Río arriba, Río abajo

3600km de barco pelos rios amazônicos — primeira parte

Guilherme Mendes
12 min readJan 27, 2017

PARTE I | PARTE II | PARTE III | EPÍLOGO

De antemão, queria de dizer que é uma delícia digitar isso deitado na minha cama. Sério mesmo. Em dezembro, completamos seis anos juntos — quando eu a conheci, esse estrado de madeira tamanho casal, eu não sabia nada da vida…e tanta coisa rolou em cima dela…Eu cresci tanto como pessoa, que eu humildemente só posso esperar que o mesmo tenha acontecido com ela — que ela tenha crescido como cama também. Creio que sentimos a falta um do outro — pois por 32 dias eu me enfiei Amazônia adentro, numa aventura que, revendo as notas que tomei em meu diário de viagem, posso garantir que foi tão louca que, nem se eu quisesse, conseguiria repeti-las como direi abaixo. E ela, como uma Penélope de madeira, ficou aqui no meu quarto, imóvel, à minha espera. Até porque, porra, ela é uma cama inanimada que não passa pela porta.

Enfim, o relato. Vou resumir ao máximo as coisas por aqui — só vão ficar as partes mais malucas.

O mais Negro dos rios, visto da praia da Ponta Negra, em Manaus.

De Manaus a São Gabriel da Cachoeira, Rio Negro acima: 1150km em 29h30

Você deve ter, como eu, aquele amigo mais rico que é “desapegado na vida”. Não entro em nomes ou em definições afiadas, mas na prática é aquele estereótipo batido de gente que diz evitar a Europa, Miami e afins para conhecer “o mundo de verdade”. E se enfia num avião pra Tailândia, pra África do Sul ou pra qualquer outra nação soberana que seja de terceiro mundo (Não que a África do Sul assim seja, deus me livre, mas qualquer coisa que não seja primeiro mundo já é automaticamente terceiro mundo — aliás: você consegue me citar um “país de segundo mundo”?). Essas pessoas querem andar em mercadinhos, comer comidas típicas, ver pessoas falando coisas que você não entende, esse tipo de experiência. Custa uma nota preta, uma boa quantidade de horas preso dentro de um avião, às vezes uns vistos no passaporte e normalmente vale muito a pena — pense em todos aqueles likes.

O porto central de Manaus

Pois bem: a eles — e a vocês que, como eu, não tem tanto assim na conta — lhes apresento o Porto de São Raimundo, região oeste de Manaus, a capital do Amazonas. Na margem norte do Rio Negro, esse conglomerado de balsas, com diversos tipos de barcos, lanchas e mesmo outras balsas ao redor se levanta, às 7h de uma manhã de dezembro, como uma maravilha da luz refletindo sobre os corpos. A cidade está próxima da Linha do Equador, o céu vai ficando bem limpo e tudo vai ganhando um tom amarelo-dourado, forte, bastante duro e metalizado.

Aí chegam as pessoas.

É um espetáculo digno de documentário: são pessoas — duas centenas delas, no mínimo — dentro de uma balsa flutuando a poucos metros da margem, carregando todo tipo de coisa. As filas, duas ou três ou até mais, corriam para todos os lados. Gente que queria comprar a passagem estava na fila do check-in (que descia a pinguela da balsa e seguia pela terra firme) e pessoas que estavam na fila do check-in não sabiam onde a fila terminava ao mesmo tempo em que reclamavam de um ou outro que já era atendido com mais presteza e sem esperar. O narrador da ESPN que cada um tem dentro de si gritava “O CAAAAAOS” nesse momento. Eu me sentia um cidadão pacato carregando apenas um mochilão cheio e uma bolsa de mão naquele lugar onde mochilas quase não existiam. Falo de sacos pretos que carregavam conteúdos desconhecidos; falo de uma caixa dessas de TV de 32' — muito provavelmente com uma TV dentro; falo de caixas de isopor; e falo de uma quantidade inacreditável de frutas, caixas e caixas, como se eu tivesse errado o lugar de embarque do meu barco e estivesse no portão de cargas.

Essa mistura de homem-coisa se dá pelo fato de que, de acordo com os dados da Confederação Nacional do Transporte, o Amazonas ter apenas 970 km de estradas, 96% delas em péssimo estado de conservação. Não que isso seja (apenas) um problema de gestão — a cidade onde eu vou, no extremo noroeste do estado, não tem nenhum acesso por terra, já que isso envolveria, vocês podem imaginar, rasgar a floresta amazônica equatorial no meio. Entre rodovias ruins e a maior bacia fluvial do planeta (com mais água que os outros sete maiores rios do planeta, combinados), é mais fácil escoar a produção boiando por aí— balsas levam carros, caminhões e combustível, pra cima e pra baixo, o tempo todo. No dia anterior, andando pelo outro porto, o central de Manaus (que em termos de terceiro-mundismo deixaria o São Raimundo envergonhado), pude ver o desembarque de porcos e cabras de um navio de passageiros (não, eles vão separados — os animais vão no porão, sozinhos e cheirando o diesel do motor), e todo o tipo de carga que estes navios carregam. São embarcações grandes, portentosas, mas voltaremos nisso mais tarde.

Mas por ora a lancha que nos levará rio acima está estacionada logo ali no São Raimundo, atracada de frente, uma corda grossa a segurando da maré. Por um fato a ser explicado na parte II, não tenho mais fotos desse veículo, mas puxo da memória uma descrição: é um lancha a motor estranha, esguia, branca e muito longa. Em algum ângulo de visão, parece uma minhoca. A brancura do seu caso e da sua estrutura é cortada por uma fileira de vidros fumê. No teto repousam uns botes amarelos, e uma série de caixas. É um bicho feio como limusinas são de alguma maneira feias em nome e conteúdo. Mas é eficiente — mais eficiente que os barcos a motor, notoriamente maiores e, por consequência mais lentos — e pelo simples fato de eu já ter comprado a passagem no dia anterior, é esse mesmo que eu e dois amigos meus vamos.

A fila era um exemplo de Brasil: negros e brancos e uma quantidade esperada (mas altíssima) de indígenas. Dois senhores muito idosos, provavelmente irmãos, aguardam enquanto apertam as mãos de maneira — eles não soltam até o último momento em que os vi; uma jovem estudante de medicina espera impaciente com uma amiga para embarcar pra casa; alguém que perco de vista com frequência leva ‘O Vermelho e o Negro’ do Stendhal nas mãos; o cara às minhas costas é um vendedor — ele vai de lancha rápida, enquanto os produtos vão num barco normal, atracado logo ali do lado. Muitos deles carregam cobertas, mas ainda não deu oito da manhã e está uns 28 graus.

Nesse momento, dou risada das cobertas.

Depois de 40 minutos de imobilidade na fila do check-in, resolvo mandá-la às favas e, sabe-se lá como em cinco minutos depois disso minhas malas já estão despachadas e posso entrar na lancha — as coisas lá funcionam assim.

O interior da lancha é escuro, lembra um pouco os aviões e, à primeira vista, parece extremamente confortável e acima das expectativas. Bancos maiores e mais espaçados que as aeronaves, num esquema 3x3, se estendem até lá no fundo — a lotação é de 124 passageiros, nos informa o aviso na entrada. Monitores de TV estão presentes a uma boa distância uns dos outros, e os banheiros ficam separados, lá no fundo, por uma porta de vidro…e nossa, os banheiros são limpos! Pequenos, tudo bem, mas o que é isso? (o narrador então olha para cima e enxerga o que parece ser uma boca de regador) Nossa, que simpatia (o narrador então abre a torneira, ou imagina abrir a torneira e, distraidamente, abre outra válvula, e a tal boca de regador se prova um chuveiro e assim ele toma seu primeiro banho na viagem). Poxa, que merda! Mas chuveiros! Já gostei desse barco.

E, apesar da zona que foi o embarque, a gritaria, os papéis levantados e afins, a lancha dá ré e embica contra a correnteza do Rio Negro às 8h59 — um minuto adiantado, numa prova da esquisitíssima pontualidade amazônida que ninguém nunca ouviu falar.

Foi aí que comecei a sentir frio.

No começo era só um desconforto. E aqui vamos dar uma pausa nesse fluxo de consciência e dar uma esticada nos músculos rapidinho enquanto tratamos daquilo que se provou, durante toda a minha “Expedição Amazônia” no fetiche #1 dos habitantes locais: o ar-condicionado. Uma forma onipresente, mesmo nas regiões mais periféricas e pobres das cidades. A sensação de andar nas cidades amazonenses é que cada imóvel tem uma verruga com alguns milhares de BTUs ruminando à toda. Há sempre um ar-condicionado ligado no último, e as chances de você cair meio duro no chão por causa do choque térmico são altas. Em um dia, quando entrei e saí de táxis e prédios pela cidade de Manaus, senti isso algo como umas dez vezes — um frio desmedido e a porta se abre e lá está o calor amazônico, que convenhamos nem é lá grandes coisas. Alguns estrangeiros me perguntavam o porquê de tanto climatizador, e eu mal sabia por onde começar.

Eles estavam ali, no teto da lancha. Cinco aparelhos de ar condicionado, todos travados a 17ºC. Um frio desgraçado se instala em todos os cantos da cabine enquanto lá fora você pode quase ver o calor pegando nas coisas. O funcionário passa e eu peço pela terceira vez para que o frio seja contido — não estou tão simpático como na primeira vez, mas ainda mantenho a cordialidade. “Ah, amigo, se eu aumentar todo mundo reclama”.

Ok. ¯\_(ツ)_/¯

Quando a noite chega — e os monitores estão no quinto ou sexto filme já (eles passariam 11 no total) — o frio fica tão intenso que minha única ideia, a única ideia de quem deixou as blusas e camisas longas em casa por razões até meio óbvias, era de esperar a primeira parada para, com a benção do 4G, baixar algum aplicativo desses de controle remoto com que eu pudesse controlar a situação.

Quando são 10 da noite, e o barco finalmente vê a cidade de Barcelos ao longe, minha internet não dá sinais de vida e eu sinto meu destino selado pelo constante ventinho.

São agora três e meia da manhã e eu estou há pelo menos duas horas dormindo aqui, nesse lugar quentinho. É muito mais quente que meu assento na cabine e muito mais fresco que o chão do barco onde alguns se deitaram. Com o único porém que eu estou sentado sob a tampa fechada da privada de um dos banheiros, que minhas costas estão apoiadas na válvula de descarga, que o tal chuveiro-com-cara-de-regador está pingando uma ou outra gota em mim à medida que o barco balança mais fortemente, e que a cada uma hora as gotas que caem da válvula se acumulam nas minhas costas e descem pesadas pela coluna, dando aquele calafrio que acorda até defunto.

Depois de umas três horas dormindo assim — sentado, os pés esticados em cima da pia e apoiados na torneira — sou acordado pela própria consciência. Afinal de contas, um marujo dorme no outro banheiro masculino e as pessoas começam cada vez mais a tentar abrir a minha porta. Como eu não quero ser o responsável pela incontinência urinária de ninguém (imagina a vontade de mijar debaixo daquele frio do ar-condicionado), resolvo abandonar o meu trono do sono e ir dormir de pé, na porta do motor do barco. Não sei como, mas dormi uns 15 minutos assim mesmo, de pé, ao lado de um motor de 800 cavalos rugindo como a turbina de um avião, ininterruptamente, há quase um dia.

Dali, naquele corredor nos fundos do navio, pude ver a equipe se preparando para mais um café da manhã, ajeitando pães com queijo e presunto e umas formas de bolo. Apesar dos inacreditáveis 480 reais que esta viagem custa, é interessante notar a pensão completa. É algo comum nos barcos que rodam o alto rio Negro: o cidadão pode comer o quanto conseguir em 3 refeições. Também vi um imediato abrir o piso de chapa de ferro e acertar alguma coisa no motor. Talvez o inferno seja aquilo: uma máquina capaz de um barulho inconcebível, piscando alguma luz extremamente rápida que parece prenunciar algum desastre. O imediato sai do buraco, fecha a porta e o monstro então some de vista. Volto a tirar uma soneca de pé.

Quando amanhece no Rio Negro — e a cor da água passa do azul marinho pro roxo-enevoado e depois pro azul escuro — os passageiros formam fila pro banho (a água aparentemente é bombeada do rio para alguma caixa), para escovar os dentes, para encher os pratinhos de bolo e os copinhos de suco de saquinho. Então alcançamos Santa Isabel (pop. 23,092), uma cidade que se de longe parece perto, de perto mesmo se mostra minúscula — o que é uma enganação, visto que o município se estende floresta adentro até ter o tamanho maior que a Croácia. Completamos 24h de viagem quando a lancha finalmente deixa a vista do município para trás. Roubo o lugar de uma amiga, longe da influência maligna do ar-condicionado, e consigo tirar umas boas horas de sono.

O fundo do Hayako, com dois imediatos se distraindo ao fim da viagem. Em algum lugar entre Santa Isabel e São Gabriel

Na hora do almoço (arroz, feijão, macarrão, salada de repolho, aqui tudo é permitido), a ansiedade aperta. O tempo de viagem previsto se esgotou, e pelo visto não houve nenhum problema na viagem — na época de seca, os barcos tinham que estacionar à noite, pelo risco de encalhar nas pedras. Mas, meio dia de uma véspera de natal quente pra burro, e o mapa indicava que ainda estávamos a 100km de São Gabriel da Cachoeira. Nas telas, já enfadonhas, passava uma comédia sobre uma mulher que era uma espiã plus-size ou algo assim. Os passageiros — a maioria agora composta de índios e uma mulher que só posso definir como muito perua — já dão sinais de tédio. (No corredor, de tempos em tempos, passa um menino que só de olhar pra ele você já sabia que ele era um peste. Sério: o cabelo tigelinha loiro; os olhos claros, cavados e fundos; as mãos sempre apontando e os dedos curvos na boca, quase como o ET. Se eu fosse do Direito, diria que essa criança era lombrosianamente peste.)

Para fugir do frio, da perua e do pentelho, me refugio uma última vez no fundo do Hayako. A área aberta, onde são servidas as refeições, agora está vazia, e com uma mangueira os imediatos lavam os utensílios. O Rio, nesse momento, tem algo como 2 ou 3 km de largura, umas ilhas grandes no seu caminho. O barulho do motor segue à toda, e o resultado disso é o V quase infinito que ele deixa na água. A água agora parece laranja (é), como se estivesse suja (não estava). Não parece, mas percorremos o equivalente a São Paulo a Porto Alegre de barco. Apenas naquele dia. Apenas dentro do Estado do Amazonas. Fica fácil entender a impassividade dos outros passageiros e imediatos, muito provavelmente mais acostumado àquela viagem que eu: o Rio Negro é um ente imensurável, grande até a última escala, cercado de uma floresta tão densa que…sei lá. É muito grande e eu me perdi por um ou dois minutos naquela cena, sem raciocínio nenhum, apoiado numa parede do banheiro.

Eu ficaria mais ou menos assim até o Hayako apontar no Camanaús, nome de um dos diversos portos de São Gabriel. Irina e Sérgio, meus dois companheiros de viagem, me acompanham no desembarque e tiram fotos enquanto aguardo nossas malas saírem do porão. Junto a elas repousavam caixas de uvas, morangos, carnes para as festas de fim de ano. Vieram amontoadas juntas a todo tipo de bolsa, mochila, mala de viagem, valise. As coisas chegavam em São Gabriel pela lancha, e íamos tirando fotos do dia extremamente quente e claro no Rio Negro.

Nossas malas saem, e então temos um pequeno dilema: a cidade fica a 26 km de distância, e não há ônibus à vista. O táxi nos cobra R$70 pela viagem, inviável para três mochileiros. Nos sentamos numa esquina sobre um montinho de palha. Lembro que é véspera de natal — algo que passou despercebido naquela exaustiva viagem — e, instintivamente, desejo um feliz natal pra todo mundo ali mesmo.

Camanaús, São Gabriel da Cachoeira, uma véspera de natal. Ao fundo, o Hayako

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