A Consciência Cristã de Milton

Retratos e Leituras
13 min readApr 12, 2017

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Pensando em Milton, vejo o firmamento noturno sobre o sombrio mar do Norte. Nuvens imensas conglobam-se em formações monstruosas: a luta da formação do mundo, a luta dos poderes das trevas contra os poderes da luz recomeça; o destino da humanidade está-se decidindo. O representante dessa humanidade é um homem solitário à margem do abismo; e esse homem é cego. Mas participa da luta cósmica nas profundezas da alma. Exorciza o bramido das ondas do mar desconhecido com a magia das ondas verbais do seu canto noturno. A sua coragem de rebelde indomável vence as trevas e torna-se “saintly shout and solemn jubilee”, “victorious psalms”, “endless morn of light”, intermináveis auroras de luz. A atitude imperiosa do rebelde restabelece o trono de Deus. É o poeta da teogonia. Esse cantor cego é Milton.

Para poder dignamente apreciar o tamanho de Milton, preciso afugentar uma lembrança feia. No gabinete de trabalho de meu pai achava-se o quadro horroroso de Munkácsy, O Cego Milton Ditando o “Paraíso Perdido” às Suas Filhas, retrato dum burguês de 1880, disfarçado em costume histórico. Em milhares de exemplares esse crime dum pintor famoso está divulgado no mundo. É exatamente o retrato de Milton que uma posteridade incompreensiva fez à sua própria imagem: é Milton, o “clássico”.

Que é um clássico? As definições imbecis abundam. Acredito ser o termo uma invenção dos livreiros, para poderem vender livros que ninguém gosta de ler. Em virtude dessa definição comercial, um clássico é um autor desconhecido. Ninguém conhece os clássicos, porque toda a gente os conhece. A literatura, a escola, o ar estão cheios de citações, alusões, interpretações; conhecem-se os clássicos desde a infância, e na hora da primeira leitura o clássico está já “conhecido” e incompreensível. A grandeza dum poeta consiste em ver as coisas pela primeira vez, como se ninguém as tivesse visto antes, e um “clássico” insuportável volta a ser o grande poeta de outrora por uma leitura “pela primeira vez”. Basta ler Milton “pela primeira vez” para saber-se que ele é, à parte o gênio universal de Shakespeare, o maior poeta da maior das literaturas.

Comece-se com o pequeno poema L’allegro and Il penseroso, o mais encantador da língua. É inesquecível como, entre mil alusões mitológicas ao gosto renascentista, ninfas bem inglesas brincam entre flores selvagens, e as buzinas de caça do Allegro ressoam pelas “fresh woods and pastures”, matas frescas e prados, perturbando os pastores Corydon e Thyrsis em aldeias, cottages bem inglesas; é inesquecível a melancolia musical do Penseroso, “most musical, most melancholy”, as suas noites sob o firmamento de Hécate, as leituras de Platão ao pé da lareira. Há frescura virgiliana nesse poema, mas também a alegria pensativa do poeta que o Allegro chama “sweetest Shakespeare, Fancy’s child”, doce Shakespeare, filho da Imaginação. Realmente, sobre esse poema cai o doce poente do sol de Shakespeare. Milton é a última voz da velha Inglaterra alegre, da Merry Old England; cantou-lhe o hino funeral, a admirável elegia Lycidas, talvez o mais belo poema da língua inglesa. Milton seria imortal já com esses dois poemas: um artista autêntico. Mas seria apenas um artista incomparável do verso se não tivesse aplicado o seu domínio da língua em evocar, com a música mágica das suas palavras, o drama universal: Criação, Pecado, Maldição, a luta entre Deus e Satanás e a Redenção. No Paraíso Perdido ressoam todas as vozes humanas e mais que humanas, a majestade divina e a grandeza demoníaca dos infernos, o esplendor dos anjos de alto e de baixo; a felicidade voluptuosa dos primeiros homens no Paraíso, as ânsias da tentação e do arrependimento, e o lento passo dos expulsos do Éden, no caminhar solitário, de mãos dadas, pelo mundo e pelos tempos; e há nele, enfim, a música ruidosa, música haendeliana antes de Haendel, o “undisturbed Song” das “sphere-born harmonious Sisters, Voice and Verse”.

O Paradise Lost é o mais sublime poema da literatura universal. Essa sublimidade não é o produto das magnificências da língua, nem do profundo sentimento religioso do poeta, para quem o drama teológico era um sofrimento pessoal, nem sequer da grandeza sem igual do assunto. A sublimidade do Paradise Lost reside justamente nesse elemento que parece contradizer a dignidade do assunto divino: na audácia quase temerária do poeta religioso. Já têm sido notadas muitas vezes as simpatias secretas de Milton pelo seu Satanás. O poema não seria tão dramático e tão humano se Milton estivesse partidariamente ao lado do Todo-Poderoso, a quem a vitória final está assegurada. Mas Milton sente com o anjo das trevas, com o primeiro e o modelo de todos os rebelados. O próprio Milton é um rebelado perpétuo e impenitente. Não é rebelado pelo apetite anarquista da destruição, mas pela mais íntima ânsia da consciência; rebelado contra todas as leis humanas e contra algumas leis divinas, um rebelado que está certo do perdão final de Deus. Com efeito, Milton professou o velho dogma dos heréticos origenistas, a Apokatástasis, segundo a qual o próprio Diabo receberá, no fim dos tempos, o perdão de Deus. Não é esta a única heresia de que o puritano Milton se tornou culpado. Como o seu Samson Agonistes, o velho herói cego entre os filistinos de Gaza, Milton também sacudiu as colunas do templo, até os últimos instantes. Milton, secretário literário do terrível Cromwell, é mais rebelde ainda na sua prosa, a mais viril da língua inglesa. O fundo das suas violentas polêmicas é uma luta perpétua pela liberdade da consciência individual e contra qualquer poder que ouse sobrepor-se à consciência livre do homem. Luta contra qualquer Igreja que se arrogue a orientação das consciências, contra toda Igreja estabelecida, do papa ou do Estado, e mais ainda contra o próprio Estado. A pena de Milton defendeu a execução do rei Carlos I, e defendeu-a com a mesma ânsia profunda no trêmulo da voz, como acusou a indissolubilidade do matrimônio, ele que defendeu nessa ocasião o seu próprio divórcio. “Após a encarnação de Deus em forma humana” — escreve ele, na Defensio Pro Populo Anglicano — “nenhum homem tem mais um direito divino, e um rei que se arroga a soberania que cabe só a Deus, é culpado de morte, conforme o Velho Testamento.” E no mesmo tom, num panfleto em favor do divórcio: “Aquele que coloca o matrimônio ou qualquer outra instituição acima do homem ou da clara exigência da misericórdia, seja ele católico ou protestante, não é senão um fariseu.” No tratado De Doctrina Christiana, de 1662, e que não ousaram publicar antes de 1823, chega a recomendar a poligamia. Cheio é esse tratado de conceitos heréticos e não-conformistas. Ensina a doutrina da graça dos arminianos, reprovada por todas as Igrejas. Rejeita o batismo das crianças. Ensina ter sido criado o mundo, não do Nada, mas da matéria, que é eterna. Como no poema, Milton revela-se quase um maniqueu, crente na luta eterna entre o Bem e o Mal. E como o Paradise Lost já o fez suspeitar, Milton não crê na divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo; acredita ser Jesus Cristo uma criatura de Deus. Milton é sociniano, ariano; um regicida e, para um ortodoxo, um deicida. O maior, depois de Dante, dos poetas cristãos, não seria um cristão!

Pergunta imperiosa: como foi possível a esse poeta haver-se tornado um “clássico”? Bem entendido, um clássico da família inglesa: fazem presente dos livros de Milton às crianças, nos aniversários; lêem Milton às tardes de domingo; deixam-no empoeirar-se nas estantes, pacificamente, ao lado das coleções de sermões da Igreja Anglicana. Como é isso possível?

Milton não foi sempre um clássico. Na vida, era solitário como o seu Samson, prisioneiro entre os filistinos de Gaza; o seu destino foi continuar entre os filistinos. Na época alegre da Restauração, era um excomungado. Só o século XVIII o colocou no trono da poesia inglesa, aquele século dominado pela classe média dos Dissenters, os descendentes dos velhos puritanos. Mas já não são os puritanos de Cromwell. É um puritanismo razoável, amolecido, um pouco racionalista, tranqüilizado. Esse puritanismo desinfetado chegou a desinfetar Milton. Milton tornou-se poeta dum cristianismo bem moderado, igualmente distante da descrença atrevida dos aristocratas e da credulidade ingênua dos camponeses. Poeta indiscutido das classes médias bem-pensantes, que o conhecem sem o ter lido. Um clássico.

Em virtude desse destino literário póstumo, Milton pertence à grande corrente européia da Aufklärung ou Enlightenment, que vai de Bacon e Galilei até aos Enciclopedistas e à Revolução Francesa. Um estudo de Karl Haemmerle mostrou as relações de Milton com a velha escola nominalista de Oxford, onde um Occam e um William de Heytesbury ensinavam, já no século XIV, os conceitos da física de Galilei. Milton, com efeito, era um conhecedor de física e astronomia; ele antecipa o conceito de “espaço” newtoniano, que não é senão um Deus sem poder. Parece que Milton ressuscitou as velhas heresias gnósticas, só para minar a ortodoxa fé cristã; como as rebeliões políticas de Milton parecem preparar ideologicamente as revoluções européias e americanas. Milton parece o primeiro grande poeta da meio descrente e muito liberal burguesia.

Antes de tudo, surgem objeções de ordem literária e crítica contra essa falsa aparência. Milton é poeta da Renascença, mas os seus versos classicistas escondem um conteúdo sentimental e, por vezes, romântico. Com efeito, Milton é um pré-romântico. A sua influência literária começa tarde, no século XVIII; é visível na angústia religiosa de Cowper, em Blake, Wordsworth, Coleridge, em todo o pré-romantismo e romantismo ingleses. Não se esqueça o forte sentimento religioso no romantismo inglês, muito relacionado com o movimento metodista de Wesley, como o romantismo alemão está relacionado com a voga do “segundo pietismo”. Os historiadores do século XIX que não compreendiam o “clássico” Milton, não compreendiam também essa religiosidade protestante. Para eles a Reforma era uma revolução contra a Idade Média, e o protestantismo um precursor do deísmo, do liberalismo religioso e político e da democracia. Desde os grandes estudos de Ernst Troeltsch o sabemos melhor: o velho protestantismo foi uma revolução não filosófica nem política, mas sim religiosa, e profundamente medieval. Milton é o poeta desse protestantismo. Não está sob o signo do progresso, mas sob o signo da Cruz. A sua luta pela liberdade da consciência é uma luta em prol da consciência cristã. Abstraindo das conseqüências não intencionais, pode-se definir: esses puritanos não destruíram a Igreja para abolir o cristianismo, mas para reconstruí-lo como Igreja invisível nas almas. A grande luta entre Deus e Satanás está afastada do terreno da política eclesiástica, para continuar no terreno da consciência religiosa. A alma cristã torna-se cena duma cosmogonia espiritual, duma psicomaquia e duma teogonia. E essa guerra espiritual encontrou a expressão máxima na alma do cego, para quem o mundo exterior morrera, e que observou com os olhos do espírito a luta cósmica, de que ele fora combatente: na alma de Milton.

Milton é o maior poeta dessa cosmologia mística. O seu gênio poético foi fantástico, aproximando-o dos sectários fantásticos, que acompanham a grande revolução religiosa. Daí a sua suscetibilidade às influências estranhas, que os estudos miltonianos de Denis Saurat esclarecem. Milton teve conhecimentos da Cabala judia que o erudito rabino Manasse ben Israel introduzira na Inglaterra; era na época em que o filósofo Henry More, platônico de Cambridge, traduzira o livro fundamental da Cabala, o Zohar. Os mesmos platônicos de Cambridge estudavam assiduamente o filósofo místico alemão Jacob Boehme, filósofo também da preferência de Newton. Não sabemos se Milton leu Boehme. Mas as especulações místicas do sábio sapateiro silesiano sobre o Urgrund, o “fundo profundo”, influíram nas idéias de Milton a respeito do maniqueísmo e da criação do mundo, e os boehmeanos ingleses Lee e Pordage tiraram do seu mestre o dogma da Apokatástasis, que Milton também professou. Tingido com essas influências, o cristianismo de Milton adquiriu um aspecto fantástico, um pouco oriental, que o aproxima dos cristianismos heréticos dos eslavos, como daquele grande tcheco Amos Comenius, que se refugiou, em 1641, na Inglaterra, e que tinha no sangue a rebelião ingênua do camponês Petr Chelcicky e as velhas heresias maniquéias dos Bogomilos. Na aparência, o cristianismo herético, rebelde, de Milton, assemelha-se ao cristianismo racionalista, rebelde, de Tolstói. Mas a heresia de Milton é menos racionalista, mais mística, e, enfim, é inglesa.

Milton distinguiu-se dessas confusões de espíritos anárquicos pelo gosto artístico da Renascença e pelo sentido de ordem bem inglês. Milton permanece, contudo, um inglês classicamente educado, o homem de Cambridge. Mas as suas afinidades com misticismos estranhos têm raízes muito profundas. Os estudos de Haemmerle, de Saurat e dos outros não esclarecem porque Milton sentiu a atração desses mistérios longínquos. Ora, Milton é um inglês cristão e humanista, no qual se abrem fontes esquecidas da alma inglesa, mais velhas do que o humanismo clássico, e mais velhas do que o próprio cristianismo.

A mística cosmológica de Milton é o cume duma velhíssima tradição inglesa que, começando nos tempos primitivos da ilha, não se extinguiu até hoje. É o aspecto mais curioso e menos conhecido da alma inglesa. A mística cosmológica acha-se já na literatura dos anglo-saxões, a precursora da literatura inglesa. Parece mesmo que Milton conheceu, mediante o seu erudito amigo Junius, o poema anglo-saxônio Queda dos Anjos, em que o assunto bíblico é tratado com o espírito bárbaro dos velhos germanos, com o espírito de ingênuas especulações cosmológicas e com o espírito da rebeldia indomável contra Deus e o Diabo. Isto não foi nunca inteiramente esquecido. Esse espírito está vivo, através de todos os séculos da literatura inglesa, no poder mágico de personificar os elementos e as forças da Natureza. Está vivo em certas passagens do Rei Lear; no Casamento do Céu e do Inferno e nos outros livros “proféticos” de William Blake; no Caim, de Byron; em certas expressões de Thomas Hardy (“The President of the Immortals had ended his sport with Tess”); até os nossos dias, no romance The Only Penitent de T. F. Powys, em que Deus se acusa, no confessionário, de todas as misérias do mundo; no Glastonbury Romance, do seu irmão John C. Powys, em que desperta o mito primitivo da paisagem inglesa.

Assim também Milton está nessa estranha tradição inglesa. O que o distingue de todos os seus precursores e pósteros é a sublimidade. A nenhum poeta da literatura universal cabe a palavra “sublime” como a Milton, o cantor cego da luta entre a noite e a luz. Pode-se definir essa sublimidade como a união da beleza estética e da beleza moral. A arte de Milton é uma união única de beleza clássica e de profundeza germânica, de “Strength and Wisdom”, como ele diz no Samson Agonistes. A mesma união aparece na personalidade moral de Milton. Conheço bem os estudos do sueco Liljegren, nos quais revelou as fraquezas morais de Milton; não me convenceu. O egoísmo de Milton, como o afamado egoísmo de Goethe, é próprio duma personalidade superior. É verdade que Milton era voluptuoso, violento, fantástico: fraquezas do grande poeta. É verdade que Milton odiava mais a opressão do que amava os oprimidos: fraqueza do grande rebelde. Essas máculas são o fim definitivo do “clássico” indiscutido, mas a ressurreição vitoriosa do grande homem. Na obra e na vida, Milton confirma as palavras do seu irmão no espírito, William Blake: “Não há grandes obras sem a colaboração do Demônio.” Milton era duma grandeza demoníaca; grandeza de alma monumental, como dos heróis da Antiguidade, agitada pela violenta ânsia religiosa duma natureza pascaliana. Samson Agonistes teve a “soul of an ancient stoic”, a alma dum antigo estóico, sacudida pelas dúvidas e tormentos dum protestante nato. A luta cósmica que ele suportou é uma tragédia antiga, desenrolada na consciência cristã.

Cumpre insistir na realidade cruel dessas tragédias de consciência. Passou a moda de desvalorizar a consciência, reduzindo-a a realidades inferiores, psicofisiológicas e psicopatológicas. Passou a moda de desvalorizar a consciência, reduzindo-a a meros “movimentos psicológicos”. Atualmente, suspeito que a própria consciência já não é tida como realidade. É um erro que será vingado, um dia; e o melhor antídoto parece aquela mal afamada psicanálise. Após o livro fundamental do psicólogo católico Roland Dalbiez (La Méthode Psychanalytique et la Doctrine Freudienne, Desclée De Brouwer, 1936), já não há subterfúgios para afastar a psicanálise como sendo obra do Diabo. Liberta de premissas cientificistas, anacrônicas, e de conclusões doidas, futuristas, ela continua como método, como “via regia” para os abismos da alma. A psicanálise extrai desses abismos a lição terrível e fértil de que as forças profundas da alma são realidades, cujo choque com as realidades superiores da alma constitui a tragédia da consciência. Para Milton, esses choques vitais e mortais identificam-se, numa superposição já não precisamente explicável, com os terrores do esquecido mito germânico e com as ânsias da alma cristã, recebendo daí a sublimidade que distingue o poeta Milton. Esse descendente de valentões bárbaros e de orantes humildes não vê outra solução para a tragédia senão a resolução livre da consciência livre. Por isso é o mais inglês de todos os poetas ingleses, o poeta da liberdade inglesa, e o seu maior prosador também.

Para muitos essa liberdade de consciência é o germe de todas as heresias, e a mais terrível delas; significa o horror supremo, a solidão desamparada do homem no universo. Ao espírito fantástico de Léon Bloy apareceu a Inglaterra, a ilha no mar sombrio, como o “château de l’hérésie”, possuído e defendido por todos os diabos. Contra esse pesadelo precisa-se defender o papel da heresia na “economia” superior do mundo cristão, papel definido num cânone do papa Inocêncio III (cap. 13 X, liv. II, tít. 13): “O que se faz contra a consciência, edifica para o inferno; com Deus, precisa-se desobedecer ao juiz e preferir a excomunhão”; e as palavras esclarecedoras de Santo Tomás de Aquino (Sent. IV, díst. 38): “A Igreja julga conforme as aparências exteriores, mas a consciência está obrigada à sentença de Deus, que vê por dentro do coração; por isso, precisa-se seguir a consciência, mesmo contra a força da Igreja.” Sabemos que houve tais conflitos gravíssimos de consciência; e há-os ainda hoje, como ontem. Eis porque se precisa de heresias: “oportet haereses esse”. Eis por que a Inglaterra não é, para nós outros, o castelo dos diabos, mas o castelo da liberdade da consciência. Visto daí, Milton já não é o rebelde herético e impenitente, mas o advogado intrépido da maior lição que o cristianismo nos ensinou: do valor único de cada alma humana, valor que se revela na dignidade indelével da consciência livre. É uma lição que nos convém. Numa época de consciências adormecidas, não há consolação mais cristã do que a palavra de Milton: “Há só uma reprovação definitiva e um pecado imperdoável: o maior dos horrores, agir contra a consciência.” Como Milton, estamos solitários em face do mar desconhecido dos nossos destinos, e as nuvens conglobam-se em monstros horrorosos. Que o Deus dos cristãos nos dê a impavidez estóica da consciência livre, em que Milton, o protestante herético, se encontra com o católico muito independente Péguy: “Tout l’appareil des puissances, la raison d’État, les puissances temporelles, les puissances politiques, les autorités de tout ordre, intellectuelles, mentales même, ne pèsent pas une once devant un mouvement de la conscience propre.”

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Texto Fonte: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos 1942–1978, Volume I, De A Cinza do Purgatório até Livros na Mesa. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora/Topbooks, 1999. (p. 173–179). Editado por: Pedro G. Segato.

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Retratos e Leituras

Ensaios literários do escritor austríaco Otto Maria Carpeaux (1900–1978).