O Mais Belo Futebol da Terra: o que somos, porque nos destruímos

József Bozsik
60 min readDec 23, 2022

“Nosso futebol mulato (…) é uma expressão de nossa formação social, (…) rebelde a excessos de ordenação interna e externa; a excessos de uniformização, de geometrização, de estandardização; a totalitarismos que façam desaparecer a variação individual ou espontaneidade pessoal”. Gilberto Freyre

“A esta curiosidade corresponde uma visão muito tolerante, quase amena. As pessoas fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam”. Antônio Candido.

“Antes, quando um jogador invadia a posição de outro companheiro, levava logo uma bronca: “Cai fora, aqui você atrapalha. Vá para sua posição”. E o treinador apoiava esta réplica. Um jogador que disser isto hoje não merece entrar no campo”. João Saldanha

“Pass and move, pass and move. Nowadays they wouldn’t allow you to do this”. Fàbregas.

“Tudo é ‘dois ​​toques’. Dois toques. Porque todos treinam com dois toques, todos jogam com dois toques. Nós aplicamos ‘El Dostoquismo’, como eu chamo. E digo isso como um grande expoente de muitos desses métodos e formas de pensar! Eu sou como um pai arrependido”. Lillo

“Cuando llegué a Barcelona, un DT me dijo; acá hay q largar la pelota, vamos a jugar a dos toques y no gambeteés tanto. Yo no le daba bola y los primeros años no jugaba nunca”. Messi.

“Vamos, Diego”. Pede Messi olhando para o céu, conversando com o eterno. A bola é o espelho dos sonhos do menino, por onde saem os gols imortais de Maradona. O menino sonha com uma multidão gritando o seu nome, mas também acorda cercado pelos monstros da desilusão. Messi olhou para o céu. Deve ter lembrado da dor, do abandono, das críticas, das eliminações, dos gols perdidos, das frustrações, mas uma força estranha sempre o obrigou a tentar[1].

Enquanto a bola deslizava no gramado, sussurram os ecos da infância na mente dos jogadores. O domínio argentino é absoluto. A taça está na mão. Por 2 minutos, dois fios, dois sopros, duas respirações, dois gols franceses, tudo desmorona. Viver é ter tudo nas mãos e não ter nada logo depois. Mas o sol ainda brilha na estrada que Messi nunca passou. Uma força estranha leva o menino a tentar de novo. Agora a bola entra por um suspiro, um gemido, por una cabeza, todas las locuras, su boca que besa, borra la tristeza, calma la amargura. A bola escorrega ao gol no ritmo de Gardel.

Não era o fim. Uma mão argentina na taça, uma mão argentina na bola. Vertigem. Desespero. Vamos aos pênaltis. Aparece Dibu, o menino maluquinho que desconhece o peso da responsabilidade. Ri, brinca, xinga, se diverte como se estivesse num potrero em Mar Del Plata e não num jogo de vida e morte para todo sempre. A sabedoria está com Dibu, pois a caneta que define o destino já tinha deixado as suas linhas tortas. Não era mais possível perder. Chegou a sua hora, menino de Rosário. Ao chão se atira, aliviado. A profecia que o menino vislumbrava na bola se cumpriu. O mundo é dele e dos seus amigos por um suspiro.

Pulsam paixão e lágrimas nas ruas argentinas. Os sonhos do menino dormindo com a sua bola se tornam festejo coletivo. 5 milhões cantam apaixonados pelas ruas como se a terra deixasse de ser um “vale de lágrimas” para se tonar um “mar de paixões”. Pessoas que jamais se viram, se falaram, se conheceram, resolvem comemorar a vitória daqueles jogadores porque a vitória agora é da nação e não apenas de um menino. Afinal, o que é um país? Por que brasileiros, argentinos, franceses, espanhóis imprimem sua digital no jogo, e carregam a felicidade de milhões de pessoas? Por que falamos em ‘futebol brasileiro’, ‘escola holandesa’, ‘estilo argentino’?

Uma nação não é uma realidade metafísica, que nasce sob a marca de uma essência transmitida a todos os cidadãos. Uma nação também não é um código genético instaurado em cada um de seus filhos. Tampouco, a nação é uma mera arbitrariedade, um amontoado de farsas, apenas um discurso dos poderosos para controlar sua população. A pergunta persiste: afinal, o que é uma nação? Ela é uma construção coletiva por várias gerações. Uma vida em comum em torno dos mesmos símbolos, cultura, instituições, linguagem, hábitos. Nação é reconhecimento. A placa do consultório médico indica silêncio em Zurique e em Brasília. Contudo, em Zurique, segue-se a ordem à risca, sem chance para negociações ou hesitações. Em Brasília, uma TV está ligada perto da placa de silêncio, as pessoas falam em tom baixo, sem maiores transtornos porque as pessoas reconhecem a natureza da ordem, mas negociam com suas implicações. A ordem entra em cena apenas se o barulho atingir o patamar do incômodo. Ao perceber essas diferenças entre os povos, reconhecemos a diversidade da vida humana e, ao mesmo tempo, a sua universalidade. Nos reconhecemos como brasileiros percebendo essas diferenças entre cultura, símbolos, costumes, linguagens em relação aos outros povos.

Nos dizeres do historiador Benedict Anderson, uma nação é uma “comunidade imaginada”. Ela não é “real” porque não há interação pessoal entre os seus integrantes, mas estes se veem como parte de um grupo. A afinidade no grupo é socialmente construída através dos patrimônios culturais e da linguagem.

Assim, quando falamos de uma cultura nacional não estamos dizendo que tudo e todos naquele território compartilham os mesmos sentimentos e comportamentos, mas que há um sentido comum em torno dos símbolos, das instituições, da cultura, das artes, da linguagem que foram construídos através das gerações. Esse sentido cria um sistema de representação cultural que gera uma comunidade simbólica a que nos sentimos pertencidos, criando o fenômeno da ‘identidade’. Ser brasileiro significa se sentir pertencido dentro dessa “comunidade imaginada”, compartilhando experiências sob instituições e numa língua em comum.

Falar do futebol de nações, das glórias e tristezas que unem o povo aos jogadores em campo, significa refletir sobre o povo e a cultura nacional. Alguns contestam a importância da cultural nacional devido à globalização. É justamente o inverso. A globalização aproximou o contato intercultural, as relações de força e imposição entre as culturas, mas também tornou mais evidente aquilo o que somos, o que nos faz diferentes, e as experiências compartilhadas. A cultura continua sendo fundamental para o futebol.

O maior erro dos analistas de desempenho no Brasil e de Tite é pensar no futebol como uma técnica com um manual do que deve ser feito e do que não deve ser feito. Praticar o bom futebol seria como seguir as regras empiricamente provadas para construir adequadamente e de maneira mais eficiente um prédio. A eficiência seria apenas a boa execução dos métodos mais adequados e provados pelos times vencedores. O futebol seria apenas uma questão de trabalho e busca pela perfeição em cada detalhe. A cultura não importaria. Esse dilema também aparece constantemente no debate econômico. Por essa linha de raciocínio, a economia de um país deveria ser guiada apenas pelos métodos e conhecimentos empíricos mais recentes e provados pelos países de sucesso. Esse raciocínio é apenas parcialmente correto. O futebol — como a economia — não pode se abster da ciência, do conhecimento coletivo e metodicamente averiguado, daquilo que é comum a toda humanidade e não apenas característica de um povo. Contudo, essa é apenas uma parte do futebol e da economia. A parte mais visível, superficial e controlável.

O futebol e a economia de um país também são construções da cultura. Ninguém pode tomar sábias decisões sobre os instrumentos econômicos de um país sem antes compreender o contexto e a cultura do lugar. A melhor e mais científica política industrial na Alemanha nunca será a mesma a ser aplicada na Índia. Cada lugar possui os seus próprios mistérios. No futebol, ocorre o mesmo. Nesse sentido, não existe um “futebol moderno” a ser seguido, mas tendências, conhecimentos e métodos que vão se provando na prática, orientados pela cultura de cada lugar, que os cria, os recria, os reatualiza. A cultura do lugar (com suas instituições) é a parte invisível e mais profunda que, na verdade, comandam a criação de tendências, métodos e conhecimento do futebol. Podemos aprender e nos inspirar com os métodos de outros lugares, mas jamais poderemos simplesmente replicá-los na nossa casa. Esse caminho seria o da estagnação e da mediocridade. O melhor caminho é aprender com o de fora sem buscar reproduzi-lo, mas imaginar e inventar a partir de dentro.

A partir da metade do século XX, o futebol se estabeleceu como parte importante da cultura de massas, e o futebol brasileiro tornou-se símbolo de nossa própria identidade nacional. Passamos a ser reconhecidos no exterior por nosso futebol. Despertamos admirações em todos os povos. Mais do que cinco títulos mundiais, a maior glória do nosso futebol é o sorriso de uma criança jamaicana, a felicidade de um indiano, a admiração de um sul-africano, a marca de jogo bonito em nossa arte feita com os pés. Falar em “nosso futebol” já é falar em “nós” como povo. O futebol brasileiro — com seus métodos, conhecimentos, características — só foi possível pela orientação dada por nossa cultura. O jogo bonito brasileiro pertence ao povo brasileiro e a sua identidade.

Para entender o futebol brasileiro e porque fomos admirados em todo o mundo pelos sonhos que desenhávamos através da nossa arte com a bola no pé, precisamos primeiro compreender o povo brasileiro — não como um coletivo dogmático ou metafísico, nem como coisa artificial, mas como uma “comunidade imaginada”. O povo brasileiro é o artífice do futebol brasileiro. Só voltando a ele, poderemos ter a mesma glória.

1. O Povo Brasileiro

1.1. A ordem flexível: a resistência criativa

O Brasil foi contemplado por vários intérpretes. As discussões na literatura, nas artes, na academia sobre suas singularidades, características e antagonismos são múltiplas. Para além dos infinitos debates, podemos apresentar algumas características similares da identidade brasileira, pensada como uma ‘comunidade simbólica’ e não como uma imutável metafísica.

Um dos mais importantes e reconhecidos intérpretes brasileiros aqui e no exterior é Gilberto Freyre. A sua tese de democracia racial é facilmente criticada hoje se olharmos para o passado com lentes anacrônicas. Nos anos 1930, quando Freyre começa a parte substancial de sua obra, as leis de segregação racial estavam vigentes nos Estados Unidos e na África do Sul, e mesmo onde essas leis eram consideradas imorais, o negro sequer era considerado um ser humano pleno no discurso público. No Brasil, os negros eram considerados indolentes e destemperados para assumir cargos na diplomacia ou na alta burocracia. Nessa época, os negros já jogavam nos clubes brasileiros, mas se tornavam bode expiatório em cada derrota. Após as derrotas nas Copas de 50 e 54, não faltaram cronistas para culpar a “irresponsabilidade”, o “indolência”, o “despreparo” do futebolista negro em comparação com os hígidos brancos europeus. De mesmo modo, a miscigenação racial entre brancos, negros e indígenas ainda era vista como uma sina nacional, a trava que não nos permitia ser ricos e desenvolvidos como os brancos europeus. A nação estaria condenada pela presença das outras raças.

Influenciado por novos métodos da sociologia cultural de Franz Boas, Gilberto Freyre rompe com o determinismo racial e sua consequente condenação. O sociólogo pernambucano afirma que a miscigenação racial é o núcleo da identidade brasileira. E da miscigenação flui uma extraordinária riqueza cultural em nossos hábitos, costumes, culinária, cantigas, etc.

Os laços e rituais nas relações cotidianas mostram uma sociedade flexível, e uma rica resistência criativa através da cultura. O negro, acossado pela escravidão e depois pela exclusão social, expressava na cultura a sua resistência, criando no país uma civilização miscigenada, flexível, cheia de hibridismos e astúcias. A nossa sina seria, na verdade, uma bendição. A força da civilização brasileira e a sua grande contribuição para o mundo está em nossa miscigenação com o seu patrimônio cultural. É óbvio que Freyre não nega o racismo e nem os conflitos sociais e de poder, mas a sua sociologia é uma resposta a um contexto que negava a presença positiva do negro na sociedade brasileira.

A “identidade brasileira” só existe a partir da miscigenação, da contribuição dos três elementos raciais (branco, índio, negro). A miscigenação traria também um elemento flexível em todas as representações culturais. Nossa religiosidade repleta de sincretismos, elementos pessoais, e transformação dos festejos para os reis africanos e divindades politeístas em homenagens a Nossa Senhora e aos santos do catolicismo. A nossa culinária com a mistura das técnicas e costumes africanos e europeus com os produtos locais e o enraizamento indígena. O nosso folclore que mistura elementos africanos, ibéricos e indígenas. E o nosso futebol seria mulato (o símbolo da miscigenação racial e da pátria), pois extremamente flexível, plástico, artístico, que quebra com as rígidas normas táticas europeias, rompendo com as simetrias geométricas ao articular um complexo sistema de compensações coletivas entre os jogadores.

O “futebol mulato” é expressão da miscigenação e de nossa ordem flexível, fruto da riqueza da formação do povo brasileiro. O tema da ordem também foi abordado por Antônio Candido, outro grande intérprete brasileiro, através da figura do malandro no romance “Memórias de um Sargento de Milícias”, livro de Manuel Antônio de Almeida que retrata o ‘serelepe’ Leonardo, que cresce no subúrbio carioca e se torna um sargento de milícias. No clássico ensaio, “Dialética da Malandragem”, Candido chega a conclusão que “diversamente de quase todos os romances brasileiros do século XIX, mesmo os que formam a pequena minoria dos romances cômicos, as Memórias de um sargento de milícias criam um universo que parece liberto do peso do erro e do pecado”.

Romance de transição do romantismo ao realismo, as Memórias mostram como a vida real dos brasileiros cria uma ordem flexível diferente das demonstrações constantes de moralidade do puritanismo. Como alude Candido, na formação histórica dos Estados Unidos, a lei é estrita, pois a sociedade se baseia em forte repressão interior, exigindo elevados graus de autodisciplina. No entanto, se a repressão interior é o que gera a identidade e a união do grupo, dando rigidez a ordem, também desumaniza o outro, o elemento externo, que pode ser alienado:

“Na formação histórica dos Estados Unidos houve desde cedo uma presença constritora da lei, religiosa e civil, que plasmou os grupos e os indivíduos, delimitando os comportamentos graças à força punitiva do castigo exterior e do sentimento interior de pecado. Daí uma sociedade moral, que encontra no romance expressões como A Letra escarlate, de Nathanael Hawthorne, e dá lugar a dramas como o das feiticeiras de Salem. Esse endurecimento do grupo e do indivíduo confere a ambos grande força de identidade e resistência; mas desumaniza as relações com os outros, sobretudo os indivíduos de outros grupos, que não pertencem à mesma lei e, portanto, podem ser manipulados ao bel-prazer”.

Em síntese, os puritanos criaram uma sociedade com um forte elemento de repressão interior (autodisciplina), pois fariam parte da “comunidade de eleitos”, justificando a violência disciplinadora contra os “não-eleitos”. Esse tipo de ordem — baseado na repressão interior — carrega uma forte coesão social, bastante respeito pela letra da lei, mas também uma ordem inflexível e hierárquica.

O Brasil miscigenado, sincrético e de formação católica, construiu a sua ordem e suas instituições por outros pressupostos. Aqui, a ordem foi construída pela repressão exterior e não interior. O primado da lei estabelece uma série de limitações, sobrando pouco espaço para a culpabilidade interior. Diante disso, as pessoas são vistas no livro de Almeida a partir dos seus prós e contras, todos praticam pequenos erros, mas também fazem boas ações. Um compensa o outro nesse universo social de baixa culpabilidade. A identidade brasileira baseada na miscigenação criou uma ordem mais flexível:

“As duas situações diversas se ligam ao mecanismo das respectivas sociedades: uma que, sob alegação de enganadora fraternidade, visava a criar e manter um grupo idealmente mono-racial e mono-religioso; outra que incorpora de fato o pluralismo racial e depois religioso à sua natureza mais íntima, a despeito de certas ficções ideológicas postularem inicialmente o contrário. Não querendo constituir um grupo homogêneo e, em consequência, não precisando defendê-lo asperamente, a sociedade brasileira se abriu com maior larguesa à penetraçao dos grupos dominados ou estranhos. E ganhou em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência”.

Ou seja, no mundo puritano, tudo é permitido desde que não seja proibido em lei, que possui comandos básicos e não estendidos, mas aquilo que está proibido em lei é perseguido a ferro e fogo, sem negociações e flexibilidades. O resto de fora da lei é fortemente disciplinado pela sociedade, pela moral pública, criando um enorme grau de repressão interior e culpabilidade. Enquanto isso, no Brasil, muitas coisas são proibidas, mas tudo que é proibido pode ser negociado, flexibilizado. A repressão é mais exterior do que interior, com baixo nível de repressão da moral pública. Não é à toa que vários de nossos heróis eram figuras errantes, mas com alguma graça que os redimiam. Desde vilões cômicos como o Sinhozinho Malta e a Viúva Porcina à sensual Tieta, passando pelo problemático Riobaldo ou pela saga de redenção de Renato Villar. Os personagens da cultura brasileira não se engrandecem pela perfeição moral, mas por alguma graça que carregam e que, no final de tudo, os redimem de todos os pecados que cometeram. Como diz Candido: “As pessoas fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém merece censura”.

Desse ponto de vista, é preciso astúcia para negociar com a ordem. Nisto, consiste a resistência criativa do nosso povo, que prefere negociar e “dar a volta” no mandonismo e na violência através da sua criatividade do que partir para o confronto direto. A vida é encarada como uma curiosidade, uma banalidade humorística, uma divina comédia.

As sociedades se organizam através de valores, leis que determinam o lícito e o ilícito. Essa ordem pode se estabelecer de várias maneiras. Nem sempre a ordem social ou do futebol é inflexível. Em texto recente, traduzido ao espanhol[2], expliquei como a ordem no futebol não precisa ser necessariamente uma inflexível determinação especial e de disciplina corporal, mas que pode ser também uma negociação flexível do tempo e do espaço entre os jogadores.

1.2. A malandragem: a inventividade e o improviso

Um dos elementos da ordem flexível e da negociação nas frestas entre o lícito e o ilícito está na figura do malandro, central no ensaio de Antônio Candido. No livro “Memórias de um Sargento de Milícias”, Almeida torna a dicotomia moral e imoral mais complexa, mostrando que na vida real do povo brasileiro se criam acomodações entre os grupos diante da ordem e da lei.

Através da vida cotidiana, Almeida desenha um mosaico da arbitrariedade das elites brasileiras, calcada na lei e na ordem. O trabalho escravo, ainda presente no século XIX, é apenas a ponta mais aparente dessa violência. Todavia, essa aspereza da realidade, as atribulações que a gente enfrentava para sobreviver, entre o trabalho livre e escravo, eram confrontadas com astúcia pela população, representada pelo arquétipo de Leonardo. Contudo, a astúcia nem sempre tinha resultados positivos, mas cômicos. Muitas vezes, enfrentando as querelas da vida prática, Leonardo e o seu pai materializam essa dialética: “a tolice, que afinal se revela salvadora, e a esperteza, que muitas vezes redunda em desastre, ao menos provisório”. Nessa comédia do cotidiano humano, opressão e resistência não aparecem como lados estanques ou simplesmente morais, mas como um processo cheio de inversões, construções, reviravoltas.

Candido não observa o malandro apenas no romance, mas, a partir dele, a posterior construção de um arquétipo. O malandro anda com suas respostas espertas, inventivas, transgressoras, mas também quebra a cara, se enrosca, se complica. Ele só não pode perder a graça que redime a todos os tipos sociais no final. O baixo nível de repressão interior permite ao malandro explorar as astúcias contra à ordem, criando cenários inusitados.

Em simultâneo, o malandro não é apenas um espertalhão cômico, mas também um sujeito sofrendo com a repressão exterior, buscando maneiras criativas de viver nesse cenário. O malandro também é um resistente. No fim das contas, ele é apenas um arquétipo da inventividade e do improviso do povo brasileiro para sobreviver diante de condições inóspitas ou conflituosas cravadas diretamente na lei e na ordem. Como a ordem é um duplo (por um lado, reflexo da violência; por outro, um reflexo dos valores sociais como “não roubar, não matar”), a ação do malandro também é um duplo: astúcia contra a ordem injusta, esperteza maliciosa contra a parte justa da ordem. Sobre a dialética da ordem e da transgressão (desordem) no romance, diz Candido:

“Este traço dá o sentido profundo do livro e do seu balanceio caprichoso entre ordem e desordem. Tudo se arregla então num plano mais significativo que o das normas convencionais; e nós lembramos que o bom, o excelente padrinho, se “arranjou” na vida perjurando, traindo a palavra dada a um moribundo, roubando aos herdeiros o ouro que o mesmo lhe confiara. Mas este ouro não serviu para ele se tornar um cidadão honesto e, sobretudo, prover Leonardo? “Tutto nel mondo è burla”. É burla e é sério, porque a sociedade que formiga nas Memórias é sugestiva, não tanto por causa das descrições de festejos ou indicações de usos e lugares; mas porque manifesta num plano mais fundo e eficiente o referido jogo dialético da ordem e da desordem, funcionando como correlativo do que se manifestava na sociedade daquele tempo. Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz”.

O malandro habita essa fresta entre a ordem e a desordem, entre o determinado e o caótico, entre o lícito e o ilícito. Numa ordem flexível, feita de negociações, o malandro busca sobreviver com improviso e inventividade, nem sempre no caminho do moral ou do lícito, mas que nesse espetáculo da comédia humana, acaba se redimindo no final por não perder a sua graça. O seu dom lhe redime. O malandro nos alude a outra característica do povo brasileiro: a importância da personalidade e do personalismo.

1.3. O poder da personalidade: a audácia do aventureiro

Em 1936, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda publicou “Raízes do Brasil”, um dos maiores clássicos da interpretação do Brasil. No primeiro capítulo, “Fronteiras da Europa”, o sociólogo trata das tradições ibéricas e da sua implantação na formação do povo brasileiro. E um dos nossos principais traços de fundação é a cultura personalista.

Na cultura ibérica, o valor conferido ao indivíduo na sociedade está associado com a sua autonomia diante dos demais. A autossuficiência é fundamental:

“Pode dizer-se, realmente, que pela importância particular que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de sua originalidade nacional. Para eles, o índice do valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes”.

Buarque nota que a nobreza lusitana havia elevado grau de mobilidade social ao contrário da francesa, pois “no fundo, o próprio princípio de hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal entre nós”. Sem uma hierarquia de fortes expressões, o indivíduo ibérico possui um mundo em aberto para provar o seu valor pelo talento, buscando o reconhecimento social. Essa tradição ibérica traça um forte caráter na identidade do povo brasileiro. Acreditamos mais no dom, no talento, na graça do indivíduo que age bem ou de maneira virtuosa do que nas associações, instituições, coletividades. Seria mais confiável grandes craques em campo do que um grandioso sistema coletivo com jogadores medíocres. Esse arquétipo é chamado por Buarque de “aventureiro”. O brasileiro, por origem ibérica, conquista o mundo através da ética da aventura, enquanto o calvinista se afirma no mundo pela ética do trabalho. Explica Buarque:

“Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro — audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem — tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo”.

Afirma-se no mundo através da aventura é uma construção pré-artística que obriga a criatividade que, por sua vez, necessita do ócio, da irresponsabilidade, do sossego, da instabilidade. O nosso personalismo paira acima da formalidade institucional, cria laços pessoais, mas também reivindica uma sabedoria lúdica da vida. O indivíduo brasileiro se afirma diante dos demais pelo seu dom, talento, pela aventura, criatividade, pela audácia para conquistar. Não importa se Romário discutiu com um colega, foi para praia após o treino, escarneceu de um jogador adversário, pois ele é admirado e se redime através do seu talento, da audácia e inventividade de aventureiro num campo de futebol.

Esse tema também é fundamental nos caminhos de Riobaldo, personagem-central de “Grandes Sertão: Veredas”, clássico de João Guimarães Rosa. A travessia de Riobaldo é também um processo de autoconhecimento, em que o seu dom fica emparelhado no dilema entre aceitar um pacto fáustico com o demônio pelas mesquinharias do mundo-sertão (dinheiro, poder, etc.) ou usá-lo para se tornar um “homem definitivo”, um homem que ganhou o respeito social (ascendeu para “nobreza”) pelo seu dom, que se redimiu por sua obra de aventureiro, por sua autossuficiência.

Esse apelo à autossuficiência não significa individualismo. A travessia de Riobaldo não é solitária, mas repleta de companhia, histórias, perigos e experiências compartilhadas. Contudo, a descoberta de si no mundo é pessoal e intransferível. O retorno de Ulisses para casa ou a transformação de Riobaldo em “homem definitivo” são epopeias de afirmação da autoconsciência. Riobaldo é, na verdade, a personalidade que cria e guarda o imaginário do lugar.

Nessa epopeia de afirmação da consciência individual, também vemos os elementos de plasticidade cultural. A religião aparece para Riobaldo a partir do sincretismo. Ao invés de seguidor intransigente de um dogma, a relação pessoal com o seu “guru espiritual” é mais importante. Riobaldo confia mais no dom de Compadre Quelemém do que nas instituições, doutrinas, formalidades. Esse triunfo das relações pessoais também tornam a nossa cultura mais plástica.

1.4. Plasticidade cultural: o local e o universal

No seu grande clássico, Guimarães Rosa transforma o sertão (local) em alegoria do Brasil e do mundo, um espaço permeado de duplos: o local e o universal, a autonomia e a dependência, a consciência e o engano, o urbano e o rural, a redenção e o pacto com o demônio por dinheiro e poder. Os duplos permeiam toda travessia de Riobaldo, pois ele é um mediador do lugar, responsável por guardar a memória do local e afirmar a sua identidade. Riobaldo é o sertanejo, o brasileiro, a humanidade, pois — para mediar todas as tensões dos duplos — ele retorna as raízes do local em seu processo de autoconsciência.

Riobaldo resolve o conflito entre a memória local e o trabalho universalista da modernidade ao se transformar em “homem definitivo”, isto é, retornar para as raízes do lugar ao invés de fazer um pacto fáustico com o demônico por conhecimento, riqueza e poder. Ela escapa da ilusão ao não renunciar ao novo e ao de fora, mas retirar deles as suas energias. Com essa dialética, Guimarães Rosa arremata o livro: a travessia de Riobaldo é a descoberta dessa grande riqueza de toda cultura. Ela resiste ao fincar suas raízes no lugar, abdicando da homogeneização e da autodestruição oferecidas pela modernidade, mas sem se fechar ao novo e ao de fora. Ela é perene reatualização.

Esse conceito de plasticidade cultural encontrado em toda narrativa rosiana possui afinidades com o conceito de antropofagia de Oswald de Andrade, que busca a definição de um caráter nacional através dos nossos elementos primitivos. É preciso retornar a raiz para depois aprender a alimentar esta raiz, e não a deixar morrer pela ação do tempo. Oswald descobre a resposta no ritual antropófago dos indígenas brasileiros. No ritual religioso, os guerreiros devoravam o de fora para assimilar e se apropriar das suas energias. Os índios não perdiam sua raiz, mas a alimentavam com as energias exteriores.

A antropofagia de Oswald é devoração, apropriação, assimilação do outro, sem abdicar das raízes da identidade nacional. Tanto no “Manifesto da Poesia do Pau-Brasil” (1924) quanto no “Manifesto Antropófogo” (1928), Oswald busca resolver o duplo da modernidade ao deglutinar o de fora para dar energia ou revitalizar os resíduos da cultura nacional. Com isso, Oswald está dizendo que não devemos olhar para o mundo desenvolvido, olhar para a Europa, e buscar a simples imitação como colonizados culturalmente. Ao contrário, no turbilhão moderno, devemos redescobrir as nossas raízes primitivas, as raízes da identidade brasileira, as suas singularidades, e alimentar essa vitalidade com a energia de fora, do estrangeiro, do outro. A antropofagia enriquece nossa cultura sem abdicar dela para os modelos de imitação do de fora.

Assim, a miscigenação, a flexibilidade da ordem, a ausência de repressão interior, a dialética do malando, o personalismo do aventureiro, e a plasticidade cultural do antropófago se conjugam na identidade do brasileiro. Nós, como parte dessa comunidade simbólica, carregamos a marca desse imaginário flexível, inventivo, sensual, feito de improvisos e surpresas, com tantas curvas como uma bela dança.

2. O Futebol do Povo Brasileiro

Partiremos de uma premissa básica: o futebol brasileiro só pode ser feito pelo povo brasileiro. O nosso jogo, as nossas características, as nossas escolhas são parte de nossa cultura. O futebol é parte integrante da vida material, afetiva e simbólica do povo. O nosso jogo foi forjado pelas características do povo brasileiro.

No Diário de Pernambuco, Freyre publica o artigo intitulado “Foot-ball Mulato”, que seria uma ordem flexível, sem “excessos de ordenação interna e externa”, sem determinações geométricas, mas com assimetrias, abertura para autossuficiência e brilho pessoal. Nas palavras do sociólogo, “o mulatismo brasileiro se fazia marcar por um gosto de flexão, de surpresa, de floreio que lembrava passos de danças e de capoeiragem. Dança que permitia o improviso, a diversidade, a espontaneidade individual”. A miscigenação “deseuropeizou” o futebol brasileiro. O nosso estilo de jogo era um reflexo da formação social brasileira. O nosso futebol seria dionisíaco (emocional, assimétrico, exacerbado), e não apolíneo (racional, simétrico, contido).

Influenciado pela sociologia cultural de Gilberto Freyre, o escritor José Lins do Rego, fanático torcedor do Flamengo, foi um dos primeiros a escrever sobre isso nos maiores jornais em circulação do Rio de Janeiro. Lins do Rego defendia que a integração do negro no futebol brasileiro possuía um grande valor cultural. O nosso futebol não poderia ser uma réplica inglesa com os seus termos como “foot-ball” e “goal-keeper”, mas uma representação cultural do povo brasileiro, com as suas danças, dribles, fantasias.

Na mesma esteira de Freyre, Mário Filho escreveu “O Negro no Futebol Brasileiro”, com prefácio do sociólogo pernambucano. Ele narra a passagem do amadorismo ao profissionalismo no Rio de Janeiro e a integração do negro no jogo. No prefácio, Freyre afirma que o futebol brasileiro pela integração do negro “afastou-se do bem-ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas”.

Durante toda década de 50, o jornalismo esportivo foi incorporando os elementos culturais e literários ao futebol. No final da década, Nelson Rodrigues se destaca entre os novos cronistas do futebol. Em 1963, a TV Rio estreia a “Grande Revista Esportiva”, o primeiro programa de debate com grandes cronistas como Armando Nogueira, João Saldanha e Nelson Rodrigues. As discussões reproduziam a linguagem e a emoção do torcedor, aproximando o jogo do cotidiano, enquanto explorava os seus laços culturais.

Por toda década de 60 e começo da década de 70, as crônicas de Nelson desenhava arquétipos da vida brasileira no futebol. A relação entre futebol e cultura já estavam estabelecidas e agora Nelson tornava em literatura todos os elementos do futebol do povo brasileiro. O peralta, o malandro, o menino-rei, a redenção, a traição, a maldição da viuvez, todos os elementos da grande história da humanidade que forma a literatura universal estavam presentes no futebol. Essa representação literária do jogo também explorava personagens, lendas, símbolos da cultura brasileira.

Após o tricampeonato brasileiro em 1970 no México, Nelson escreveu o imortal artigo “Dragões de espora e penacho”. O futebol brasileiro não era uma arbitrariedade, qualquer coisa, uma mera invenção do seu técnico, mas a representação simbólica do país, criando o “mais belo futebol de todos os tempos”. Nelson acusa os “entendidos” (a elite do jornalismo esportivo) de tentar europeizar o jogo brasileiro, ao pedirem pela imitação do estilo inglês, campeão em 1966. Para os “entendidos”, o futebol deveria ser mais rápido, físico, obediente, simétrico. Responde Nelson: “Mas os “entendidos” juravam que o futebol brasileiro estava atrasado trinta anos. E a famosa velocidade europeia? Essa velocidade existia entre eles, e para eles. Mas o Brasil ganhou de todo mundo andando, simplesmente andando. Com a nossa morosidade genial nós enterramos a velocidade burra dos nossos adversários”. Em contraposição ao europeu, o cronista carioca define o futebol brasileiro como uma posse pausada, uma bagunça organizada, uma busca pela virtuosidade do talento. O futebol brasileiro se baseava no gênio, na liberdade, na magia, na dança, na pausa, nas tabelas, nos dribles. O tricampeonato mundial coroava o nosso estilo de jogar futebol. O estilo do povo brasileiro. Esse estilo não foi formado uma única vez e por uma única pessoa, mas passou por várias ondas de formação e solidificação.

É óbvio que quando falamos em “futebol do povo brasileiro” não estamos falando de todos os jogadores e nem de todos os técnicos, mas daqueles que ficaram marcados simbolicamente como o “maior espetáculo da terra”, o futebol brasileiro que triunfou e encantou o mundo. O futebol de Pelé, Zico, Romário, Garrincha, Falcão, Sócrates, e tantos outros craques. O futebol de Flávio Costa, Zagallo, Zezé Moreira, Telê Santana, Coutinho, Ênio Andrade, Vanderlei Luxemburgo, e tantos outros.

2.1. A primeira onda: as diagonais

Em 1919, o governo brasileiro chegou a proibir a presença de negros e mulatos na seleção brasileira de futebol. Durante a década de 1920, era comum as ligas proibirem a presença de jogadores que não fossem brancos. O Vasco da Gama, a Ponte Preta e outros clubes foram pioneiros na inserção do negro e do mulato no futebol brasileiro. As barreiras foram caindo por uma constatação óbvia: dentro de campo, os nossos melhores jogadores tinham origem negra. Ainda assim, a cada derrota do clube ou da seleção, eles eram os escolhidos por setores da opinião pública para expiação. O Brasil faz sua melhor campanha na Copa de 1938 com o mulato Leônidas como artilheiro e um dos destaques da competição.

Com a profissionalização e a inserção do negro no esporte, o futebol brasileiro começa a se aproximar do seu povo. A partir da década de 1940, começamos a desenvolver o nosso estilo, as nossas concepções táticas, os nossos sistemas conforme as características do povo brasileiro. Por muito tempo, a literatura constou que o húngaro “Dori” Kürschner trouxe o WM (3 defensores, 2 médios, 2 meias, 3 atacantes) para o Brasil, mas não parece uma informação exata. Esse sistema já era adotado antes da sua presença no Rio de Janeiro em 1937. A grande inovação trazida pelo húngaro era o “estilo danubiano”, popularizado por Jimmy Hogan na Europa Central e do leste. O estilo inglês era simétrico, posicional, pois cada jogador permanecia em sua posição. Como as distâncias entre os jogadores eram maiores, os passes saiam mais alongados, e se pedia mais rigor físico. O estilo “danubiano” era oposto ao inglês. Ao invés da distância, a aproximação. Os jogadores saiam de suas posições, se aproximavam, e podiam trocar passes curtos, se movimentar, pisar em espaços diferentes. Na mítica Hungria de 1954, Czibor (um dos pontas) atravessava todo o campo, jogava na direita e na esquerda.

O contato brasileiro com o “estilo danubiano” provocou uma revolução e a primeira grande onda de formação do estilo brasileiro de jogar futebol. Com a presença dos negros e de novas formas de pensar a tática, o futebol brasileiro pôde se tornar mais plástico, irreverente, móvel, habilidoso, afastando-se das origens hierárquicas inglesas.

Flávio Costa é o grande nome da primeira onda. Flávio era um lateral-direito do Flamengo, que jogou no clube entre 1926 e 1936. De estilo aguerrido e líder do clube, rapidamente tornou-se treinador. Em 1937, o húngaro “Dori” assumiu o Flamengo e Flávio tornou-se o seu auxiliar. Em 39, com a ida do húngaro para o Botafogo, Flávio reassume o comando do rubro-negro. A sua segunda passagem dura até 1945, sendo exitosa com quatro títulos de Carioca (39, 42, 43, 44). Flávio assume a seleção brasileira em 1945 e concomitantemente o Vasco da Gama em 1947. Pelo cruz-maltino, vence o carioca de 47, 49 e 50. Pela seleção brasileira, venceu a Copa América de 1949 e foi vice-campeão na Copa de 50.

Mais do que títulos, Flávio Costa criou um estilo que se tornou modelo de vitória e brasilidade a partir da década de 1940. Todos queriam imitá-lo. O técnico carioca aprendeu as lições do Danúbio com Dori, e criou um estilo que não dependia de numerações táticas com suas simetrias. Costa elaborou um sistema onde o time se posicionava a partir das diagonais e criava assimetrias por todo o campo. Essas assimetrias formavam “escadinhas” para progressão de cada jogada.

Era impossível definir o sistema de Costa como 235, 325 ou 424. Era tudo isso e nada disso porque os jogadores exerciam funções em campo, e estas se compensavam, uma dialogando com a outra. O lateral-esquerdo se aventurava no ataque, o lateral-direito se tornava mais um zagueiro. O volante-direito (primeiro homem de meio-campo) recuava, ficando numa altura do campo diferente do volante-esquerdo (segundo homem de meio-campo). O meia-direita se tornava um terceiro homem de meio-campo, e o meia-esquerda se tornava praticamente mais um atacante. Os quatro homens de meio formavam uma figura assimétrica. Além disso, o time fazia uma diagonal da esquerda para direita, englobando o lateral-esquerdo, o volante-esquerdo, o meia-direita, e o ponta-direita, por onde o time ia progredindo em campo de um lado para o outro. Assim jogava o Brasil de 1950:

Para além das assimetrias, os jogadores tinham liberdade para se movimentar, trocar de espaço, conduzir a bola, arriscar um drible, tentar a jogada individual. A partir das diagonais, Flávio Costa cria a primeira onda de formação de um sistema nacional, que não é apenas utilizado por um sujeito, mas é reproduzido em grande escala.

No final da década de 50, quando os times vão saindo do 3–2–5 como esquema-base para o 4–2–4, as diagonais são o instrumento de passagem. O primeiro volante torna-se o “quarto-zagueiro”. E um ponta recua para defender, mas — em muitos casos — para formar também um quarteto assimétrico de jogadores no meio-campo, sempre a partir das diagonais. Um time que fizesse a diagonal a partir do lateral-esquerdo, recuava o volante-esquerdo, e tornava o meia-esquerda num “meia-armador”:

Assim, Flávio Costa é o primeiro grande artífice do futebol brasileiro. Ele constrói um sistema móvel através das assimetrias, onde o time progride em campo pelas “escadinhas”. Além disso, cada jogador está numa altura diferente do campo. Para o time progredir em diagonal, é preciso que o jogador mais próximo ao homem da bola, apoie em diagonal ao invés de se posicionar horizontalmente na mesma altura. Contra a simetria e posicionalidade do 325 inglês, o futebol brasileiro não tem uma nomenclatura numérica clara e cada jogador se posiciona numa altura diferente em relação ao companheiro.

Durante toda década de 50, esse sistema foi adaptado ao 424 com a manutenção das diagonais, a transformação de um médio em quarto-zagueiro, e a criação de um falso-ponta para completar o quadrado assimétrico de meio-campo.

Há muita mitologia sobre a influência de Béla Guttman no futebol brasileiro do final da década de 1950. Na verdade, antes da chegada do húngaro, o sistema utilizado em 1958 por Vicente Feola já era usado largamente nos clubes brasileiros. Antes de Béla, o Botafogo de 1957 usava a diagonal da esquerda para direita, e utilizava Quarentinha como um ponta-de-lança partindo da ponta-esquerda para formar o quarteto assimétrico no meio-campo:

O Vasco supercampeão de 1958 usava o mesmo sistema com Hélio de goleiro, Paulinho de lateral-direito, Bellini de zagueiro-central, Orlando de quarto-zagueiro, Coronel de lateral-esquerdo, Écio de médio, Rubens de meia-armador, Almir Pernambuquinho de ponta-de-lança, Pinga de falso-ponta pela esquerda, Sabará na ponta-direita, e Vavá de centroavante. O sistema está consolidado. Telê Santana, um dos criadores da terceira onda, será falso-ponta pela direita no Fluminense 1955 de Zezé Moreira, com Didi de meia-armador, Ramiro de médio, Átis de ponta-de-lança, Waldo de centroavante, Escurinho de ponta-esquerda, Telê como falso-ponta pela direita. A diferença é que a diagonal agora vai do lateral-direito ao ponta-esquerda.

O Brasil chega a Copa do Mundo de 1958 com os negros inseridos no jogo, uma nova crônica esportiva que trata da cultura e da literatura do jogo, e com um sistema e um estilo tático consolidado. Quem dá sentido a todas essas formas são as características do povo brasileiro. O futebol brasileiro pertence a ele. Vicente Feola, o nosso técnico em 1958, foi auxiliar de Flávio Costa na Copa de 1950 e já usava esse sistema consolidado no Brasil muito antes da chegada de Béla.

Na seleção campeã do mundo de 58, jogamos com diagonais e com cada jogador numa altura diferente como fazem os clubes brasileiros desde Flávio Costa. Vejamos primeiro as diagonais e o quarteto ofensivo no meio-campo:

O Brasil avançava constantemente através das diagonais, passando de Nilton e Zagallo para Didi e Pelé, terminando os ataques com Garrincha na ponta-direita ou por dentro com Pelé numa tabela. Além disso, cada jogador brasileiro está numa altura diferente no campo:

O futebol brasileiro arquitetado por Flávio Costa, pela inserção dos negros, pela formação social brasileira de Freyre, Mário Filho e Lins do Rego, das crônicas imortais de Nelson Rodrigues, o futebol brasileiro pertencente ao povo brasileiro, expressão máxima de nossa cultura, de nossos hábitos, de nossos estilos, ganha o mundo pela primeira vez. Mais do que isso, o nosso futebol, o futebol do povo brasileiro, encanta o mundo. É o mais belo espetáculo da terra. Movimentação, dribles, tabelas, fluidez artística. Tudo isso hipnotiza o público e os adversários.

O nosso jogo abdica da geometrização fixa, da ideia de posicionalidade (ataque posicional), e cria o papel artístico das funções (ataque funcional). Cada jogador adquire um papel como se estivesse no teatro da vida para ganhar a sua subsistência pela resistência criativa. O lateral-direito (Djalma Santos) é mais defensivo, apoia o ponta sempre por trás. O zagueiro-central (Bellini) comanda a defesa, faz a sobra. O quarto-zagueiro (Orlando) avança na saída de bola para se conectar ao lateral-esquerdo e recua sem a bola. O lateral-esquerdo (Nilton Santos) é mais ofensivo, faz a saída de bola. O médio (Zito) é o primeiro homem do meio-campo, deve proteger a defesa, unir os setores, avançar com passes curtos. O meia-armador (Didi) é o dono do meio-campo, o articulador, o “playmaker”, com toda frontal do meio-campo para si, deve criar e distribuir o jogo. O falso-ponta (Zagallo) recua para defender, faz a diagonal com os meias, fecha a área para pegar a segunda bola do ponta do lado oposto, forma um quarteto assimétrico no meio-campo. O ponta-de-lança (Pelé) recebe a bola do meia-armador e faz a jogada aguda por dentro, busca a jogada individual, a tabela com o ponta ou o centroavante e a definição para o gol. O ponta original (Garrincha) recebe a bola e faz a jogada lateral ou corta para dentro, ele é o artista dos dribles. O centroavante (Vavá) é o homem da área, mas também deve recuar e oferecer apoio e tabela para o ponta-de-lança.

O estilo do povo brasileiro de fazer futebol triunfa e se dissemina pelo país, pelo continente e pelo mundo. O nosso 442 assimétrico, “danubiano”, funcional, valoriza o teatro, a ética do aventureiro, o malandro, a força individual, o talento, o dom, a graça, a ordem flexível. É o futebol do povo brasileiro.

2.2. A segunda onda: o desenvolvimento das funções

A primeira onda sedimentou o jogo brasileiro. A segunda irá desenvolvê-lo ainda mais. Durante toda década de 1960, o futebol foi se tornando um esporte menos esticado no campo. Vários jogadores precisavam atacar e defender ao mesmo tempo, ocupar diferentes funções conforme a posição da bola ou no campo de defesa e ataque. A Copa de 1966 mostra um jogo mais físico e veloz. Era preciso repaginar o legado das diagonais de Flávio Costa.

O segundo grande artífice do futebol brasileiro foi Zagallo. No final da década de 1960, a maioria dos times brasileiros ainda jogavam num sistema-base de 424, com as diagonais e as mesmas funções. A partir do Botafogo e da seleção brasileira de 70, Zagallo desenvolve ainda mais as noções de funções (o ataque funcional).

Quando o time estava sem a bola, deveria defender em 442, com o retorno dos dois pontas. A equipe deveria recuar do meio-campo para trás para ter espaço quando recuperar a bola. Com a bola, as funções se tornaram mais plásticas e dependentes do lado da bola. O time não ataca mais com amplitude total, mas se organiza segundo o lado que a bola se encontra. Com a bola do lado direito, o lateral-direito ataca pela linha de fundo enquanto o lateral-esquerdo fica em diagonal defensiva, o ponta-esquerda vem ao centro, e o time se aproxima todo do lado direito. O time mantém a diagonal defensiva com o lateral do lado oposto fazendo um terceiro-zagueiro, e mantém as diagonais ofensivas com cada jogador numa altura e avançando em campo a partir das escadinhas:

Com a bola do lado esquerdo, o inverso acontecia. O lateral-direito (lado oposto da bola) fazia uma diagonal defensiva e ficava como terceiro-zagueiro, o lateral-esquerdo avançava, o time todo se aproximava do lado esquerdo, mantinham a diagonal ofensiva e defensiva, trocavam passes e se movimentavam:

As funções adquirem novos graus de desenvolvimento com Zagallo. Os laterais deveriam fazer a diagonal defensiva com a bola do lado oposto, e atacar o fundo do campo. Os laterais de Zagallo atacavam por fora e fechavam por dentro:

O primeiro volante protegia a defesa, e o segundo volante infiltrava, passando a bola e indo adiante para receber. Na seleção de 70, Gerson e Clodoaldo se revezavam no papel de primeiro e segundo volante.

Os pontas de Zagallo não eram mais os tradicionais, mas um meia-armador como falso-ponta pela esquerda (Rivellino), e um ponta-de-lança que virava um “segundo atacante” a partir da ponta-direita (Jairzinho). Com a bola, Rivellino entrava no meio-campo, se tornava um terceiro-homem de meio-campo, dialogava com Gerson e unia os setores do time para que a bola chegasse bem em Pelé, Tostão e Jairzinho. Riva era o motor da equipe para que ela chegasse ao ataque a partir de passes curtos, movimentação e não só de passes alongados e jogadas laterais. Na ponta-direita, o “10” do Botafogo, Jairzinho, não era um ponta-direita tradicional. Ele não se restringia a fazer a jogada de linha de fundo e ao cruzamento, mas entrava pelo centro do campo, virava um segundo atacante, acompanhando Tostão no ataque, e até mesmo atravessava o campo para jogar na esquerda. Os pontas de Zagallo:

Pelé mantinha as funções tradicionais do ponta-de-lança e aglutinava toda ação ofensiva da equipe. Tostão era um 9 mais móvel, mas se mantinha com as funções de um centroavante.

O futebol era um símbolo cultural do povo brasileiro, jogado de acordo com suas características, virtudes e limites. O último gol da Copa, o mítico gol de Carlos Alberto Torres, foi a chave-de-ouro do maior dos símbolos. Pelé, Gerson e Clodoaldo saem jogando do lado esquerdo, Clodoaldo dribla três italianos e toca para Rivellino na esquerda, que lança Jairzinho aberto na ponta-esquerda. Jair dribla o defensor, toca para Pelé ao centro. Nesse momento, o Brasil aglomera do lado esquerdo do campo: Gerson, Clodoaldo, Riva, Jairzinho, Tostão e Pelé. O lado direito está completamente esvaziado. A bola faz o balanço da esquerda para direita, e o lateral-direito, que estava em diagonal defensiva, é liberado para atacar o espaço vazio no lado direito. Torres vem embalando, chegando, invadindo o espaço, e acerta um maravilhoso chute no gol italiano:

O futebol do povo brasileiro desenvolvido por Zagallo era assimétrico, cheio de compensações, e buscava aproximar todo o time no setor da bola. A equipe progredia se movimentando, com os jogadores chegando no espaço (no ataque funcional, os jogadores vão até à bola) e não estando fixo no espaço (no ataque posicional, a bola vai até às posições). Quando o Brasil tinha a bola, todos os jogadores ofensivos se aproximavam do setor da bola, trocavam passes curtos, davam o passe e iam adiante para receber a bola de volta através de “paredes” (tabelas). O jogo brasileiro desenvolvia a lógica do Danúbio e fazia um futebol de aglutinar, esvaziar espaços, e “chegar” ao contrário do jogo mais posicional que fixava jogadores no espaço, racionalizava-o simetricamente, e a bola ia até cada posição, um futebol de “estar” e não “chegar”.

Com muita mobilidade, assimetria, tabelas, dribles, o Brasil de 1970 criou sonhos, derramou lágrimas, e se fez o mais belo espetáculo da terra.

2.3. A terceira onda: o desenvolvimento dos movimentos

Após o estrondoso triunfo no México, com o melhor futebol já praticado na face da terra, o futebol brasileiro durante toda década de 1970 tornou-se um caixa de ressonância dos últimos desenvolvimentos de Zagallo. As equipes passaram a reunir jogadores atrás para defender, e passaram a atacar conforme as novas funções e o lado da bola. O Atlético-MG de Telê Santana, campeão brasileiro de 1971, usava os mesmos padrões e funções da seleção de 70 com Tião de falso-ponta:

O Botafogo de 1971, um dos finalistas do Brasileirão, também usava os mesmos padrões:

O Cruzeiro da década de 1970, independente do treinador, era mais um que usava os mesmos padrões, mas com o falso-ponta partindo da direita:

Alguns times como o Internacional de Rubens Minelli irão apresentar um 433 mais clássico e europeu, até com o volante Batista de lateral entre 1976 e 1977 já sem Minelli. No entanto, a norma do futebol brasileiro era a reprodução da segunda onda de Zagallo. Os seus mais destacados continuadores foram Claudio Coutinho (preparador físico da seleção brasileira em 1970), Telê Santana, Oswaldo Brandão e Ênio Andrade.

A derrota na Alemanha e o encantamento com a Holanda de 1974 irá abalar o futebol brasileiro. Dentro das características da seleção de Rinus Michels, a função do líbero, a presença de dois pontas fortes buscando a linha de fundo, e o campo posicionalmente esticado não chamou tanta atenção no futebol brasileiro (com exceção de Rubens Minelli). O que mais influenciou o futebol brasileiro foi a intensa movimentação entre as zonas do “carrossel holandês”, a velocidade do jogo e dos passes, e a pressão ainda no campo de ataque para recuperar a posse da bola.

O futebol brasileiro reagiu às mudanças do jogo no final da década de 1970 e da década de 1980. Passamos a pressionar o time adversário ainda no nosso campo de ataque ao invés de rapidamente retornar para o campo de defesa como em 1970. Um dos motivos para Telê escolher Chulapa em 82 era a sua capacidade física para prender zagueiros e pressionar a saída de bola do adversário. Procuramos também atacar com mais velocidade nos passes. Contudo, o maior desenvolvimento e o que fomentou a terceiro onda foi o desenvolvimento da ideia de movimento.

O ataque posicional do carrossel holandês buscava unir a racionalização do espaço dos ingleses com o toque de bola curto da “escola danubiana”. A mobilidade entre os jogadores se dava a partir da troca de zonas. A bola viajava até as posições, e os jogadores trocavam de zonas sem que o time perdesse o desenho simétrico em campo:

Em contraposição, o futebol brasileiro era funcional (se organizava pelas funções) e se movia diferente dos holandeses. No nosso estilo, a bola não vai até às posições, pois os jogadores que se movem para recebê-la, criando diagonais e “ranhuras” (assimetrias) no campo. Era preciso desenvolver os nossos movimentos em campo sem se fixar no espaço como faziam os holandeses. O jogo organizado de movimentos dos holandeses diferia da “bagunça organizada” que criaríamos.

Dentre os vários técnicos brasileiros da década de 80 e 90, os três principais expoentes dessa terceira onda são Cláudio Coutinho, Telê Santana e Vanderlei Luxemburgo.

Coutinho assumiu o Flamengo em 76 e ficou até assumir a seleção brasileira em 1977. Depois da Copa, Coutinho reassumiu o rubro-negro e ficou até 1980, período em que venceu o Carioca em 78 e 79, e o Brasileirão de 1980. Coutinho ficou conhecido como pioneiro da “europeização”, pois era encantado pela “polivalência” dos holandeses. No entanto, no comando do Flamengo, após a amarga derrota na Copa de 78, Coutinho abrandara alguns dos seus métodos. Ele irá construir um time extremamente móvel, quase sempre com meias pelas pontas, movimentando-se por dentro, dando apoio e rompendo no espaço. Coutinho exigia que os seus jogadores estivessem sempre dando opção ao homem da bola, sendo com um desmarque de apoio para receber a bola no pé ou com desmarque de ruptura para receber a bola no “ponto futuro” em movimento. O time se aproximava em campo no setor da bola, mas produzia uma série de movimentos para progredir rapidamente com a bola no pé.

O Flamengo se destacava dos rivais não por fazer um ataque posicional ou jogar de maneira europeia, mas pela movimentação constante dos seus jogadores. Adílio recebia a bola, logo dois companheiros faziam um desmarque de apoio a bola, posicionando-se numa diagonal para recebê-la, enquanto outros dois companheiros buscavam uma ruptura para receber a bola no “ponto futuro”. Essas movimentações constantes faziam o time estar sempre progredindo em campo com velocidade, através da movimentação e das assimetrias. Coutinho acelerou o ataque funcional brasileiro e trouxe mais lógica para os movimentos. Além disso, o seu Flamengo buscava pressionar o adversário assim que perdia a posse da bola. Após a sua saída, os novos técnicos como Carpegiani e Carlos Alberto Torres buscaram manter essa lógica.

Outro técnico de grande destaque no período era Telê Santana. Além de vencer o Brasileirão pelo Atlético, Telê revela vários jogadores como Cerezo, Paulo Isidoro, Marcelo Oliveira, Danival, Reinaldo, Romeu. No Grêmio entre 1977 e 1978, Telê passa a associar o bom futebol com a velocidade e a pressão alta. Venceu o Gaúcho em 1977 depois de 8 títulos consecutivos do Inter. Eliminado nas quartas-de-final do Brasileirão de 1978, o seu Grêmio era bastante ofensivo, pressionava o rival lá na frente, e usava as novas funções de Zagallo:

Em 1979, Telê assume o Palmeiras, apresenta um futebol espetacular, mas é eliminado na semi-final do Paulista e do Brasileirão. Neste, é eliminado para o invicto e espetacular Inter de Ênio Andrade em duas épicas batalhas. Com o bom trabalho, assume a seleção brasileira na preparação para a Copa do Mundo de 1982. A nossa seleção empilha vitórias e encanta o mundo. É a atualização do espetáculo de 1970.

A seleção de 82 pressiona o adversário assim que perde a bola, não recua, usa um meia como falso-ponta pela direita (Dirceuzinho contra URSS, Zico contra Escócia e depois Sócrates), e um segundo atacante pela ponta-esquerda que se movimenta por todo o campo (Éder). Os dois volantes se movimentam constantemente (Falcão e Cerezo). O nosso ponta-de-lança aglutina todos os ataques (Zico). Os laterais (Leandro e Júnior) avançam por dentro e por fora, fazem a diagonal defensiva do lado oposto e avançam com a bola do seu lado.

Com a bola no lado direito:

Com a bola do lado esquerdo:

Além das funções, o Brasil de 82 tinha movimentos mais velozes e complexos do que o Brasil de 70. Falcão pegava na bola e logo dois jogadores como Sócrates e Zico faziam um desmarque de apoio para receber, enquanto Júnior e Éder faziam um desmarque de ruptura indo adiante receber a bola no “ponto futuro”. Serginho era a bola em profundidade como 9. E até Luisinho se aventurava no ataque, passando adiante para recbeer a bola. O time se movimentava muito em campo. Ninguém ficava parado. O Brasil, dentro das suas funções, passava a bola e ia adiante para recebê-la. Os jogadores iam até à bola, e não a bola ia até às posições.

Contra a União Soviética, Éder vem ao centro e de trás para receber a bola após o corta-luz de Sócrates, e acertar um belo chute de fora da área para a virada. Contra a Escócia, todo mundo se aglutina na direita, movimentos de apoio e de ruptura, virada de bola através de Serginho, e Éder invade o espaço-vazio para fazer o nosso terceiro gol encobrindo o goleiro. No quarto gol, todo mundo se aproxima do lado esquerdo, com tabelas, apoios, e Falcão vem de trás para acertar um lindo chute. Contra a Nova Zelândia, nos dois primeiros gols, todo mundo se aproxima e se movimenta pelo lado direito, jogadores chegam e não estão, cruzamento por baixo na área e dois gols de Zico. Contra a Argentina, bela troca de passes pelo centro, Falcão faz um desmarque de ruptura pela direita, recebe no “ponto futuro”, cruza para Chulapa fazer o segundo gol. No terceiro gol, uma miniatura do desenvolvimento dos nossos movimentos: Júnior passa a bola para Zico, vai adiante receber de volta, recebe no “ponto futuro”, chegando, e estufa as redes adversárias. Contra a Itália, nova tabela. Sócrates passa para Zico, e vai adiante receber a bola no “ponto futuro”, chegando e não estando. Zico domina, gira, finta, e lança Sócrates na cara do goleiro.

O futebol brasileiro atinge o seu apogeu de beleza, mas não leva o título para casa. A seleção de Telê conjuga todos os elementos do jogo do povo brasileiro. Assimetrias, dribles, tabelas, diagonais, funções, aproximação, e muitos movimentos de apoio e ruptura, movimentos para receber a bola no pé ou no “ponto futuro”, movimentos para receber a bola do companheiro ou apenas para deslocar o adversário e facilitar a vida de quem está com a bola. Telê elabora os nossos movimentos e os transformam em arte e apogeu.

Em 1986, Telê Santana recebe uma nova oportunidade como técnico da seleção. Quase todas as seleções jogam sem pontas. O futebol é de movimentação e se concentra no meio-campo. Telê transforma o sistema-base brasileiro de Zagallo, que era um 4231 com um meia numa ponta e um atacante noutra ponta, em 4312 ou 4222. O futebol brasileiro passa a jogar ainda mais por dentro e sem a necessidade de deslocar dois pontas para dentro. Contudo, as suas funções são mantidas. A função do falso-ponta vira a função do terceiro homem de meio-campo, e a função do ponta agudo se torna a função do segundo atacante.

O Brasil mantinha todas as funções de antes. O primeiro volante era Élzo e o segundo homem do meio-campo era Alemão. Júnior fazia a função de um terceiro homem de meio-campo, e Sócrates era o quarto, o chamado meia-atacante. Os laterais atacavam o fundo com a bola do seu lado e faziam a diagonal defensiva com a bola do lado oposto.

A partir da metade década de 1980, o futebol brasileiro se adapta ao 4312, que gira e se torna um 4222 (dois volantes, dois meias, dois atacantes), mantendo as assimetrias, as alturas diferentes em campo, as funções, e os movimentos mais complexos que foram sendo desenvolvidos entre a década de 70 e 80. O Flamengo de 87 jogava com Andrade de 5, Aílton de segundo homem, Zinho de terceiro, Zico de 10, e Renato e Bebeto como dupla de ataque. O rubro-negro vence o Atlético-MG de Telê, maior pontuador do campeonato, nas semi-finais. No início da década de 1990, será o São Paulo de Telê que encantará o mundo jogando no 4222. Ele mantinha os padrões das diagonais ofensivas e defensivas, das assimetrias, da aproximação, do tocar a bola e ir adiante para receber:

O maior expoente dessa última parte da terceira onda será Vanderlei Luxemburgo, o rei do quadrado que vira losango. Herdeiro da tradição brasileira, os times de Luxa se caracterizavam por um quarteto de meio-campo, quase sempre entre o losango e o quadrado. O time girava e o terceiro homem (o meia-esquerda, por exemplo) virava um homem de apoio no setor da bola, enquanto o segundo homem (o volante pela direita) avançava e infiltrava no espaço vazio. O Palmeiras de 96 foi uma das suas obras mais estéticas, com Rivaldo de meia-esquerda e terceiro homem de meio-campo, Djalminha de quarto homem, Müller e Luizão como dupla de ataque, Flávio Conceição de segundo volante, Cafú e Júnior nas laterais:

O 4312 e o 4222 são dominantes durante toda década de 1990 no futebol brasileiro e marcam o final dessa terceira onda. O 3412 de Felipão na Copa do Mundo de 2002 é um 4312 adaptado, com Edmilson de terceiro zagueiro sem a bola, mas como primeiro volante com a bola. Durante todo século XX, o povo brasileiro fala através do futebol, o maneja como uma arte de resistência, encanta todo o mundo por sua beleza.

Em síntese, podemos resumir como características do futebol do povo brasileiro:

a) assimetrias;

b) diagonais (defensivas e ofensivas) para progredir por tabelas e “escadinhas”;

c) cada jogador numa altura do campo e não numa mesma linha horizontal;

d) cada jogador exerce uma função e a equipe progride em campo por esses movimentos (ataque funcional);

e) na hora de atacar, ampla liberdade posicional para os nossos jogadores de frente se moverem;

f) valorização do talento individual, do drible, da criatividade, da astúcia do malandro, da audácia do aventureiro;

g) flexibilidade tática;

h) progredir em campo através das movimentações (ataque funcional) e não através da fixação no espaço (ataque posicional);

i) passar a bola e ir adiante para receber de volta, progredir em campo através das tabelas, das movimentações;

j) movimentar-se para se desmarcar dando apoio (bola no pé) ou rompendo para receber adiante (ponto futuro);

l) plasticidade de forma e de conteúdo.

3. Os Erros de Tite: o abandono

Após o título de 2002, o futebol brasileiro perdeu fôlego e ficou atordoado com a revolução dos espaços realizada na Europa, principalmente por Mourinho e Guardiola, mas as características do nosso jogo sempre estiveram por aí (nos nossos times ou nos de fora) e fazendo sucesso. Ancelotti, por exemplo, sempre foi um adepto do jogo de funções, compensações, e de privilégio ao talento. Wenger, Pekerman e Pellegrini são outros exemplos.

Após 2002, o futebol brasileiro foi sufocado pelo triunfo das retrancas, das preocupações defensivas, dos times com três zagueiros e três volantes, que possuía como única solução o contragolpe, e perdeu muito do seu brilho ofensivo. Esquecendo o lastro do nosso jogo, fomos nos inspirar no jogo ofensivo de Guardiola, do Barcelona, da Espanha, esquecendo as nossas raízes e as diferenças entre as culturas.

A década de 2010 começou com um novo mundo em aberto no futebol devido às novas tecnologias. O encanto com o Barcelona de Guardiola, os triunfos consecutivos da Espanha, a formação de um mercado editorial falando de métodos e sistemas táticos, as novas tecnologias disponíveis na internet, tudo isso mudou o jogo e criou quase um futebol dogmático e homogêneo no final da década de 2010. No entanto, as diferenças, as diversidades culturais, as diferentes sensibilidades futebolísticas continuam falando. E o maior erro de Tite foi não as escutar.

3.1. O jogo de posição: a cultura holandesa no futebol

No texto sobre o debate entre Valdano e Guardiola[3] já expliquei porque o jogo de posição era uma reprodução da lógica calvinista dos holandeses (em especial, do puritanismo) no futebol. Apaixonado pelo domínio dos espaços e pelas estratégias de guerra, Rinus buscou criar uma ordem que tivesse plasticidade exterior, mas com grande dose de repressão interior, exigindo ao máximo dos seus comandados fora de campo, no vestiário, e disciplinando gestos e movimentos dentro de campo.

O jogo de posição exige um elevado grau de autodisciplina, de contenção dos gestos, de repressão interior. São suas características: a) ataque posicional: os jogadores ocupam zonas pré-determinadas, fixadas de maneira simétrica em busca da racionalização dos espaços; b) rigor posicional: os jogadores não se movimentam por todos os lados, mas ficam fixados numa determinada zona; c) a bola vai até às posições: os jogadores não se movimentam para receber a bola, ou dar o passe e ir adiante, mas esperam a bola chegar na sua posição e jogar a partir dela; d) jogar a dois toques: já que os jogadores se fixam nos espaços para abrir a defesa adversária, dando fluidez e velocidade a equipe é a troca rápida de passes, é a bola que se movimenta rapidamente e não os jogadores; e) mover a bola para manipular o adversário e encontrar vantagens posicionais e numéricas; f) passes com o propósito de achar o terceiro-homem: a finalidade de cada passe é mover o adversário e achar o terceiro-homem, aquele que ficou livre com a movimentação adversária; g) olhar distante: se quem está próximo está marcado, o terceiro-homem pode ser a bola em profundidade, se há vantagem no passe longo, este deve ser utilizado.

Em síntese, enquanto o futebol do povo brasileiro pede assimetrias e diagonais; o futebol holandês pede simetria e horizontalidade. Enquanto, no jogo brasileiro, pedimos por movimentação, aproximação do setor da bola, liberdade ampla; o jogo de posição exige ataque posicional, fixação no espaço, contenção dos movimentos. Nós, o povo brasileiro, gostamos de um futebol onde os jogadores vão até à bola e se movimentam a partir dela. Os holandeses elaboram um jogo onde a bola é que vai até às posições. No nosso jogo, a mobilidade é do talento e dos jogadores. No jogo holandês, a mobilidade está na bola com a troca rápida de passes. No Brasil, exigimos que nossos jogadores tenham a bola, possam dominá-la, conduzir, criar, inventar. No jogo de posição, é necessário jogar a dois-toques para que a equipe tenha fluidez já que os jogadores estão fixados no espaço, então a bola precisa se movimentar rapidamente para manipular o adversário e encontrar o homem livre. Enquanto gostamos de dribles e tabelas; o futebol holandês exige dois toques e passes rápidos e de posição em posição. Queremos passar a bola e nos mover, mas o jogo de posição exige passar a bola e ficar para congelar um jogador adversário.

Como os nossos intérpretes já mostraram, o Brasil teve uma formação social muito diferente dos Estados Unidos ou dos países de origem calvinista como a Holanda. Enquanto a nossa ordem era flexível e repleta de negociações, com baixo nível de repressão interior, mas com resistência criativa à repressão exterior; os holandeses formaram uma ordem mais rígida e enxuta, com forte opinião pública com pendor moral, criando um excesso de rigor interno, exigindo autodisciplina e contenção dos gestos e dos movimentos. O futebol brasileiro revela a formação do povo brasileiro. O futebol holandês revela a formação do povo holandês.

3.2. O “dois-toquismo” e a falta de imaginação

O espanhol Juanma Lillo foi um dos pais fundadores da escola do jogo de posição. Ele não criou os princípios, mas ajudou a transformá-los em conceitos, e a divulgá-los através da escrita e da cultura oral. Lillo também foi auxiliar técnico de Guardiola e Sampaoli. Durante a Copa de 2022, Lillo deu uma das mais importantes entrevistas para o The Athletic. Ele faz uma aguda autocrítica do que se tornou o futebol, criticando:

a) a homogeneização do jogo, com todos usando os mesmo métodos e táticas que ele ajudou a criar através do conceito de jogo de posição;

b) a onipotência do treinador, que torna tudo ensaiável, reproduzível, retira o ímpeto e a criatividade do talento individual;

c) o “dois-toquismo”, o responsável pela homogeneização do jogo, pois quase todas as seleções fazem ataque posicional, fixam jogadores no espaço, e precisam tocar a bola com muita velocidade para terem fluidez, manipular os adversários, e encontrar o homem livre para progredir em campo. Com o “dois-toquismo” não temos mais aqueles gênios que dominavam a bola, driblavam, buscavam a tabela, pois todo mundo só pode agora dominar e passar a bola rapidamente;

d) a homogeneização do jogador, pois agora todos são muito parecidos entre si, não há mais jogadores ruins, mas os gênios também sumiram, pois “ao tentar matar os bandidos, também matamos os mocinhos”.

Por fim, Lillo se diz um pai arrependido do novo futebol. Ele ajudou a construir essa enorme montanha de homogeneização, matando outras culturas futebolísticas, tornando o jogo numa mesmice maçante. Diz o espanhol: “Se houvesse uma pessoa com quem eu realmente gostaria de questionar agora, seria eu de 25 anos atrás”. É verdade que o jogo posicional também foi subvertido de suas origens e se transformou naquilo que chamo de “fast-food posicional”. Tudo que era interpretativo no jogo de posição foi transformado em mecanismos decorados, que precisam ser reproduzidos, em busca de um jogo mais rápido e vertical. A maioria das equipes praticantes do fast-food posicional jogam principalmente por fora. O triângulo de cada lado gira (lateral, meia, ponta), se busca a vantagem posicional com tempo e espaço para o cruzamento rasteiro ou por cima na área. Enquanto isso, os seus meias invadem rapidamente o funil da área para pegar os volantes adversários desprevenidos. A função dos meias é apenas concluir as jogadas laterais. Alguns times ficam basicamente 90 minutos buscando o giro do triângulo, essa jogada exterior e a conclusão na grande área:

A autocrítica de Lillo é importante para evidenciar o que ocorre no mundo quando uma cultura se torna hegemônica e simplesmente subjuga todas as outras. Além da perda de possibilidades, a própria cultura hegemônica vai se tornando mais cínica com o poder adquirido.

Estudando as relações entre as culturas na América Latina, Ángel Rama refletiu sobre a aculturação, a desculturação e a transculturação. A globalização não suprime a cultural local e nem a formação social dos países, mas traz novos desafios na relação entre o lugar e o global. Se o lugar sucumbe por completo a uma pretensa cultura global homogeneizante (que nada diferente é da hegemonia de alguma cultural), as raízes da cultura local perdem suas energias. No entanto, se o lugar aprende a conviver com as diferenças, com a força da universalidade, pode usar as demais culturas como energia para revitalizar as raízes da sua cultural local.

3.3. O deslumbramento com o de fora

Tite chega na seleção brasileira em 2016 com grande apoio popular. Inspirado no Real Madrid de Ancelotti, campeão da Champions em 2014, o Corinthians de 2015 jogava um futebol agradável e conforme as características ofensivas do nosso jogo. Era um futebol de chegar e não de estar. O ponta-direita (Jadson) sempre se movimentava ao centro quando o time tinha a bola, tabelando com Renato Augusto, o terceiro-homem, e permitindo as infiltrações do segundo-homem (Elias). Os laterais atacavam o corredor e faziam a diagonal defensiva. O Corinthians não jogava com amplitude máxima.

Tite chega na seleção e reproduz o mesmo sistema na seleção[4]. Daniel Alves e Marcelo fazem a diagonal defensiva com a bola do lado oposto e atacam o corredor com a bola no seu lado. Coutinho é o meia-atacante que começa na ponta e vem para o meio. Paulinho é o segundo-homem, Renato Augusto é o terceiro:

Rapidamente, o Brasil conquista resultados e encanta o povo brasileiro. Um futebol rápido, de movimentações constantes, dribles, tabelas, técnica. O gol de Marcelo contra o Paraguai é o maior símbolo. Aproximação entre Neymar e Coutinho; Marcelo passa a bola e vai adiante para receber no “ponto futuro”; Paulinho oferece um desmarque de apoio; Renato Augusto oferece um desmarque de ruptura. Aproximação, movimentação, toque de bola, técnica, criatividade:

A seleção de Tite encanta o Brasil e o mundo. O jogo bonito estava de volta. Estaria o futebol brasileiro se adaptando às mudanças do futebol contemporâneo e criando a sua quarta onda de desenvolvimento a partir de Tite?

O que poderia ter sido, não foi. Depois de um empate em 0 a 0 contra a Inglaterra em Wembley, Tite resolveu mudar o seu sistema ofensivo[5]. A partir de agora, o Brasil entra no mundo da homogeneização do jogo e do “fast-food posicional”. A partir do amistoso contra a Rússia em março de 2018, passamos a jogar no 433 em ataque posicional. Agora, buscamos a amplitude total, o alargamento das distâncias, a fixação no espaço, a bola indo até às posições. Na Copa, o gol de Coutinho contra a Costa Rica, o gol de Paulinho contra a Sérvia, e o gol de Renato Augusto contra a Bélgica mostram essa nova dinâmica ofensiva. Passamos a fazer quase tudo inverso do que fazíamos com a bola.

O primeiro grande erro de Tite foi considerar o futebol como um esporte meramente de eficiência e acaso (sorte). Quem trabalha duro, busca a eficiência, cuida de cada detalhe, segue as regras que se mostraram mais eficientes e provadas pelos últimos grandes vencedores, está mais perto da vitória. O acaso é apenas um entrave para o trabalhador. Como já discuti antes, o futebol não é como construir um prédio, ou apenas usar métodos mais “modernos”. Essa dimensão existe, mas é apenas superficial.

A cultura é o elemento mais importante do futebol porque coordena todo o resto. Tite negligenciou o aspecto cultural do jogo. Ao tomar a decisão sobre o sistema ofensivo, sobre os jogadores utilizados, sobre o nível de enfrentamento, sobre a natureza do que seria uma Copa, Tite adotou um conceito de eficiência enganoso. O mais importante no futebol não é seguir os métodos hegemônicos, nem copiar o que faz sucesso, mas encontrar um elo afetivo, um ritmo, um encontro de características entre os jogadores, entre o povo e a seleção. De nada adianta jogar um futebol que o povo não se reconhece, que não nos encanta, que trava o que há de melhor e imaginativo em cada jogador brasileiro. Tite desconsiderou a cultura em suas decisões, e optou pela falsa segurança de seguir o caminho já trilhado por quem estava obtendo sucesso no futebol europeu. A ideia de que os jogadores deveriam jogar com o mesmo sistema dos seus clubes não cabe e inviabilizaria a seleção brasileira de 58, 70 e 82, além da atual campeã argentina.

O segundo erro de Tite foi confundir volume com qualidade. Desde a Copa de 2018, o Brasil ficou viciado em jogar por fora, seja com os pontas em amplitude ou com um dos laterais. Quase sempre buscávamos o jogo exterior e o cruzamento na área. O resultado é que com essa “empurrança” concluíamos mais ao gol do que no período anterior a 2018, mas essas chances não necessariamente tinham a mesma qualidade. Na final da Champions 2021/22, o Liverpool concluiu dezenas de vezes, mas o Real Madrid sempre esteve mais perto do gol. Enquanto o Liverpool tinha volume ofensivo, com muita posse, verticalidade e conclusão ao gol de qualquer jeito e lugar; o Real Madrid só criava oportunidades claras, ganhando fartos espaços após superar com pausa o pressing adversário. Às vezes, é melhor ter menos oportunidades e chutar menos ao gol, mas ter chances mais bem construídas que ofereçam mais garantia aos jogadores.

Entre 2018 e 2022, o Brasil acumulou números, aproveitamento, vitórias, volume, mas nunca foi um time realmente efusivo e com cara de campeão, que encontrasse aquela sintonia afetiva entre os jogadores, entre as suas características e a inventividade de cada atleta, ou entre o time e o povo. O Brasil vencia muitos adversários porque o “fast-food posicional” traz vantagens aos times que dominam fisicamente. Pelo jogo exterior, pelo ataque a área, pelas inversões de jogo, pela capacidade física aliada a qualidade técnica, éramos superiores no continente e em amistosos contra times inferiores de outros continentes. Era evidente que essa vantagem física inexistiria contra times europeus mais fortes fisicamente e contra times mais qualificados tecnicamente.

O sistema ofensivo brasileiro na Copa foi um descalabro. Uma repartição da equipe em 5 defensores e 5 atacantes. Os laterais eram meros defensores e não “construtores” como dizia Tite. Casemiro também é um volante mais defensivo e físico do que articulador. Na frente, os pontas ficavam abertos, Richarlison enfiado, Neymar e Paquetá nas entrelinhas. O time se repartia e não tinha jogada interior e nem elaboração no meio-campo. Isso só ocorria quando Neymar voltava para buscar e criava algum elo entre os setores. O Brasil só atacava através dos pontas. Trocávamos alguns passes e já lançávamos o ponta para jogada individual, em busca do cruzamento por baixo na área. O Brasil tornou-se um representante-emblema do que Lillo lamentou.

Como nossos laterais não subiam, era fácil para o adversário manter um cerco contra o nosso ponta. A Croácia abriu o meio e fechou os lados. Vinicius e Raphinha ficaram bloqueados, e nós não soubemos aproveitar o espaço por dentro. Raram eram as progressões através de tabelas. O Brasil jogava com a bola até a posição e forçava todas as jogadas pelos lados. O gol de Neymar foi uma saborosa ironia. O gol sai depois de uma aproximação no setor da bola entre Neymar, Rodrygo e Paquetá. Neymar tabela com Rodrygo, passa adiante para receber, e depois faz o mesmo com Paquetá. Futebol ao estilo brasileiro, ao contrário do que praticamos em quase toda a Copa e em quase todo o jogo contra a Croácia, buscando em excesso a ilusão de facilidade pelas pontas.

Além disso, o ataque posicional utilizado pelo Brasil exigia um jogo de dois toques que para nós, sul-americanos, seria nefasto. Para jogar com atacantes fixados no espaço, precisamos que a bola corra rápido, que se movimente com velocidade e fluidez. Isso não ocorria no Brasil porque na base da jogada tínhamos Casemiro e dois laterais defensores, com gestos técnicos mais lentos e passe pouco criativo. No fim, a bola acabava indo para o ponta ou era invertida de lado. Sempre jogando no conforto e sem arriscar. Para além da lentidão dos “construtores”, o futebol brasileiro não pôde fazer o exigido “dois-toques” porque o nosso forte é o drible, a tabela, a jogada individual. Exigir que o jogador brasileiro domine e já passe a bola é matá-lo em sua essência. O nosso jogador precisa dominar, driblar, conduzir, arriscar. Com jogadores lentos e pouco criativos na base da jogada (Casemiro e os laterais) e sem jogar a lá dois-toques (como faz a Espanha), os nossos ataques eram mal construídos e demorados.

Pela primeira vez, o futebol brasileiro jogou uma Copa com laterais que eram meros defensores, que mal atacavam por dentro ou por fora. O nosso meio-campo era imóvel, nenhuma assimetria, com um jogador preso na base da jogada e dois espetados como atacantes. Nenhum sinal de ranhura. A bola ia até às posições e poucas tabelas eram geradas. O Brasil jogou a Copa do Mundo de 2022 conforme a cultura posicional dominante e contra o futebol do povo brasileiro, contra todas as nossas características. O Brasil de 2022 parecia a Inglaterra de 1950. Foi uma tapa na cara do povo brasileiro e de tudo que construímos nesse esporte. Essa submissão é a nossa maior derrota.

O terceiro erro de Tite foi certa arrogância em sua autoavaliação. E toda arrogância é ilusão. Tite sempre se defendeu com os números, as porcentagens, o aproveitamento, a quantidade de conclusões ao gol. Nada disso é realmente importante para ganhar uma Copa do Mundo. O principal é encontrar uma trilha, um caminho, um elo afetivo dentro do nosso jogo e com o público. Nos momentos mais importantes, decisivos, de grande apreensão, a competição exige que cada jogador retire de dentro de si o impossível. Esse crescimento, esse se tornar um “homem definitivo” de Guimarães Rosa só é possível quando nos encontramos no mundo, sabemos o que somos, jogamos de acordo com isso, e criamos um grande e invisível elo afetivo que nos faz ultrapassar todos os obstáculos, todas as intempéries. Mais do que a eficiência e a fortuna, existe a virtude dos que sabem ser amigos do destino. Tite não soube ser amigo do destino nas duas Copas porque escolheu metaforicamente o pacto fáustico ao invés de revitalizar as nossas raízes.

4. As lições da Argentina e o futuro do futebol brasileiro: Diniz é a quarta onda?

O primeiro erro de avaliação que as pessoas cometem sobre a Copa do Mundo é compará-la com qualquer outro campeonato. Os campeonatos nacionais, geralmente em pontos corridos, premiam a regularidade, o investimento, a sobriedade, a ordem mais rígida. As copas, principalmente as mais importantes, exigem outros elementos, e premiam a autossuficiência, a capacidade de superação, as ordens mais flexíveis com sua capacidade de adaptação aos contextos e as dificuldades que aparecem. Não é à toa que um supercampeão nacional como Guardiola não consegue manejar as atribulações que aparecem nos jogos de Champions League.

A Copa do Mundo é muito mais do que isso. É o torneio mais importante, que só ocorre a cada 4 anos, e o qual todo jogador sonha desde pequeno, onde se entra em campo pela glória e não pelo dinheiro. Ela exige emocionalmente ao máximo. Só um time com enorme elo afetivo dentro do seu próprio jogo consegue superar suas artimanhas e atribulações. Os momentos mais delicados, onde o sonho ficará impossibilitado ou adiado por mais quatro anos, só poderão ser superados com grande afeição coletiva, um conforto gravado na alma que paira acima das desconfianças, uma crença inabalável de que o destino irá lhe premiar e de que tudo será superado. Esse tipo de ritmo e afeto só podem ser construídos na relação entre a seleção e o seu povo.

O grande mérito da dupla Scaloni e Aimar foi a recuperação das raízes do futebol argentino, deixando isso expresso em seus discursos. O processo começa com a contratação de César Menotti para diretor técnico e o retorno da dicotomia entre o “futebol criollo” e o “futebol inglês”. A famosa La Nuestra e o 4312 serviram de símbolos desse resgate. Scaloni buscou recuperar o estilo argentino de posse de bola que alia a pausa e a extrema movimentação do passar a bola e ir adiante (o famoso toco y me voy ao invés do toco y fico que Fàbregas tanto reclama nos estilos posicionais).

Além disso, as raízes do futebol argentino foram reenergizadas com os novos tópicos do futebol contemporâneo. Em vários jogos, Scaloni não abriu mão da amplitude máxima com os laterais ou com um lateral e Di Maria (ou outro ponta). O técnico argentino também desenhou as saídas de bola estendendo o campo. Todavia, as novas exigências do futebol não foram usadas para negar as raízes do futebol do povo argentino. Mesmo com amplitude, o time buscava o jogo interior com pausa, tabelas, toco y me voy, esbanjo de técnica, conduções de bola e dribles, sem o jogo posicional da bola ir até às posições.

A Argentina perdeu a Copa América 2019, mas já demonstrava que encontrou um caminho cristalino. A equipe cresce na competição quando joga no 4312 com De Paul de armador, Messi de enganche, e a dupla de ataque Lautaro e Kün. Em 2021, o sistema se aprimora com Paredes, De Paul e Lo Celso formando o trio de meio, Messi de enganche, Di Maria e Lautaro no ataque. O auge vem na vitória contra a Itália em Wembley. Um show de futebol do povo argentino. Dessa vez, sem amplitude máxima, com pausa, toco y me voy, esbanjo de técnica[6].

A seleção argentina chega na Copa com cara de campeã mundial porque encontrou esse elo afetivo entre os sonhos de menino de cada jogador. O sonho de Messi parece vivo e se encontra com o de Di Maria. O futebol que sonhavam quando criança junto com o povo argentino se faz realidade adulta e atualizada para o jogo contemporâneo. Ou seja, o futebol deles em campo é o futebol afetivo que conheceram como criança — o futebol do povo argentino. A lesão de Lo Celso é um duro golpe, pois era um jogador taticamente insubstituível até então.

A Copa começa. Scaloni muda o time para o 424, um sistema mais posicional com lançadores e atacantes. Nada dá certo. O time perde a sua sintonia, o seu elo afetivo, as suas raízes no futebol do povo argentino. Messi avisa: “precisamos retornar ao nosso jogo, aos nossos valores”. Contra o México e a Polônia, a Argentina volta para o 4312 com a entrada de Mac Allister. O time pausa, joga por dentro, maneja os ritmos. Messi aparece por todas as zonas. De Paul infiltra. Entram dois jovens que acertam o time, Enzo Fernandez e Julian. Enzo é um fenômeno no meio. Movimenta-se sem parar. Entrega a bola e se posiciona adiante para receber. Joga curto ou longe. Chuta da entrada da área. Já Julian oferece uma variedade insuperável de movimentos adiante de Messi. Apoio, ruptura, deslocamentos sem bola para alguém infiltrar. Julian facilita a vida de Messi e do trio de meio-campistas.

Na semi-final, uma partida extraordinária dos argentinos. Um domínio avassalador. Sem Di Maria, com 4 homens no meio-campo, com Enzo mais livre, a Argentina domina as ações mesmo quando não está com a bola, maneja os ritmos e está sempre mais perto do gol. Os croatas defendem melhor por fora do que por dentro e, ao contrário do Brasil, os argentinos se aproveitam divinamente desses espaços com 4 meio-campistas, Messi e Julian. Numa Copa destinada aos pontas, a Argentina vai deslumbrando jogando por dentro ao tradicional estilo de La Nuestra[7]:

Na final, a Argentina domina a França irresistivelmente por 80 minutos. É o maior domínio que já vi numa final desde Brasil x Itália em 1970. O placar mostra 2 a 0, mas poderia estar 4 a 0. Um show de Di Maria, que se pintou de Garrincha na esquerda. Um espetáculo do trio de meio-campo com Enzo, De Paul e Mac Allister, que dominam todos os tempos do futebol, guardam a bola, tabelam, vão adiante, e pisam na área. Messi circula por todos os lados e setores, organiza a Argentina, esbanja técnica e domina mentalmente a partida. Apesar do sofrimento, a Argentina consegue merecidamente o seu tricampeonato mundial.

Scaloni e sua comissão técnica tiveram dois grandes méritos: a) revitalizar as raízes do futebol do povo argentino ao invés de negá-las em prol do estilo posicional hegemônico, recuperando La Nuestra com a posse de bola com pausa, os movimentos de toco y me voy, a aglomeração no setor da bola, o desfile de técnica, as infiltrações; b) saber se adaptar rapidamente dentro da Copa do Mundo, tendo sensibilidade para fazer as mudanças necessárias. Ele não demorou para retornar ao 4312, nem para mudar os laterais, nem para inserir Enzo e Julian no time titular.

Se o Brasil quiser ser hexa em 2026 e voltar a deslumbrar o mundo com o futebol mais bonito da terra, terá que aprender essas duas lições. Devemos recuperar a importância da cultura, revitalizar as raízes do futebol do povo brasileiro, e adaptá-lo para as exigências do futebol contemporâneo, criando um elo afetivo entre as características dos jogadores, e entre o jogador e o público. Além disso, é preciso ter sensibilidade para fazer mudanças rápidas numa Copa sem se iludir com o placar ou com o número de chutes ao gol.

A pergunta é óbvia: quem deve assumir o comando da seleção brasileira? Em primeiro lugar, devemos abandonar dois erros comuns: a) projetar a seleção pelo trabalho nos clubes, pois a Copa e o que exige uma seleção nacional guardam pouca relação com o trabalho semanal nos clubes, sendo assim, grandes treinadores de clubes podem ser fracos treinadores de seleção; b) fazer uma tabelinha de títulos, pois Scaloni sequer tinha experiência ou qualquer título antes de assumir a seleção, enquanto Flick e Luis Enrique eram campeões da Champions League.

Evitando esses erros comuns, devemos buscar um treinador que esteja disposto e saiba: a) revitalizar as raízes do futebol do povo brasileiro; b) ser flexível e demonstrar sensibilidade para alterar o time em busca desse elo afetivo. Mais do que a nacionalidade, devemos buscar o perfil correto. Pelo estilo posicional, ótimos técnicos em seus clubes como Guardiola, Sampaoli, Abel Ferreira aprofundariam essa destruição do futebol do povo brasileiro e a relação entre nossa formação social e a seleção brasileira de futebol. Dos técnicos estrangeiros, alguns nomes como Ancelotti, Pellegrini, Pekerman, Jorge Jesus se encaixam no perfil que precisamos. No entanto, com exceção de Jesus (personalidade bastante instável), todos os citados parecem pouco prováveis.

Dos técnicos brasileiros, há um nome óbvio e que se encaixa com perfeição no que precisamos: Fernando Diniz. É até engraçado ver pessoas falando no “estilo único” de Diniz por aproximar jogadores num lado do campo quando o futebol brasileiro sempre fez isso por toda a vida. Já esquecemos que Jairzinho atravessa o campo no mítico gol de Carlos Alberto Torres, ou de quando Falcão, Sócrates, Cerezo e Zico se juntavam na direita contra a Itália. Diniz nos lembra o que somos, o que fazíamos, o que era o futebol do povo brasileiro, e por isso causa tanta agitação de afetos. Mais do que aproximar jogadores do lado do campo, o Fluminense de Diniz movimenta a bola ao nosso estilo. A bola não vai até às posições, mas os jogadores se movimentam para apoiar ou romper, receber no pé ou no “ponto futuro”, eles passam a bola e vão adiante receber. A movimentação do time de Diniz com a bola é intensa e caótica, criando inúmeros espaços mesmo estreitando o campo. É a “bagunça organizada” de 1982.

Além disso, Diniz criou um estilo de saída de bola que reproduz o mesmo estilo brasileiro, trazendo o adversário para um lado, vencendo a pressão ou invertendo para o lado oposto. O técnico do Fluminense utiliza todas as características do futebol do povo brasileiro e as adapta para o futebol contemporâneo. Seria ele o responsável por nossa quarta onda? Só o tempo dirá. Contudo, não existe brasileiro melhor do que Diniz para assumir o cargo de técnico da seleção brasileira, pois é aquele que melhor se sente em paz com o nosso povo, o nosso estilo, o nosso jeito de ser.

[1] https://medium.com/@Jozsef_Bozsik/j%C3%B3zsef-na-copa-dia-21-uma-for%C3%A7a-estranha-messi-conversou-com-o-tempo-36c3b6cf75f3

[2] https://maviddata.medium.com/guardiola-valdano-y-la-tentaci%C3%B3n-del-demiurgo-d1dec61aeac

[3] Tradução para o espanhol: https://maviddata.medium.com/guardiola-valdano-y-la-tentaci%C3%B3n-del-demiurgo-d1dec61aeac

[4] https://medium.com/@Jozsef_Bozsik/o-sistema-ofensivo-da-sele%C3%A7%C3%A3o-brasileira-sa%C3%ADda-sustentada-e-ataque-funcional-1a356b996352#:~:text=Assim%2C%20a%20sa%C3%ADda%20sustentada%20%C3%A9,aposta%20mais%20em%20fisicalidade%2C%20apoios%2C

[5] https://oglobo.globo.com/esportes/entrevista-tite-detalha-estrategias-busca-formulas-contra-dor-de-cabeca-22430833

[6] Essas capturas da seleção argentina podem ser encontradas em: https://twitter.com/maurisaldana/status/1605346322978312192

[7] Essas capturas da seleção argentina podem ser encontradas em: https://twitter.com/maurisaldana/status/1605346322978312192

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