Capitalismo e ética no design: “ser designer é tomar uma posição moral”

Aline Ferreira
4 min readMar 27, 2023

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O presente texto é a segunda parte de meus comentários sobre o livro Court traité du design, de Stéphane Vial. Caso ainda não tenha lido a primeira parte, clique aqui. Recomendo que faça a leitura, pois poderá entender melhor o que será abordado a seguir.

O tema do capitalismo e da ética no design é tratado principalmente em dois capítulos, cujos nomes são bastante elucidativos. Trata-se do Capítulo 3, chamado “Design, crime e marketing: onde se conta a aliança tenebrosa do design e do capital”. E do Capítulo 4, “Para além do capital: onde se enuncia a lei moral do designer”.

Há, nessa discussão, duas frentes. A primeira se dá na crítica à associação do design ao marketing — denominado em francês como design mercatique. (Não encontrei tradução para o português para “mercatique”, a não ser como “marketing” — embora ele também use esta palavra em inglês, mas como um substantivo, e não como adjetivo.)

Já a segunda frente discute qual deve ser a tomada de decisão moral da pessoa designer, de modo que ela não se renda completamente à mercantilização, ao mesmo tempo em que busca projetar um mundo melhor.

Assim, Stépahne Vial aponta que existe uma síndrome do designer, em seu sentimento de cumplicidade com o capitalismo. Fenômeno que se intensifica com o surgimento da sociedade do consumo. Com ela, o design passou a estar ligado aos desejos do consumidor. Assim, “a tarefa do designer, e mesmo seu dever, é a partir de então tornar o produto desejável para vendê-lo mais facilmente” (Vial, 2010, p. 18).

Aponta-se, nesse sentido, que no século XX o design passa a ser confundido com o marketing. Começa-se a falar, então, de design de produtos, não mais de objetos. Mesmo as definições de marketing e design passam a se confundir. Enquanto, na verdade, o design deve estar ligado ao “‘efeito de design’ a serviço dos indivíduos” e não ao “‘valor agregado’ a serviço das marcas” (Vial, 2010, p. 21). Disso, surge uma questão moral.

Tal problematização está relacionada à contradição do design que remonta as suas origens socialistas na Inglaterra, mas o seu desenvolvimento capitalista, primeiro na Alemanha e, depois, nos Estados Unidos. Essa questão gera um paradoxo moral, gerando mesmo uma ambivalência política ao designer. Nas palavras do autor,

O design é fundamentado numa contradição estrutural e histórica. De um lado, o design é uma invenção socialista: ele nasce na Inglaterra da revolta contra a devastação da industrialização sobre o ser humano. De outro, o design é uma invenção capitalista: ele nasce na Alemanha da assunção da produção industrial de massa e cresceu nos Estados Unidos sob a forma do industrial design. Esta contradição estrutural é única ao mundo: nenhuma outra atividade cristaliza nesse ponto uma tal ambivalência política na sua própria definição. Ser socialista e capitalista ao mesmo tempo, eis o que é demandado ao designer. Uma demanda não apenas paradoxal, mas também contraditória: trata-se de fazer design industrial sem fazer indústria (Vial, 2010, p. 27).

A solução encontrada pelo autor para resolver este paradoxo moral é considerar a discussão sobre os meios e os fins. Nessa perspectiva, considerando o seu lado autêntico, o design se esforça para ir além do capital. Este último deve ser o seu meio, não o seu fim. Quando se torna o seu fim, ele se confunde com o marketing. Não por acaso, há todo um campo de discussão entre os teóricos do design sobre o “mau” e o “bom” design. Entre os “colaboradores do capitalismo” e a estética funcionalista e exigência da verdade.

Tais discussões remontam desde a década de 1950 nos Estados Unidos, chegando até os anos 1960 com a elaboração do design crítico na Itália (como o Antidesign, de Joe Colombo). No design crítico italiano, denunciava-se o “culto aos objetos” e defendia-se que o design servisse às “verdadeiras necessidades dos homens” (cf. Vial, 2010, p. 29).

Diante desse debate, desse paradoxo intrínseco do design, o autor começa a refletir sobre a ética.

Parte-se da constatação de que o design marketing é uma realidade. Ele existe quando o meio e o fim são o mercado. O design ético considera, por sua vez, o mercado e o capital como um meio, mas jamais como um fim. Isso parece resolver dois extremos: a “irresponsabilidade generalizada” e a “loucura paradoxal”.

Tal discussão é importante, pois “não há design sem moralidade, no sentido nobre do termo. O problema da moralidade do design faz parte integrante do problema de identidade do design. […] Ser designer, é tomar uma posição moral” (Vial, 2010, p. 31, negritos meus).

Apresentado o antagonismo entre design marketing e design autêntico, agora é possível definir o que é design, a partir de seus efeitos. Este é o terceiro tema que encontramos no livro, o qual discutiremos na Parte III dessa série de comentários. Clique aqui para ter acesso.

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Aline Ferreira

I'm a sociologist with a Ph.D. in Social Sciences. Visit my portfolio: www.alineferreira-phd.com