de Manaus, as lojas de eletrônicos daqui não deixam nada a dever para o de outras capitais — o que pouco pode ajudar no meu caso, um Quantum Müv atingido pela água. A única loja capaz de mexer no aparelho — comandada por um rapaz que mal cabia no próprio banquinho e cujo apelido de “gigante” estampado na porta nunca foi tão apropriado — me convenceu a desistir e comprar outro novo, já que não há nem assistência técnica. Por um minuto, ao ver aquela droga de aparelho inoperante, lembrar das raivas que ele me tinha dado desde sua compra apressada em outubro e a lembrança das ainda pendentes 8 prestações a pagar, pensei em ir à própria fábrica, que fica na cidade, e jogar cada peça na guarita. apenas para extravasar a raiva. Mas eram umas onze e meia já, e eu tinha pressa.

Por 90 reais, tomei a decisão apressada de comprar meu atual celular, um Samsung cujas únicas funções extras são um sudoku, uma lanterna que acende sozinha e rádio Fm. Digitar uma mensagem onde, para escrever um F, você tem de digitar “3–3–3” e por aí vai. Me sinto em 2005 de novo, e é tudo o que dá pra fazer, tendo um saldo bancário assustadoramente vermelho e um salto de gastos tão grande. Mas a vida tem que seguir.

Dali pro porto de Manaus, passando pela praça do relógio, são poucos minutos de caminhada onde o terceiro mundo se intensifica: pra quê pegar voo de 20 horas pra Índia se logo ali temos alguém cortando cabelo na rua, com um espelho preso no poste? Você pode ir à Nigéria ou à Costa do Marfim, mas ver carrinhos de mão lotados de frutas em Manaus nem requer passaporte. E esse, o porto central, já foi definido na parte I desse diário como “capaz de deixar o [porto de] São Raimundo envergonhado” em termos de zona. Só estou aqui de passagem pro hotel, mas vejo umas barracas de agências de turismo suspeitas (em minha defesa, eram as únicas à vista) e resolvo tirar umas dúvidas.

É como se a Musa da Aventura resolvesse me chamar novamente. Sou recebido por dois negões, um deles do tamanho de um armário e outro menor, um buiú. A zona vai recomeçar, mas saio jogando:

“Ô amigo, quando sai o próximo pra Santarém?”
“Amigo, sai meio-dia”

Nem olho para o relógio — devem ser algo como onze e cinquenta. Mas o buiú sente a chance, a fisgada, e inicia uma blitz.

“Vamo então?”
“Poxa, nem rola”, me escuso. “Não tem como dar tempo de -” e sou atropelado pelo otimismo do buiú.
“Mas que não dá o quê, vamo lá ele tá parado ali meu querido”
“Eu ainda tenho mala pra tirar no hotel”
“É longe o hotel?”
“Não, é logo aqui em cima” — e já sou quase levado pelo buiú num otimismo inacreditável. Ainda resisto, mas quando descubro que o próximo barco parte apenas daqui alguns dias — o que pode minar meus planos de viagem — já estou atravessando a avenida Manaus Moderna rumo ao primeiro caixa eletrônico que eu possa encontrar.

Não demoro muito e o encontro, dentro do Mercado Central. É como aqueles mercados japoneses, tomado de luz amarela e branca, onde centenas de homens com roupas brancas picam centenas de quilos de carne suína e bovina e uma quantidade já esperada de peixes (o pirarucu custa R$13). Em um espaço minúsculo dois caras cortando peixes enfiaram um 24Horas e é ali, entre duas facas bastante afiadas, que estouro ainda mais meu limite e saco 150 reais, para os 130 da passagem e para alguma eventual comida.

Vou aos saltos rumo ao hotel, duas quadras morro acima, onde luto para encontrar Irina e Sérgio, pegos de surpresa dormindo. Depois de 22 dias juntos, fico um tanto quanto triste que nossa despedida seja tão apressada e sem desejo. Desejo sorte a eles na volta pra casa, mas a partir daqui eu tinha de ir, e preferencialmente correndo. A mochila menor vai na mão do buiú e o mochilão, pesando algo como 15 kg, me ajuda a descer a ladeira rumo ao porto.

O caminho de volta — ladeira, corredores do mercado, avenida Manaus Moderna — termina com a descida ao cais, um ziguezague de uns 15m de altura que não é recomendado para quem queira nem que seja o mínimo de segurança. É como ter pressa em descer um desfiladeiro — o buiú, sempre falante, me faz pular a última descida e saltar uns 2m rumo à prainha. A Musa continua me tentando, uma voz que pede que eu me meta em confusão. Mas eu dou de surdo e sigo reto.

De Manaus a Santarém, pelos rios Negro e Amazonas (Com breves participações dos rios Solimões e Tapajós): 903km em 32h30

Nunca fui do cristão, sou do ateu não-enchedor de saco e tal, mas em agosto ou setembro de 2016 eu estava lendo “Moby Dick”, do Melville, e me interessou muito a passagem que o autor, por meio do seu narrador-personagem Ishmael, descreve as desventuras e filosofias por trás da história de Jonas na barriga da baleia. Aquela coisa toda moral de aprender dos próprios erros e se arrepender dos pecados me pegou, de maneira que eu, à época um jornalista já desempregado e sem muita fé nem em Deus nem no futuro, prometi que deixaria minha sorte na mão do destino — e que ele me levaria onde eu deveria estar. Meio que uma filosofia do hippie do bong de durepóxi na realidade de um paulistano de 23 anos.

Pois muito que bem: naquele início de tarde de janeiro o destino me enfiou numa lancha minúscula, como as voadeiras que eu tinha andado em São Gabriel da Cachoeira. O buiú jogou minhas mochilas no meio da embarcação de alumínio e me indicou o assento ao lado do piloto. De algum lugar desconhecido se materializa o outro membro da agência mequetrefe, o armário. Nos sentamos todos.

O buiú ordena: “Toca pro Ana Beatriz”.

O Ana Beatriz, sendo agora 12h08, já se mandou e nesse momento está à toda, no meio do Rio Negro.

Saímos de ré. A lancha se vira e em instantes estamos navegando pelo rio. O alvo, nesse momento, parece um retângulo branco na linha que separa o horizonte do rio. Parece estar a uns 2km daqui. Mas a lancha acelera com tudo que pode.

E repentinamente para com tudo que pode. À nossa esquerda surge um posto de gasolina, flutuando sob a força de dezenas de barris de petróleo. Para quem nunca viu, parece algo engraçadíssimo, apesar de lógico. A mim coube manobrar o barco puxando a corda do posto (não sei se puxei o barco para perto do posto, ou puxei o posto para perto do barco). Para alcançarmos a minha condução, são necessários mais ou menos R$20 de combustível (a bomba indica R$4,40 o litro). A mim também cabe arcar com os custos desse combustível — e não me sobrará nada dos 150 reais.

“Porra, aí tu me fode”
“Mas tem que pagar o combustível”
“Mas aí tu me fode”
“Vinte conto de combustível, pô” , e assim evito responder o que passa na minha cabeça agora — que é dizer “aí tu me fode” novamente.

O barco retoma a rota e eu digo foda-se ao mundo e abraço o chamado da Musa da Aventura, me entrego mesmo. A única memória que eu tenho é de estar na ponta da voadeira, segurando no teto do barco, como um Cabral fazendo pose na caravela. Mesmo todo de preto, fritando com o calor de Manaus, minha pele já resseca de tanto vento. Posso ter dito ou não a frase “Siga aquele barco”. Ao meu lado vão passando os grandes navios do porto, e imagino que naquele ponto do rio a profundidade deve ser ainda maior. Nesse momento lembro que não vi coletes, que eu não sei nadar, e que há ondas fortes no rio. À medida que vamos entrando em rota de colisão com o meu destino, passamos pela onda deixada por ele — e essas ondas me tiram o equilíbrio, e uma delas bastante perversa quase me joga pra fora do barco. Pressinto que vou me afogar pela segunda vez nessa viagem.

O monstro de ferro se materializa na minha frente. Ele é todo branco, de diversos andares, com pelo menos umas 60 pessoas na amurada vendo aquela pequena lancha chegar. De lá de cima, confortavelmente bebendo uma cerveja, ver a lancha chegando deve ser mais ou menos como enxergar uma bala vindo em sua direção em câmera lenta. Mas eu estou aqui embaixo, e visto daqui essa bala treme, balança e ginga para todos os lados ao mesmo tempo enquanto emparelhamos a bombordo. Buiú se levanta e joga minhas mochilas para um imediato do barco.

“Vai, agora é você!”, ele grita.
“Como assim sou eu?”
“Vai, pula”
COMO ASSIM PULA, CARALHO?
“Pula?”
“Sim, bora, vai”

Há vários pneus pendurados nas laterais. Enfio o pé em um deles, de trator, e com as mãos faço o giro sobre a amurada de ferro. Eu, que nunca consegui pular nenhum murinho quando pequeno, agora estou dentro. A lancha agora freia e vai ficando pra trás até sumir de vista. O imediato me dá as boas-vindas. A cena toda percorre um espaço de menos de dez segundos. Enfio o mochilão nas costas, a outra na mão e saio andando. Uma passageira assistia tudo ao lado e agora me fulmina com um olhar de curiosidade. Meu único impulso é cantar “Sporting Life Blues”, do Sonny Terry e do Brownie McGhee (dica: vejam a letra).

Sem notar ainda, entrei na baleia. Viverei então meus momentos de Jonas.

Na barriga do Ana Beatriz V se encontram uns 30 carros, 200 motos recém-saídas da fábrica, carregamentos de arroz, janelas, materiais de construção, remédios, e isso apenas no convés inferior. Acima temos três andares para acomodar inacreditáveis 1440 passageiros, ou nove vezes a capacidade máxima do Ivanaldo III. Como o embarque ocorreu desde as primeiras horas da manhã e eu ainda consegui chegar atrasado, vou lutar para encontrar o gancho #786, um dos poucos livres, onde ato minha rede sob olhares curiosos das redes #785 e #787. Arrumo as malas sob o pano de dormir. Me sento num banco com vista lateral pro rio e foi como se, ao sentar, a gravidade jogasse toda a depressão possível sobre mim.

Estou com um saldo incrivelmente negativo no banco. Estou sem dinheiro nesse momento. Sem Spotify. Sem celular. Sem livro (pois já tinha terminado o que tinha na bolsa). Num barco à beira da capacidade máxima sem conhecer ninguém. Com fome. Com uma raiva egocêntrica — sim, estava com raiva de mim mesmo, da minha pressa, da minha vontade de carregar um celular com 49% de bateria. À minha direita, lá no fundo, Manaus vai virando uma manchinha, que de tão pequena vai sumindo até virar uma abstração.

Ao tentar reconstituir a última meia hora, surgem suspeitas: a lancha parece ter sido escolhida ao acaso pelos agenciadores…e os caras da lancha não falaram nada com os membros do ferry boat…e aquele buiú não me passou nenhum bilhete ou equivalente, nem nada ao imediato do barco… “Ué”.

Em cinco minutos estou cara a cara com o Orlando, no escritório do navio, cercado de carros, jipes com placas de Manaus, Boa Vista e Itacoatiara. O Orlando deve ter sido um orgulho na escola, pois a letra dele é muito bonita, e ele preenche meu bilhete com maestria e rapidez. Enfio o bilhete no bolso, agradeço e saio andando. Quando viro de costas, ouvir a frase-chave: “Mas você paga agora”.

Ok. Eu ainda tenho R$3,50 no bolso.

Eu resolvi me colocar à disposição do destino. E o que ele fez? Me colocou frente a frente com dois vigaristas, junto ao piloto da lancha, que me tomaram 150 reais. Me colocou frente a um simpático Orlando, simpático mesmo, que entendeu o ocorrido de pronto mas não via como resolver a situação — o barco seguia no meio do Rio Negro, e eu não queria voltar, nem ser jogado no Amazonas. No fim, marcamos de resolver depois. Subo e sento exatamente no mesmo lugar que eu estava antes. Ligo para meus pais, mas não digo nada. Descubro que não posso carregar meu celular — o carregador que veio de fábrica é para tomadas europeias.

O Sérgio, ainda no Ivanaldo, tentou me alegrar dizendo que, sem livros e sem celular, eu poderia pensar muito sobre mim mesmo. Volto pela terceira vez ao banco. E, de uma maneira incrível, pensar sobre mim mesmo é tudo que me resta.

Um rápido selfie no encontro das águas dos rios Negro e Solimões, marcando o início do rio Amazonas per se— um espetáculo pega-turista que, como se pode ver, é realmente um porre completo

A maior habilidade dessa viagem foi aprender a dormir sem motivo. De maneira que são umas quatro da tarde e levanto de minha rede (agora atada a quase 1,30m do chão). Na bolsa estão uns pacotes de Club Social que encaro como uma metáfora da minha vida: estão apenas o farelo, irreconhecíveis. Engulo o orgulho — e o farelo. Perdi a vontade de fotografar, e os registros imagéticos desse trecho são escassos e bem fracos, confesso. Estou bem deprimido, pra falar a verdade.

No piso superior, algumas pessoas se divertem, tiram fotos da paisagem, que nesse trecho é desoladora: as margens são apenas de pasto inerte ou plantações — séculos de ocupação humana transformaram a densa mata amazônica nisso. Mas tá todo mundo feliz, toca um calipso no andar de baixo, e as crianças estão agitadas como nunca.

Os banheiros, que tomam a parte de trás do navio quase que por inteiro, são grandes, espaçosos e com chuveiros cheios de água do Rio Negro — que descubro me causarem uma coceira terrível no cabelo. Apesar de eu ter contado pelo menos uns 30 no navio todo, eles ainda pareciam pouco. Mais uma caminhada e nos encontramos no refeitório. Ao contrário da lancha da Parte I e do barco da Parte II, aqui as refeições são pagas, e muito: só o almoço são R$15.

Ainda me sinto desolado, mas começo a sair do fundo do poço: faço amizade com a Glenda, uma colombiana que estava subindo o Solimões desde Tabatinga — e até sou elogiado pelo meu espanhol muito que do enferrujado. Ela e o Arturo, um amigo fotógrafo, estavam indo Brasil adentro, num roteiro corajoso até para brasileiros. Explico para ela que quase todos ali no barco são moradores da região, que brasileiro gosta mesmo de Miami, Londres ou Buenos Aires. Ou terceiro mundo de outros mundos.

Sou apresentado também à “Voz”, que aparece em um sistema de som de caixinhas próximas à minha rede. A Voz é bonita, imperiosa, pronta a dar as principais novidades: “Já já cinema no terceiro convés para a criançada com o filmão ‘Kung Fu Panda’” ou “Informamos que á está sendo servido o jantar no refeitório” e “daqui a pouco o Pastor Jackson, que já trabalha há muito tempo com as tribos amazônicas, vai dar uma palavra com o tema ‘Desperte o gigante que há em você’. Não é a palavra que a gente quer, mas a palavra que a gente precisa ouvir”. A Voz também é bastante estressada e meio que não prepara seus discursos ao microfone. “Atenção pais e responsáveis pelas crianças”, admoesta mais uma vez, “favor cuidar bem de seus filhos e não deixá-los correndo pelo corredor do navio. Pois isso aqui não é ambulância”.

No início da noite, alcançamos Itacoatiara. Pelo fim da madrugada seguinte, passamos pela apática Parintins (coberta pela neblina, em nada lembra a Parintins do Caprichoso e Garantido). Posso estar menos motivado que minha própria caveira interior, mas o Ana Beatriz segue como um mamute de ferro Amazonas afora. Entraremos daqui a pouco no Pará — e ganharemos uma hora no relógio. Uma hora a menos de agonia.

O barco normalmente não atraca no porto de Juriti, por “questões sanitárias”, segundo informam. Por isso, vendedores de quentinhas improvisam sua maneira de vender

A viagem segue sem nenhum atrativo até que, no meio da tarde, o capitão me interpela no corredor. Eu estou na mesma atitude que estive em 90% do tempo útil: sentado no banco, catatônico, encarando sem vida a Amazônia mais sem vida ainda, com a câmera na mão. Aqui já não há mais sinal da mata virgem e frondosa — creio que quase não a vi mais. O capitão não apenas soube da minha história como, durante uma batida da Polícia Federal no porto de Óbidos, me acompanhou enquanto ajudei dois colombianos e um uruguaio a se apresentar aos policiais. O capitão pede pra que qualquer hora eu passe no passadiço pra trocarmos um papo.

Me vem aqueles momentos bem bregas do cruzeiro de navio, onde há o “jantar com o capitão”, e todo mundo se enfia numa roupa de gala e vai para um jantar seguido com sessões infinitas de foto com o capitão, vestido à caráter, numa atividade planejada para encher o saco de todo mundo. Não que eu tenha um traje à rigor na bolsa, mas me banho e me visto para a visita.

(Há aqui um intervalo de cerca de uma hora entre o fim do banho e minha chegada à cabine, tempo esse onde meu vizinho de rede, o seu Marcelo, me puxa pra um papo. Ele me elogia, disse que me achou muito inteligente, que suspeitou que eu “trabalhasse com essas coisas de floresta e tal, diplomado e tudo”, mas que suspeitava que eu tinha alguma coisa me afligindo — além, é claro, de ser um clandestino do cassete num navio em terras desconhecidas. No fim de 20 minutos, ele puxa um smartphone escondido entre os coletes salva-vidas do navio e saca um aplicativo da Bíblia Online. Ele é um Testemunha de Jeová e, como tudo nessa vida, aquela fala elogiosa por parte dele não passou dum truque de retórica. Me sinto feliz de ao menos não ser um babaca de ficar discutindo com ele, e deixo a conversa fluir. Muito provavelmente nunca pisarei em um Salão do Reino das Testemunhas de Jeová na vida, mas vi um ontem e lembrei imediatamente dele. Devemos ter virado bons amigos).

A cabine do Ana Beatriz V sim se parece com a cabine de um navio sério. O capitão, um carioca de nome Luiz, aqui visto também apenas em sua silhueta de tons escuros sobrepostos (é costume que os passadiços andem de luzes apagadas para melhor visualização do entorno) está com uma camiseta da marinha mercante por dentro da calça cáqui extremamente bem-passada, e sapatos. A mobília do cômodo tem o cheiro de madeira maciça, que ainda não saiu do meu olfato. Só de GPS vejo dois, e um sonar mede a profundidade do rio — nesse ponto, entre 50 e 60 metros.

Ele opera o timão hidráulico de ferro com as mãos. Normalmente, as duas.

O capitão falou muita coisa. Explicou que, apesar da presença do dono do navio e de uma tripulação de dez imediatos pra cima e pra baixo, quem cuida do funcionamento do navio como um todo é ele, e ele fica essencialmente puto da cara com esse monte de crianças gritando e correndo. Olho pelo corredor e os fedelhos, todos entediados depois de um dia e meio, dão estirões pelo corredor, como atletas antes de uma corrida. “O senhor então é quase como um síndico aqui?” e, nesse ponto da viagem, o capitão só dá de ombros.

Santarém já é uma mancha extremamente iluminada no limiar do horizonte. Alguns barcos no sentido contrário nos apontam o farol, indicando a manobra. “Aqui nós vamos de boreste com boreste”, o capitão fala, mais pra si mesmo, enquanto os barcos passam com a direita do casco apontado para outro.

Enquanto a cidade não chega (e, apesar de a vermos, levaremos uma hora para alcançá-la ainda), temos tempo para ser apresentado à história do Ana Beatriz V (construído em Santarém a um custo de R$5 ou R$8 milhões, peso de 990 toneladas, capaz de levar 1440 pessoas, incapaz de navegar no mar por causa da qualidade do ferro); à história do capitão na Marinha (ex-membro da Marinha de Guerra, migrou para a Marinha Mercante e rodou o mundo, trabalhando no rio Mississipi antes de aceitar um convite e vir trabalhar nessa empresa em 2016), e à história do capitão antes da Marinha (a vida dele em Nova Iguaçu- com detalhes caprichados da geografia do lugar). Ele me explica que tem vários filhos criados, e um é locutor de rádio. Vem o estalo.

“Ah, então o senhor que é A Voz? Que fala no sistema de som do navio?”
“Sim. ele não ajuda muito, mas sou eu sim”
“Mas o senhor tem uma bonita voz, grossa”
“Quando eu era mais novo, eu era locutor de supermercado. Uma vez eu cheguei no supermercado e perguntei se podia trabalhar como locutor. O gerente me pediu um teste, e eu nunca tinha feito isso antes. Aí peguei lá o papel e tinha lá, ‘batata’ e ‘chicken frango’ [sic]. Aí eu comecei: ‘só aqui no Continental você encontra Batata por…’ e então eu consegui o emprego”.

A conversa fica nesse miolo de pote. O capitão Luiz demonstra um certo dissabor com o Brasil, assim como o o militar que conheci São Gabriel, mas ele ainda mantém o otimismo.

Lá pelas 21h20, com as docas de Santarém a menos de um quilômetro, a cidade já vista em detalhes, o capitão pede gentilmente que eu o deixe sozinho na cabine para comandar o atracamento (a palavra é feia, mas o capitão confirma que é essa). Se eu quiser, garante, posso ficar ali do lado. Mas prefiro dar uma última passeada pelo navio.

Apesar de não estar lotado (ele tem apenas 400 passageiros nesse trecho final), pense o que são quatro centenas de pessoas ansiosas pra sair como num voo da Gol. Quatro centenas de pessoas com malas tamanho grande, caixas de isopor, caixas de papelão, embalagens diversas, todos entupindo as escadarias do navio. Se fossem 1440, veríamos com certeza uma reedição das cenas de ação do Titanic, só faltando um James Cameron gritando de um megafone em algum canto.

O navio finalmente para. Não há âncoras para balsas como essas, mas são jogadas grossas cordas para terra firme. A correria pra fora mistura carregadores, passageiros e parentes, uma boiada correndo pra todo canto. Ao nosso lado, dois navios da Marinha do Brasil estão atracados, bombeando água pra fora, os marujos em um estado de tédio oposto à vivacidade do desembarque e do reencontro de muita gente. A cidade está quente, e há umas nuvens soltando relâmpagos a norte, mas nada que indique uma tempestade.

Não é o fim das viagens no rio, mas quase: já foram seis embarcações diferentes, 1890 milhas náuticas (ou 3500km). Estamos numa sexta à noite — e desde terça eu estive apenas 3h em terra firme. Passei por emoções indescritíveis, tanto que foi difícil escrever tudo isso. E vi os rios — caralho, os rios. Vou poupar vocês de mais blá-blá-blá sentimentalista, e os convido a presencialmente sentir a força que eles são, a beleza que ostentam, e a vida humana que congregam não apenas em suas margens, mas sustentam em seu seio. No momento já conto 118 horas em barcos, e não aguento mais. Já deu. Vou desembarcar junto com todo mundo, me jogar na rua, me render a um outro beijo da Musa da Aventura nas terras parenses.

Na verdade, deixo minhas malas no escritório do navio e cruzo a cidade para achar um Itaú aberto. Pois eu precisava pagar a passagem — de novo.

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