A Fronteira

Retratos e Leituras
11 min readNov 22, 2016

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Pelo cinqüentenário de Arthur Rimbaud, 10 de novembro de 1891

“A poesia é incomunicável.
Fique quieto aí no seu canto.
Não ame.”

Assim fala o poeta brasileiro; e o outro poeta brasileiro responde:

“Sei que fora de mim há um clima diferente
Sei que há céu azul, supremas claridades.
Sinto-me capaz de amar o ambiente
de incompreensão que me cerca.”


Estes versos descrevem toda a região da poesia, a tensão entre a personalidade fechada e o cosmos aberto. Entre uma e outro há uma fronteira, cortante como a navalha dos suicidas, ou como a crista sobre o abismo, numa atmosfera onde já não se pode respirar. O homem desta fronteira é Arthur Rimbaud.

Tenho medo de falar da sua vida, que, felizmente, não se tornou ainda proeza dos biógrafos profissionais, mas que se prestaria facilmente a isso. Pois essa vida é uma série de aventuras, antes uma série de tentativas de fuga, uma série de evasões que levam sempre até à fronteira extrema. Não há acontecimento mais simbólico do que o nascimento de Rimbaud, filho póstumo, como se o mundo tivesse sido morto antes dele; e nasceu em Charleville, cidade de fronteira, fronteira belgo-francesa, lá onde a fronteira é sempre trágica. Depois que o puritanismo pétreo da mãe-viúva o afugentou, ele está em Paris, onde Victor Hugo descobre o gênio nesse menino maligno de 17 anos. Na fronteira da velha poesia moribunda e de novas experiências poéticas, Rimbaud conhece o seu primeiro e último dia de glória; a catástrofe de 1870, fronteira entre duas épocas, destrói tudo, as chamas devoram Paris. Segue-se a segunda evasão, evasão dessa fugitiva glória literária a que ele chamou, mais tarde, “une saison en enfer”. Vagabundagens, em companhia de Verlaine, que por amor do estranho menino abandona mulher e filhos. Noites sob o céu, que Rimbaud descreveu inesquecivelmente:

“La douceur fleurie des étoiles et du ciel, et du reste descend en face du talus, comme un panier, contre notre face et fait l’abîme fleurant et bleu là-dessous.”

Será o abismo, essa vagabundagem nas fronteiras da sociedade, até o crime. — Tiros, prisão, fuga. Então, a abundância verbal do Bâteau ivre converte-se em mutismo, numa afasia metafísica. “Je ne sais plus parler” — diz ele. Queima e destrói toda a sua poesia. Foge da poesia. Sucedem-se as evasões, sempre em busca do sonho:

“Ô saisons, ô châteaux!”

— quatro palavras mágicas que exprimem perfeitamente a nostalgia do Nada fantástico ao ar livre do vagabundo. Duas vezes a fuga fracassa, e a organização policial do mundo reconduz o náufrago a Charleville. Enfim, é o Oriente, onde os achou — achou-os? —, aos seus “saisons et châteaux”, o mercador fantástico dos mares e dos desertos, na Arábia, na Abissínia, nas fronteiras do mundo civilizado — achou-os?

“Par délicatesse
J’ai perdu ma vie”


— diz um dos seus últimos poemas, e a “délicatesse” parece estranha na boca desse niilista brutal, ressoa quase como remorsos. Dizem que houve remorsos no hospital de Marselha, onde o fracassado sucumbe, onde atravessa a fronteira do país do qual não se volta.

O que é que ele deixou? De modo nenhum os tesouros orientais de Mil e Uma Noites. Apenas uma obra esparsa, e dificilmente acessível.

A obra continua dificilmente acessível. Há muitas interpretações, e há uma explicação histórica, por Marcel Raymond, que traça a filiação, de Rimbaud até o super-realismo, contrastando-a com a outra filiação, de Mallarmé até Valéry, e onde Baudelaire representa o progenitor comum. Mas Thibaudet contradiria, e com razões suficientes. Enfim, não há senão um verdadeiro crítico de Rimbaud: o próprio Rimbaud, que julgou toda a sua obra, queimando-a. Era um ato, o ato mais definitivo da sua vida. Para explicar a sua obra, precisa-se interrogar a sua vida, mas num sentido diferente do que era habitual a Sainte-Beuve. É uma explicação por contradições, por dois enigmas contraditórios, pois a vida de Rimbaud é também enigmática: essa vida de evasão, vida antiliterária e anti-social, caso único na literatura francesa, a mais social das literaturas. Representa mais do que a erupção duma adolescência en détresse. Representa, para dizer a verdade, uma vida incompreensível, como a sua obra permanece incompreensível ao burguês. Mas esta é, exatamente como convém, a posição do poeta.

Há nisso um paradoxo. “Os poetas” — disse Wilhelm Dilthey — “constituem os nossos órgãos de compreensão do mundo.” O poeta diz o que os outros não sabem dizer; mas recusa comunicar-se numa língua que seja a nossa língua. Aos não-poetas a poesia mantém-se essencialmente incompreensível, a aparente compreensão não passando dum acaso ou dum mal-entendido. E é muito bom que assim seja: pois a poesia, não sendo deste mundo, é o julgamento do mundo; se o mundo compreendesse a poesia, estaria já julgado. Neste sentido, Dante é o padrão, Dante que se recusou ao seu século e a todos os séculos. A recusa cria a reação: Dante foi exilado, e a canonização posterior, por todas as espécies de mal-entendidos astutos, não conseguiu revocá-lo do túmulo solitário de Ravena. Hoje, a vingança é mais incisiva: o poeta parece um vagabundo inadaptado ou um ridículo. E isto constitui o julgamento da poesia pelo mundo.

Só um poeta consentiu nesse julgamento: Rimbaud. Queimou os seus poemas. Por isto a sua vida é a fronteira da literatura e a sua obra é a fronteira da poesia. Non plus ultra.

Onde fica esta fronteira? Conta uma velha lenda hindu que os discípulos do sábio Sânkara pediram a este que lhes comunicasse o “Grande Brama”, a última sabedoria. O sábio permaneceu silencioso. Por duas vezes os discípulos repetiram o pedido, e por duas vezes o sábio permaneceu silencioso. Mas como eles pediram ainda uma vez, o sábio abriu a boca: “Já vos comuniquei o mistério: o Grande Brama, a última sabedoria, é o silêncio.” O mistério do mundo é indizível, fica fora do nosso mundo das coisas dizíveis. A fronteira entre o dizível e o indizível, esta linha cortante como a crista sobre o abismo, é o lugar da poesia.

A poesia quer explicar o indizível: por isso, ela choca-se com a língua. A língua é, ao mesmo tempo, o meio de expressão da poesia e o instrumento da vida quotidiana: “meaning” e “semantic”, para aplicar uma terminologia nova (Kenneth Burke, Philosophy of Literary Form: Studies in Symbolic Action, Louisiana State Univ., 1941). Para escapar aos equívocos da língua convencional, os poetas criam uma língua artificial, que está sempre ameaçada de tornar-se, por sua vez, uma língua convencional da poesia; então ela cede a novos artifícios, que constituem a face exterior das “novas sensibilidades” de todas as “poesias modernas”. Tal evolução indica sempre uma conquista: os poetas conseguiram deslocar a fronteira do dizível na direção mais perto do indizível, mais perto do mistério, que continua silêncio. Mas a língua do “mundo” segue a direção oposta: tende a afastar o mistério, a tornar-se cada vez mais convencional, eliminar os restos irredutíveis da personalidade e do cosmos e substituí-los pelos lugares-comuns fixados. Os dois pólos da língua, língua poética e língua “mundana”, afastam-se, cada vez mais, um do outro. A poesia torna-se o “paradoxo” no mundo, “paradoxo” no sentido de Kierkegaard. Cada refinamento do instrumento poético torna o paradoxo mais agudo, cava mais profundamente o abismo entre a poesia e o mundo. Já não se compreendem. Kierkegaard conta que, outro dia, irrompeu num circo um incêndio, e o diretor o fez comunicar ao público pelo clown; mas o público, acostumado a rir-se das palavras do clown, riu-se, ficou e perdeu-se nas chamas. É o julgamento do mundo pela poesia.

Esta tragédia tem uma outra face também. A língua é, ao mesmo tempo, a expressão mais individual da personalidade e o dicionário mais universal do cosmos. Nas suas origens, a poesia é a voz pessoal do cosmos. Porém depois o mundo apoético se intercala e interrompe, pelos convencionalismos, a comunicação entre a personalidade e o cosmos. Precisa-se do artifício para se manter penosamente o sentimento pessoal do mundo. Os artifícios do instrumento poético tornam a língua da poesia cada vez mais pessoal, afastando-a do mundo “civil”, mas afastando-a também do mundo “cósmico”. O “dicionário do universo” transforma-se em língua privada, em línguas individuais, afastadas das raízes tradicionais, línguas verdadeiramente “modernas”. Essa evolução acompanha, como se vê, a evolução do mundo moderno.

Que é que é moderno? O afastamento do universo é moderno. O afastamento do “mundo”, civil ou burguês, é antimoderno. Rimbaud, o enigmático, percorreu os dois caminhos, ao mesmo tempo. É, ao mesmo tempo, o poeta mais moderno e o poeta mais antimoderno.

Pela sua poesia, que já não conhece a “vida moderna” do mundo e que já não é compreendida por ela, ele é o poeta mais antimoderno. Pela sua vida, de individualista o mais radical, é o homem mais moderno. Enfim, queimou a sua poesia: a sua vida era mais forte do que a sua poesia. É a sua vida que mais importa na evolução da poesia.

A vida de Arthur Rimbaud é uma série de evasões. De que é que ele foge? Foge da sua poesia. Isto parece incompreensível aos burgueses incapazes de tomar a sério uma vagabundagem voluntária. Porque são incapazes de tomar a sério a poesia. Mas ninguém tomou jamais a poesia tanto a sério como Rimbaud, que a queimou e destruiu. Isto é, por sua vez, um escândalo para os poetas, incapazes de tomar a sério, como ele, a vida. Deste modo, Rimbaud é “um escândalo para os gentios e uma estupidez para os judeus”. Coloca-se do lado da poesia contra a vida, e do lado da vida contra a poesia. Abandonou a poesia ao perceber que ela é necessariamente um artifício. Rimbaud é um revoltado contra todos os artifícios. As suas cartas manifestam o niilista mais completo que jamais tenha existido, revoltado contra a família e contra a literatura, contra a fé e contra o Estado, contra a ciência e contra todo bonheur établi. O seu ocultismo, a sua submersão no sonho, que desfaz todas as coerências da razão e todos os obstáculos da moralidade, representam caminhos para conseguir o poder mágico de destruir o mundo. Para falar com os teólogos: Rimbaud, revoltando-se contra a criação, revolta-se contra Aquele “per quem omnia facta sunt”, contra o criador a que a fé cristã chama, tão profundamente, o “Verbo”. O sentido do mundo está atacado por essa rebelião luciférica.

Os românticos conheciam isto também, é verdade; mas era uma fraca coquetterie, um flirt com o Nada; e a forma estritamente disciplinada, arquitetônica, de Baudelaire, desmente o seu satanismo e trai o sentido hierárquico do seu catolicismo secreto. Rimbaud não é romântico nem baudelairiano; é conseqüente: se não há sentido no mundo, então a expressão verbal deste sentido, a língua, perdeu a sua razão de ser. À revolução contra o Verbo segue-se a revolução contra a Palavra. A revolução contra a língua é a mais radical das revoluções; então, já não há poesia; e a vida está vingada. Rimbaud lembra-me um aforismo diabólico de Franz Kafka: “Na luta entre ti e o mundo, apóia ao mundo; não se deve lesar a ninguém, nem sequer frustrar o mundo da sua vitória.” Rimbaud vivia este conselho. Tomou o partido do mundo, queimou a sua poesia. É o fim da poesia. O mundo volta ao silêncio.

Depois de Rimbaud, o grito está justificado: a poesia morreu. Sem dúvida, havia poetas incomparavelmente maiores do que ele, que não se realizou. Mas, após uma leitura de Rimbaud, todos parecem prosaicos. Lembra o verso de Corneille:

“Cette obscure clarté qui tombe des étoiles.”

A claridade escura de Rimbaud escurece todas as claridades. Lamartine parece um classicista enfadonho, Musset um rimailleur, Verlaine um gago, Hugo um ancião mítico. Só Baudelaire resiste.

Rimbaud não é um começo, mas um fim. A sua vida confere-lhe o direito de declarar “la séance close”. Não há caminho para trás de Rimbaud. Após ele, há somente duas alternativas: a convenção eterna, o plágio convencional, a queixa da poesia sobre o mundo; ou a queixa do mundo sobre a poesia, o desespero metafísico da criação caída, a poesia da suprema consciência humana. Baudelaire é o padrão desta poesia. Eis porque a poesia de Baudelaire resiste: é a voz autorizada da humanidade presente e da sua condição eterna. Eis porque esta poesia autorizada persiste em vozes autorizadas: Manuel Bandeira é a voz autorizada da poesia brasileira, a qual conseguiu, com ele, o seu lugar na literatura universal.

A poesia baudelairiana, bandeiriana, salva a poesia. Abre-lhe o caminho que só foi possível depois de Rimbaud: o caminho às origens. Mas como a poesia nasce da comunhão entre a personalidade e o cosmos, a poesia moderna, pós-baudelairiana, pós-bandeiriana, ensaia dois caminhos diferentes — o da poesia mais pessoal e o da poesia mais universal — na esperança de reencontrar o sentido: a Palavra e o Verbo.

Correspondem a esses dois caminhos duas correntes da poesia contemporânea. Abstraindo das “mensagens poéticas”, aliás indefiníveis, prefiro designar essas correntes, mais tecnicamente: o epigrama e a ode. A poesia “epigramática”, carregada de sentido, fechada e amarga, é a expressão mais densa da personalidade. Poder-se-iam inscrever-lhe as palavras de Santo Agostinho: “Noli foras ire; in interiore homine habitat veritas.” A poesia “ódica”, abundante de coração, aberta e de simplicidade humana, é a expressão mais larga do sentimento cósmico. Poder-se-ia inscrever-lhe as palavras do apóstolo: “Si linguis hominum loquar, et angelorum, charitatem autem non habeam, factus sum velut aes sonans, aut cymbalum tinniens.” Há a verdade da Palavra naqueles epigramas, e há a caridade do Verbo nestas odes. Estabelecida a árvore genealógica da “poesia do mundo caído”, de Baudelaire a Bandeira, poderia estabelecer-se a árvore genealógica da poesia epigramática e da poesia ódica, da sua origem comum, no Rimbaud das llluminations e do “Bâteau ivre”. Bem entendido, não se trata de “influências”. Manuel Bandeira, um dos poetas mais pessoais do mundo, não é um “Baudelaire brasileiro”; mas ele tem, isto sim, na poesia brasileira, a função de Baudelaire na poesia francesa. Do mesmo modo, não há influência visível, mas sim filiações invisíveis, “correntes sublunares” (em analogia com “subconsciente”), entre Rimbaud e os dois grandes poetas com que principiei: entre o Rimbaud epigramático da “verdade interior” e o Carlos Drummond de Andrade da “poesia incomunicável”; e entre o Rimbaud “ódico” da caridade cósmica e o Augusto Frederico Schmidt do Sinto-me capaz de amar.

É grande a tentação de estabelecer um panorama da poesia contemporânea sob o aspecto rimbaudiano. Jules Supervielle, Stephen Spender, Gottfried Benn, Jorge Guillén, Lionello Fiumi, Vladislav Chodassevitch, H. Marsman, duma parte; e de outra parte Pierre-Jean Jouve, Hugh Auden, Franz Werfel, Rafael Alberti, Giuseppe Ungaretti, Boris Pasternak, Jan Slauerhoff.

Há uma contradição, decerto, mas a identidade dialética também. O poeta, cujo “sentimento do mundo” chega ao dever de “anunciar o Fim do Mundo”, confessa também:

“Estou preso à vida...
O presente é tão grande, não nos afastemos.”


E o poeta que cantou o “desejo de sol e de um tempo novo”, professa o:

“Seremos simples como a noite, a grande noite resinosa e infinita.”

O caminho desta dialética, que não pode ser pensada senão em poesia, é o caminho de Une saison en enfer até às llluminations: o caminho que Rimbaud percorreu, e ao fim do qual achou o mágico poema que, agora, já não será misterioso:

“Elle est retrouvée!
Quoi? l’éternité.
C’est la mer mêlée
Au soleil.
Mon âme éternelle,
Observe ton voeu
Malgré la nuit seule
Et le jour en feu.”


Há nesta poesia um fim e um começo. O espírito da fronteira nela está, da fronteira entre o dizível e o indizível; entre a vida e a morte. Só um atravessou essa fronteira, a fronteira do país donde não se volta: Arthur Rimbaud.

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Texto Fonte: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos 1942-1978, Volume I, De A Cinza do Purgatório até Livros na Mesa. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora/Topbooks, 1999. (p. 147-153). Editado por: Pedro G. Segato.

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Retratos e Leituras

Ensaios literários do escritor austríaco Otto Maria Carpeaux (1900–1978).