[3] Um argumento cosmológico da contingência favorável ao panenteísmo e desfavorável ao teísmo tradicional

Redescobrindo Deus
6 min readDec 25, 2021

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Wassily Kandinsky, Composition VI

Introdução

No primeiro e no segundo texto, foi defendido a existência de Deus em uma visão naturalista que está de acordo com uma concepção panenteísta. O objetivo do presente texto é explorar mais um pouco essa concepção de Deus através de um argumento cosmológico da contingência e, após isso, contrastá-la com o teísmo tradicional, argumentando que o Deus panenteísta aqui proposto é um candidato mais razoável para a explicação da existência do Universo.

O argumento

Uma possível formulação do argumento cosmológico da contingência com premissas e conclusão bem liberais e que assume um princípio da razão suficiente (PRS) fraquíssimo, que talvez sequer seja um PRS propriamente dito, é o seguinte:

(1) Alguns estados de coisas têm explicações para suas existências.

(2) Existe um estado de coisas que inclui todos os estados de coisas contingentes.

(3) Portanto, há ou não há uma explicação para a existência desse estado de coisas.

(4) Se há uma explicação, ela envolve um ser necessário, que pode ser chamado de Deus.

(5) Há uma explicação.

(6) Logo, a explicação envolve um ser necessário, que pode ser chamado de Deus.

Sobre (1), observa-se que o PRS assumido é fraquíssimo de fato, uma vez que não se assume de antemão que todos os estados de coisas possuem explicação. Como dito antes, talvez isso sequer seja um PRS.

Sobre (2), o estado de coisas que inclui todos os estados de coisas contingentes é o que foi chamado nos outros textos de Totalidade. Contudo, uma observação precisa ser feita: quando nos referimos à Totalidade, não estamos nos referindo a algo que possui propriedades estáticas, mas sim a algo cujas propriedades estão em constante mudança na medida em que suas partes se modificam. Se o princípio da identidade dos indiscerníveis for levado ao pé da letra, a cada momento que a Totalidade muda, ela é outra Totalidade em razão de, no processo de mudança, adquirir propriedades que antes não possuía, o que proporcionaria sucessivas outras identidades. Mas, em algum sentido, ainda nos referimos à Totalidade como algo que é o mesmo ou que tem a mesma identidade há bilhões de anos, de semelhante modo às coisas que a todo momento nos referimos como sendo as mesmas ou tendo a mesma identidade apesar de adquirirem novas propriedades com o decorrer do tempo. Talvez haja um marco de identidade que serve para demarcar a identidade das coisas em constante mudança em sentido mais frouxo, como o carro que é o mesmo em razão de que é “o carro da marca tal que eu comprei no dia tal”, a pessoa que é a mesma em razão de que é “a pessoa com o nome tal que nasceu no dia tal cujos pais são tais” etc. No caso da Totalidade, é razoável dizer que o seu marco de identidade é simplesmente ser “a coleção de todos os objetos e processos que existiram, existem e existirão de forma física ou natural”. Ela pode constantemente mudar e adquirir novas propriedades, mas esse marco demarca sua identidade de tal modo que podemos falar em “a Totalidade” como sendo “a mesma coisa” referida em qualquer fase de sua história.

Sobre (3), devemos primeiramente nos questionar se há uma explicação para a existência da Totalidade. Como demonstrado no meu primeiro texto, podemos dizer que, assim como não há razões epistemológicas e metafísicas para assumir que outra Totalidade absolutamente separada desta existe, não é realmente possível que esta Totalidade não existisse. Do ponto de vista das coisas realmente possíveis, a Totalidade é algo necessário. Contudo, como também explicado com auxílio do meu segundo texto, isso não quer dizer que as coisas atuais são necessárias ou que tudo o que acontece é necessário. Isso quer dizer tão somente que é necessário que algo que pode ser identificado como “a Totalidade” — enquanto “a coleção de todos os objetos e processos que existiram, existem e existirão de forma física ou natural” — exista, sendo a Totalidade apta a manifestar quaisquer disposições realmente possíveis durante sua história. Basicamente, está sendo dito que algo, apesar de poder mudar, tem existência necessária. Como bem sintetizou Charles Hartshorne, um dos precursores do teísmo do processo: “Dizer que uma classe não poderia estar vazia não é dizer que seus membros particulares são necessários”. Ou seja, a Totalidade, aquilo que, apesar de poder apresentar mudanças, ainda tem sua identidade como “a Totalidade” preservada, é uma classe que não poderia estar vazia, independentemente de se seus membros são estes ou aqueles. Nesses termos, a Totalidade é algo necessário, isto é, não poderia inexistir. E sendo “a Totalidade” o mesmo que “o estado de coisas que inclui todos os estados de coisas contingentes”, então, naqueles termos, “o estado de coisas que inclui todos os estados de coisas contingentes” é necessário.

Sobre (4), (5) e (6), dado o que foi exposto anteriormente, pode-se dizer que há uma explicação para a existência “o estado de coisas que inclui todos os estados de coisas contingentes” e que ela envolve um ser necessário, a própria Totalidade. No caso, a Totalidade necessária está além de todos os seres particulares do Universo enquanto um todo diferenciado de suas partes e processos tomados individual e isoladamente, tal como uma bicicleta em relação às suas peças individuais e processos isolados. Ademais, como também já demonstrado, a Totalidade fundamenta essencialmente e existencialmente todos os seres particulares que a constituem, apesar de a fundamentação ser recíproca. Além disso, como também já explicado, a Totalidade pode ser vista como algo “separado” do mundo, em termos semelhantes a como pode ser dito que o Deus do teísmo tradicional é “separado” do mundo. Diante do exposto, pode ser dito de certo modo que a Totalidade é o “fundamento de todo ser que está além de todo ser cuja existência é necessária” e que está “separada” do mundo. Dada a essência da Totalidade, ela pode ser chamada de Deus em razão de o que as pessoas estão dispostas a chamar de Deus é exatamente o “fundamento de todo ser que está além de todo ser cuja existência é necessária” e que está “separado” do mundo. Porém, no caso, todos os seres particulares estão na Totalidade — Deus — , o que configura o panenteísmo. De semelhante modo a como dizia A. N. Whitehead, que era um panenteísta com visão parecida: os seres particulares do mundo e seus processos têm um locus específico em Deus, mas Deus não tem um locus específico no mundo. Deus é o todo que transcende, permeia e fundamenta tudo e onde tudo está contido.

Nesse ponto, um ateu filosófico pode concordar com a conclusão de que “Deus existe”, mas se recusar a chamar aquele “ser necessário” de Deus. Contudo, em nenhum argumento cosmológico da contingência há como implicação algum tipo de coerção nominal para chamar o “ser necessário” de Deus. Isso é uma escolha que depende da postura existencial de cada sujeito frente ao “ser necessário”. Entretanto, o paralelismo conceitual entre o “ser necessário” aqui exposto e o que normalmente é chamado de Deus persiste independentemente dessa escolha, o que torna essa nomeação válida.

O desfavorecimento ao teísmo tradicional

O argumento exposto não deve ser visto como uma refutação direta ao teísmo tradicional. Ele é melhor visto como sendo somente um argumento desfavorável a ele na medida em que permite explicar a existência do “estado de coisas que inclui todos os outros estados de coisas” sem apelar para um Deus que transcende os seres particulares em sentido forte, o qual não existiria de forma física e nem natural. Diante disso, não é necessário multiplicar o número de entidades existentes para explicar a existência do “estado de coisas que inclui todos os outros estados de coisas”, o que probabilisticamente a priori fornece menores chances de erro, uma vez que, a priori, quanto menos elementos um modelo explicativo possui, menor é a probabilidade de ele estar errado. Essa simplicidade é uma virtude que favorece o panenteísmo aqui proposto em detrimento do teísmo tradicional.

Outro ponto importante é que aqui foi demonstrado que há um arcabouço conceitual que torna menos óbvio o tratamento do “estado de coisas que inclui todos os estados de coisas contingentes” como algo a priori contingente. O teísta tradicional precisará de esforços ainda maiores para contornar isso, o que torna mais problemático o apelo ao Deus do teísmo tradicional como explicação para a existência do Universo no contexto do argumento cosmológico da contingência.

Conclusão

Baseado nesse argumento cosmológico da contingência, um naturalista pode tranquilamente “acreditar em Deus”, contudo, não em sentido tradicional. O mais importante dessa visão é enriquecer a perspectiva da existência de um naturalista frente ao mundo, permitindo-lhe sentir que está fazendo parte de algo “maior” que se encaixa na descrição daquilo que as pessoas estão dispostas a chamar de Deus.

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