“Sakigake!! Otokojuku” e o tutorial de como abortar um arco que “deu ruim”

Nintakun
12 min readSep 3, 2019

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AVISO: esse texto não é um “review”, uma crítica aprofundada nem nada do tipo, só quero compartilhar uma anedota engraçada relacionada a esse mangá e pra isso vou precisar fazer um bocadinho de contextualização.

Se você é entusiasta da Shonen Jump, e principalmente do passado dela, existe uma probabilidade relativamente alta de já ter passado pelo nome “Sakigake!! Otokojuku” (e se você jogou Jump Ultimate Stars ou J-Stars Victory VS, você com certeza foi exposto a algo, pois alguns personagens da série aparecem nesses dois jogos). Esse foi um mangá até que bastante popular na revista na época em que saiu e que é pouquíssimo falado fora do Japão. Não foi nem de longe um Hokuto no Ken ou Dragon Ball em popularidade e vendas, mas fez barulho o suficiente para influenciar artistas e ser lembrado até hoje em seu país natal.

A série, escrita e desenhada por Akira Miyashita, foi publicada entre 1985 a 1991 e compilada em 34 volumes, que venderam mais de 26 milhões de cópias. Recebeu uma adaptação pra anime de 34 episódios em 1988 pelas mãos da Toei (cobrindo mais ou menos os primeiros 10 volumes do mangá), um filme live-action em 2008 dirigido por Taku Sakaguchi (que foi ator e dublê em vários filmes de ação, além de ter sido coreografador das lutas do excelente “Godzilla: Final Wars”, de 2004), alguns jogos de videogame (uma boa parte deles sendo bem porcaria, pra ser honesto) e além disso, a série recebeu algumas sequências em mangá pelas mãos do próprio Miyashita e spin-offs feitos por outros artistas (e que saem até hoje). É, acho que dá pra dizer que foi um mangá moderadamente popular, no mínimo.

Capa da Shonen Jump número 12 de 1988, celebrando a estréia do anime da série.

E sobre o que é essa série cujo título pode ser traduzido, com minhas devidas liberdades, para algo como “Avante!! Escola de Macho”?

Tudo se passa num colégio chamado “Otokojuku”, fundado por um cara chamado Heihachi Edajima, que foi herói de guerra durante a Segunda Guerra Mundial. Esse maluco é literalmente uma piada de “Fatos sobre Chuck Norris” ambulante antes mesmo de “Fatos sobre Chuck Norris” serem algo que existia (e inclusive tem uma ótima prequel focando exclusivamente na história dele, chamada “TENKAMUSOU: Edajima Heihachi-den”) e ele resolve fundar essa escola para ajudar a formar grandes “homens de verdade”, que estavam em falta no Japão, para que esses jovens fortes educados por essa escola sejam o futuro próspero da grande nação japonesa.

Mas é aí que vem o porém: essa escola mais parece um reformatório ou quartel militar e possui métodos nada ortodoxos de educar seus garotos. Ao invés de aulas de matemática, literatura, geografia e similares, aqui eles vão aprender a marchar adiante de qualquer obstáculo, tomar banho no óleo fervendo, aprender usar a sua força de maneira sobre-humana, lutar, dar porrada, sobreviver em condições bem extremas, defender os seus aliados e sua honra, e por aí vai… É uma escola onde entram garotos e saem HOMENS DE VERDADE.

Uma das tradições do Otokojuku: a banheira de óleo, onde quem está nela não pode se mexer até a vela terminar de derreter, ou senão ela pode cair no óleo e incendiar quem está na banheira.

Esse mangá começa como uma grande coletânea de “testes de macho”, alguns engraçadíssimos de tão absurdos, mostrando a vida escolar desses ̶ ̶p̶o̶b̶r̶e̶s̶ ̶d̶e̶s̶g̶r̶a̶ç̶a̶d̶o̶s̶ ̶s̶o̶f̶r̶e̶d̶o̶r̶e̶s̶ alunos e vai gradualmente virando um mangá de luta nos moldes dos Hokuto no Ken, Dragon Ball, Kinnikuman ou Saint Seiya que existiam na época dentro da própria Shonen Jump e se destacou pelo quão insanas e conceitualmente criativas essas lutas conseguem ser. A maluquice vai desde armas inusitadas ou cenários cheios de perigos inesperados, e eu consigo facilmente fazer uma lista imensa do tipo de maluquice presente nesse mangá, dentre elas lutas na boca de um vulcão ativo, um dos heróis que literalmente peidou num isqueiro pra poder confundir um inimigo com o fogo numa luta, um maluco que luta em cima de uma moto dirigindo ela em cima de uma jangada prestes a cair de uma cachoeira gigante, um inimigo que ensinou kung-fu pra macacos e os usa como arma… isso que eu ainda nem falei das coisas mais insanas mas não quero me alongar muito aqui. É um mangá MUITO idiota (ênfase nesse “muito” aí sim) e que abraça sua própria loucura e absurdo da primeira até a última página.

Definitivamente não é um mangá pra ler esperando “história”, “desenvolvimento de personagem” e essas coisas. Ele é um mangá CRU de luta e gasta quase todo o seu tempo nisso ou em comédia e está plenamente ciente disso. É sempre divertido ver qual é a próxima loucura que o autor vai botar nas lutas e qual é a ideia maluca que ele vai executar com essa luta e acho que esse fator bem específico foi uma das coisas que ajudou o mangá a se destacar em meio a tantas séries de ação da época, causando assim o seu sucesso (depois de alguns fracassos que o autor teve antes na revista) e ficando marcado como um dos grandes nomes da Shonen Jump dos anos 80.

um típico campo de batalha da série: uma teia de cordas na boca de um vulcão ativo. E esse é um dos mais simples.

E essa loucura e megalomania toda acabaram levando a possivelmente um dos acontecimentos mais engraçados da história da Jump na minha opinião e, pra isso, vamos lá dar um pouco mais de contexto…

Otokojuku é um mangá de luta, e passa a imensa maioria de sua duração tendo luta atrás de luta, frequentemente com pouquíssimo tempo entre elas. Em mangás de lutinha desse tipo, existem dois tipos de arco muito propícios pra se encher de lutas: “arcos de torneio” ou “arcos de resgate”. Miyashita, sabendo qual é o ponto mais forte do seu mangá, muitas vezes recorre a torneios na franquia, a ponto de um dos arcos ser um torneio gigantesco e que durou impressionantes DEZESSETE volumes (de um mangá de 34), arco esse que é talvez o mais popular e famoso da série e é conhecido como “Tenchou Gourin DaiBukai” (天挑五輪大武會, ou simplesmente algo como “O Grande Torneio Olímpico do Desafio Celestial” em bom português… porque torneios com nomes extremamente espalhafatosos são uma constante bastante presente nesse mangá).

Esse arco se encerra e então leva ao arco seguinte, o “Battle of the Seven Tusks” (sim, em inglês mesmo e por puro maneirismo Miyashita escreve o título em inglês bem minúsculo junto de um 七牙冥界闘, para mais informações sobre isso, deixo anexado aqui o ótimo texto do Thiago Nojiri sobre a fina arte de misturar inglês com japonês em mangás de ação e luta pra complementar isso).

Ah, e a partir daqui, haverão SPOILERS do mangá. Caso você se importe com spoilers de um mangá de porradaria dos anos 80 da Shonen Jump que pouquíssima gente fora do Japão lê e a história importa pouquíssimo, está avisado. Leia por sua conta em risco. (apesar de que esses spoilers podem até fazer você se interessar pelo mangá, caso nunca tenha lido).

Bom, vamos seguir adiante…

Capa do volume 28, onde se inicia o arco sobre o qual estarei falando aqui.

De forma bem resumida, o arco anterior ao “Battle of the Seven Tusks” tratava-se de um torneio onde os alunos do Otokojuku foram mandados por Edajima para participar pelo único motivo de o torneio ser organizado por Toudou Hyouei, o grande arqui-inimigo de Edajima e criminoso de guerra que traiu o próprio país e quase o matou durante a Segunda Guerra Mundial. É, Edajima simplesmente mandou os moleques para participar do torneio pra eles ganharem só pra poderem chegar o mais perto possível de Hyouei e assassiná-lo a todo custo. Para a surpresa de ninguém, eles chegam lá, vencem o torneio e conseguem matar o vilão.

E aí chega o arco que viemos falar: um mês depois do torneio, durante um evento em Otokojuku, um incidente acontece e aparentemente conseguem invadir a escola e sequestrar Edajima, só que o cara é tão forte que eles só foram capazes de tal feito depois de disparar tranquilizante pra elefante nele. Não satisfeitos, ainda prendem o velho num satélite e jogam no espaço e o mantém em órbita em sono criogênico dentro do satélite, do qual ele simplesmente não tem como escapar, e menos ainda ser resgatado. A única forma de tirá-lo de lá e os jovens cavalheiros de Otokojuku vencerem a “Battle of the Seven Tusks”, na qual eles serão levados por alguns lugares ao redor do mundo onde enfrentarão vários inimigos até chegar ao “chefão” de cada área. Ao vencer esse chefão, eles irão ganhar uma espécie de disquete (ah, os anos 80…) e juntando sete desses, eles podem ir até um supercomputador, onde poderão inserir os disquetes na máquina, que irá reprogramar o satélite para retornar à Terra, e assim salvar Edajima. Olha só que premissa absurda e imbecil, é por isso que eu adoro esse mangá!

“Então, garotada, o diretor de vocês tá em sono criogênico num satélite em órbita e não tem como fugir de lá”

E então acontecem as lutas. Em cada local, os heróis precisam enfrentar um total de 5 inimigos até obter o disquete, e são sete locais diferentes, o que significa que esse arco terá 35 inimigos a serem enfrentados. TRINTA E CINCO inimigos, o que significa o mesmo número de lutas a serem desenhadas e escritas num mangá que saía semanalmente na revista mais popular do Japão. Sente a pressão.

Apesar de desenhar 35 lutas diferentes e ter que criar conceitos malucos pra cada uma delas parecer uma missão árdua por si só, devo lembrar de que o torneio anterior foi um tanto mais além. Cada time tinha 16 participantes, e um time só avançaria no torneio caso TODOS os outros lutadores do time adversário não pudessem mais lutar ou morressem. Eu não me recordo agora quantos times os meninos enfrentaram, mas tenho certeza de que no mínimo 5 times rolaram, e se a gente multiplicar 5 por 16 dá… 80. OITENTA LUTAS. E o maluco do Miyashita desenhou TODAS. Pra ser justo, é claro que ele deu uma trapaceada em algumas fazendo personagens tombarem num golpe só e coisa do tipo, o que talvez reduziria esse número de lutas um pouco (caso não seja ainda maior do que eu me lembro), o que ainda dá um número muito grande de coisa pra desenhar. Puta que pariu! Esse mangá desconhece limites quando o assunto é exagero.

A situação piora um pouco quando a gente vê que algumas dessas lutas estão demorando literalmente um capítulo pra começar e terminar no arco novo, sendo que antes duravam até uns cinco capítulos. Não só isso como o nível caiu um bocado e a escrita piorou consideravelmente e tivemos umas lutas meio ruinzinhas e não muito inspiradas, ainda mais em comparação com a criatividade de várias do arco anterior. Pra um mangá de luta estar tendo lutas ruinzinhas, é porque a coisa tá feia MESMO. Mas mesmo assim Miyashita persistiu na ideia megalomaníaca…

Dentre as lutas legais desse arco, eu particularmente gosto bastante dessa que é esse cara de moto lutando contra um dos inimigos em cima dessas toras de madeira numa correnteza. Olha como isso é imbecil, eu adoro esse mangá mais do que ele merece às vezes.

… e as lutas vinham acontecendo, com uma ou outra mais legalzinha, até os heróis chegarem ao quinto campo de batalha (estes foram: uma torre no meio de uma tundra, uma selva tropical, uma prisão de segurança máxima no meio do mar, um templo de artes marciais na China e agora, um castelo tradicional japonês). 20 inimigos já foram derrotados e 4 disquetes foram pegos, ainda faltavam mais 15 inimigos e, consequentemente, 3 disquetes pra salvar o diretor Edajima e eis que o inesperado acontece.

Pouco depois de vermos um bocadinho de ação dentro do Castelo Japonês (e de vermos que Toudou Hyouei aparentemente SOBREVIVEU e está por trás dessa pataquada toda), um novo capítulo surge, dessa vez mostrando o satélite onde Edajima está preso. Sabe-se lá COMO ele conseguiu, mas o idoso brutamontes acordou e percebe que está preso em órbita e fica muito puto com a situação. Normal, eu também ficaria puto se eu tivesse acordado depois de um sono profundo desses e percebesse que eu tô preso em órbita.

“Pelo amor de deus, o cara tá nadando de tanguinha no vácuo do espaço e vai quebrar a porta da nossa nave pra entrar!!!!”

Pra sorte dele, um ônibus espacial americano está passando por ali perto numa viagem de volta à Terra, e Edajima começa a bater na janela do satélite pra chamar a atenção e os americanos ficam com medo pensando se tratar de um alien (afinal, não teria como alguma nave americana ou Soviética estar naquela área… lembrememos que a Guerra Fria e sua corrida espacial ainda eram algo na época que esse mangá saiu). Edajima simplesmente taca o foda-se e quebra a janela e começa a a “nadar” no vácuo do espaço sideral até a nave americana e entra lá dentro como se fosse nada e pega uma das roupas de astrounauta reservas e pega uma caroninha com a nave… do lado de fora (porque se ele ficar dentro, acabará consumindo oxigênio e recursos a mais do que o previsto pela tripulação). E a nave volta pra Terra passando pela atmosfera e entrando em chamas, com o Edajima do lado de fora amarrado de carona.

Enfim eles chegam à Terra e a nave cai no meio do mar, e Edajima é visto de Tanguinha montado numa Orca em direção a solo japonês para salvar os seus alunos. O que ele acaba fazendo no capítulo seguinte (o que encerra o volume 33), onde ele chega com alguns guindastes com bolas de demolição pra acabar com a porra toda, e salvando os moleques e assim já alcançando o objetivo inicial do arco, assim o encerrando. Isso foi um arco de resgate onde o resgatado se resgatou sozinho.

Juro que eu não inventei nada disso aí que eu acabei de escrever. Se não acreditam em mim, podem ir lá ver no mangá mesmo e olhar os capítulos 304 e 305 com a contextualização que eu dei.

Edajima chegando quebrando tudo pra salvar o dia e gritando o seu icônico bordão: “EU SOU O DIRETOR DO OTOKOKUJU, EDAJIMA HEIHACHI!!” (que soa muito mais engraçado em japonês e isso infelizmente se perde em traduções)

Vocês entenderam o que acabou de acontecer? Eu não sei nem como começar a descrever e nem sei se eu poderia. Miyashita provavelmente desistiu da ideia de continuar com um arco que tava se arrastando e provavelmente não estava tão divertido de desenhar (e dá pra sentir que o cara provavelmente deve se divertir pra caralho fazendo Otokojuku), e resolveu dinamitar a história da maneira mais hilária possível de uma forma que ainda fizesse sentido dentro da lógica do antro de insanidade que é esse mangá, acenando diretamente pros momentos de comédia que permeavam o começo desse mangá em abundância. A comédia em Otokojuku pode não agradar a todos, mas tem alguns momentos em que ela acerta muito bem e causa alguns momentos genuinamente engraçadíssimos, e pra mim essa é uma das melhores piadas que essa série fez (se não for a melhor). Se a gente forçar um pouco dá pra ver uma beleza quase metalinguística nisso, tendo em mente o contexto de tudo que tava acontecendo.

O mais engraçado é que nem dá pra dizer que o arco não estava popular entre os leitores porque nos rankings da Jump da época (que podem ser consultados aqui, em japonês), a série estava nas mesmas posições em que sempre esteve (circulando do meio ao topo do ranking), mesmo nos seus momentos de auge. O arco da Battle of the Seven Tusks estava sendo bem recebido pelos leitores, apesar de eu ter feito algumas críticas pessoais a ele aqui. Isso tudo só pode indicar que o autor simplesmente desistiu de fazer o resto do arco ou se cansou daquilo… tanto que o mangá terminou bem pouco depois com um arco bem curto de encerramento “pra fechar pontas”. O cara simplesmente quis parar um arco no meio do caminho vendo a trabalheira que isso ia dar e arrumou a solução rápida e eficaz mais à altura das maluquices desse mangá que ele poderia arrumar, e isso é simplesmente sensacionalmente hilário. Não tenho como não aplaudí-lo pela coragem.

“Vamos voltar ao Otokojuku!”, a frase que Momotaro Tsurugi, o protagonista da série, normalmente diz a seus companheiros ao fim das longas jornadas de cada arco. A graça dessa frase é a forma como Momotaro a diz, dando a entender que o Otokojuku é como se fosse seu lar, e que seus amigos são como seus irmãos.

Talvez os leitores da Jump na época não tenham gostado muito, pois logo depois desse capítulo a série caiu consideravelmente no ranking (ou pode ser só o habitual de algumas séries de sucesso moderado gradualmente ficando ao fundo da revista quando vão se aproximando do final). Eu realmente não sei se o cara só tava querendo acabar o mangá logo ou se a reação negativa do público foi tão grande que algum editor mandou cancelar ele ou coisa do tipo. Não dá pra saber, a menos que a gente ache alguma entrevista com ele por aí e ele conte mais bastidores dessa maluquice toda. Mas que isso gerou uma história hilária, não temos dúvidas.

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Nintakun

Aspirante a piadista de meia-tigela e nas horas vagas entusiasta de videogame, quadrinhos, e iguarias nipônicas num geral (principalmente mangá/anime/tokusatsu)