Ceia Online. Montagem da “Última Ceia” (DaVinci) de autor desconhecido, aplicada em foto de Alex Knight por Dalmer Ordontis.

Com esperança, mesmo em meio ao lamento

André Pereira
10 min readApr 6, 2020

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Este é o terceiro de um conjunto de textos na questão “Como celebraremos a Eucaristia em tempos de pandemia?. No primeiro, esclareço o tom em que escrevo, presto os devidos agradecimentos e apresento a estrutura do conjunto. Se você quiser, ele está aqui.

Desenvolvendo o primeiro bloco argumentativo, defendi que há precedente bíblico para nos “reunirmos espiritualmente” e participarmos da Assembléia Solene, e que a Ceia sempre considera a ausência. Podemos cultuar e celebrar a Eucaristia mesmo neste período, ainda que com grandes prejuízos. Devemos fazer isto com o ardente desejo de estarmos juntos.

Nesta segunda parte argumentativa abordo o aspecto afetivo, ou sentimental, que envolve a celebração da Ceia. Lida com a objeção de que vivemos tempo de Exílio, portanto não é tempo de celebração e Ceia, mas de choro e jejum. Contra estas objeções, defende mesmo em nosso cenário de exílio e lamento devemos celebrar a Ceia, como manifestação de esperança. Este bloco em particular conta com contribuições importantes dos meus amigos Tássyo Almeida, Zé Bruno e João Vinícius Abreu.

Esta objeção afirma que devemos adotar uma “Teologia do Exílio”, uma postura de lamento. O contato que tive com o argumento foi com o texto de Scott Swain, de onde tiro a citação:

Há um tipo de lembrança que acompanha o exílio da cidade de Deus (Sl 137.5–6), uma lembrança que leva a lágrimas fiéis (Sl 137.1–2) e que cultiva um anseio cheio de esperança pela restauração (Sl 63.1; 143.6), a lembrança daqueles que já provaram e que, pela graça de Deus, sabem que provarão e verão novamente a bondade do Senhor, seja na sua mesa na assembleia pactual, seja nas bodas do Cordeiro (Ap 19.9).

Por estarmos privados de nossas reuniões presenciais, não estaríamos em tempo de celebração, de Eucaristia, mas de lamento, de jejum.

Começo reconhecendo que o argumento é muito, muito bonito. Passa a sensação de harmonia, de equilíbrio: haveria um tempo de Eucaristia e de jejum, “tempo de abraçar, e tempo de abster-se de abraçar” (Ec. 3) e passar alcool gel! Foi a leitura deste texto e desta ideia que, quando estava em dúvida nesta questão, me levou a afirmar que era contra a ideia da celebração online da Ceia.

Pessoalmente, enxergo uma relação muito próxima entre a ceia e o jejum: ambos são meios físicos (refeição e abstenção de alimentos) que Deus usa para benefícios espirituais. Isso por si já desafia as rígidas separações que por vezes fazemos entre material e espiritual, ou entre racional, biológico e espiritual. Somos seres integrais, e quando estas divisões extrapolam o “lado pedagógico”, caímos num reducionismo. A equivalência parece ter sentido. Para aumentar o apelo um pouco mais, a Quarentena se dá no tempo da Quaresma.

Mas depois, conversando e refletindo sobre o argumento era biblicamente coerente ou não, fiquei incomodado. Algumas percepções me levam a segurança de que, justamente pelo momento, é significativo que celebremos a Eucarista. Compartilho estas 4 percepções abaixo.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que sim, [2.1] vivemos em tempos de Exílio. Mas isto não depende da Pandemia. Nosso Exílio não é em função de estarmos privados de estar juntos nos prédios de nossas igrejas, ou de estarmos reclusos em casa, ou pelas perspectivas de caos econômico.

O exílio é a nossa condição escatológica — nossa posição, como podo de Deus, no Grande Drama da História da Redenção.

Barbosa, Pedrão, Thiagão, Mike, Antônio Carlos, eu, Daniel, David e Zé Bruno. Que dias preciosos neste Vocatio!

Michael Goheen, em curso do Vocatio aqui em Brasília, afirmou que a Igreja é o povo do novo êxodo vivendo no novo exílio na Grande Babilônia.

O carta de 1Pedro aborda isto em sua estrutura. Tal como o povo do primeiro Êxodo, os cristãos são eleitos e peregrinos (1:1). Assim como Israel foi liberta do Egito, sendo poupada pelo sacrifício do cordeiro pascoal, a Igreja foi liberta por Deus do pecado e da morte: “Conforme a sua grande misericórdia, ele nos regenerou para uma esperança viva, por meio da ressurreição de Jesus Cristo” (1:3). No Êxodo, a herança seria Canaã. No Novo Êxodo, a herança está “guardada nos céus” (1:5). O deserto e as provações fazem parte desta jornada, o que testa o caráter ao ser “refinado pelo fogo” (1:7, conforme a situação de sofrimento e perseguição no contexto da carta). Desta forma, a igreja é “geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus” (2:9, cf. Êx. 19).

Mas eles também são o povo do Novo Exílio. O contexto deles é a dispersão (“no Ponto, na Galácia, na Capadócia, na Província da Ásia…” cf. 1:1). Por isso, eles são “estrangeiros e peregrinos” (2:11). Como o povo de Deus na Babilônia, eles devem “viver entre os pagãos de forma exemplar para que (…) [eles] observem as boas obras que vocês pratiquem e glorifiquem a Deus no dia da sua intervenção” (2:11–12). Por isso, mesmo os cristãos nas situações vulneráveis de escravidão (2:18–25) ou em seus relacionamentos conjugais (3:1–7) devem estar dispostos a sofrer por fazer o bem (3:8–22), porque eles vivem para Deus (cap. 4 e 5). Confirmando ainda mais que a Igreja, como povo do novo Êxodo, vive num novo Êxílio, Pedro encerra dizendo que a comunidade dele, “que está em Babilônia, também eleita, envia-lhes saudações” (5:13).

A revelação que João envia às sete igrejas (Apocalipse) tem a mesma compreensão. Tal como Daniel e seus amigos no Êxílio, eles são chamados para perseverarem mesmo diante das provações: “Seja fiel até a morte, e eu lhe darei a cora da vida” (Ap. 2:10). Todos eles, que farão parte da comunidade da Nova Jerusalém (cap. 21-22) no momento vivem em meio a “Grande Babilônia” (cap. 17-18), a sociedade que celebra seu próprio poder e riqueza (18:3 e 23) e se embriaga com o sangue das testemunhas de Jesus (17:6). Apocalipse é preciso em dizer que, no final da História, cada ser humano pertence a uma destas comunidades: ou faz parte do corpo da noiva do cordeiro, ou faz parte do corpo da grande prostituta. Até lá, vivemos “trigo e joio” misturados, vivemos em situação de Exílio, desejando ardentemente a Nova Jerusalém.

Com base nisto tudo, reafirmo: vivemos em tempos de Exílio. Mas isto não depende da Pandemia. É a nossa condição existencial em função do pecado. É a nossa condição escatológica como povo redimido. Em toda vez que celebramos a Ceia na História da Igreja, o fizemos na situação escatológica de Exílio.

Se você quiser se aprofundar mais nesta compreensão, recomendo o curso do ReFrame (os 10 episódios legendados em português de graça!), especialmente os episódios Estrangeiros e exilados” (#08) e “Embaixadores (#09)”. Se você ainda não assistiu, assista os vídeos do BibleProject para “Exílio” e, especialmente, “O caminho do Exílio”. Se for ver só um, veja este último. Coloco ele aqui embaixo:

Em segundo lugar, considere [2.2] a instituição da cerimonial pascoal no Êxodo, no Antigo Testamento. O momento era de festa? Não!

Era um momento de conflito (Ex. 7–14), de uma guerra entre o Deus verdadeiro e os falsos deuses do Egito. Eles já tinham vivido 9 das 10 pragas, e agora, na última praga (Ex. 11–12), o anjo da morte passaria (o “destruidor”, 12:23)! Seria uma situação horrorosa: “Haverá grande pranto em todo o Egito, como nunca houve antes nem jamais haverá” (11:6). Caso os hebreus não cumprissem bem o ritual, eles também morreriam! Este é um momento de pranto e de dor para muitos. É um momento de “praga de destruição” (11:13)! Você percebe as semelhanças?

Mas no meio disso tudo, Deus estipula o ritual. Todo o povo deve celebrar o ritual. Como? Moisés e Arão dão a instrução para todo o povo, e cada família celebra o ritual em sua própria casa. Sim, por vezes recebendo vizinhos que não tinham condições de comer um cordeiro sozinhos. Mas cabe aqui a pergunta: pelo rito ser celebrado em cada casa, ele é menos comunitário? Deixa de ser uma celebração do povo da Aliança? Ela não continua sendo a celebração da identidade de Israel, como povo?

Também é digno o destaque para o sacerdócio familiar aqui.

Cada família celebra o rito! Mesmo depois de estabelecido o tabernáculo e o templo, as famílias continuavam a se preparar para a Páscoa, como Jesus fez com seus discípulos no NT). Veja Êxodo 12:

25. Quando entrarem na terra que o Senhor prometeu lhes dar, celebrem essa cerimônia. 26. Quando os seus filhos lhes perguntarem: ‘O que significa esta cerimônia?’, 27. respondam-lhes: “É o sacrifício da Páscoa ao Senhor, que passou sobre as casas dos israelitas no Egito e poupou nossas casas quando matou os egípcios”. Então o povo curvou-se em adoração. Depois os israelitas se retiraram e fizeram conforme o Senhor tinha ordenado a Moisés e a Arão.

Assim, também é de se estranhar a omissão dos pastores reformados quanto a isto. O povo de Israel, que viria a ter a figura do Sumo-Sacerdote levita, celebrava a ceia pascoal no âmbito familiar. Nós, que temos em Jesus o Sumo-sacerdote, o cordeiro definitivo que tira o pecado do mundo, único mediador, não. A cruz não rasgou o véu de separação dos Santo dos Santos? Não defendemos o sacerdócio universal? Onde ele está?

Quando vemos irmãos dizendo que a Ceia não pode ser celebrada sem a presença de pastor; ou quando vemos acharem normal que até pouco tempo, igrejas de interior ficassem meses sem receber a ceia, esperando a visita de um pastor, não temos aqui um resquício de uma noção católico-romana de sacerdócio? Onde, na Bíblia, temos a celebração dos sacramentos limitada aos apóstolos ou aos presbíteros? Filipe, que era diácono, não batizou o Eunuco (At. 8, sem congregação presente)? A responsabilidade de ir e fazer discípulos (Mt. 28:18–20) não é para todos? Por que o batismo é só para alguns? Por que a Ceia seria?

Em respeito as normas de minha denominação, só celebraremos a ceia com a mediação pastoral, o que tratarei no último texto desta série (link aqui em breve). Mas, retomando aqui o ponto: no Antigo Testamento, o momento de instituição da ceia era de conflito e de pranto. Ainda sim, as famílias foram orientadas a celebra-la em casa. Quando está rolando uma praga de destruição (Ex. 11:11) lá fora, não parece coerente e saudável acompanhar Ex. 12? Nós, teólogos e igrejas da Aliança, não defendemos várias continuidades entre AT e NT?

E no Novo Testamento? [2.3] A instituição da Eucaristia no contexto do sofrimento iminente e grande agonia de Cristo, nas véspera da crucificação.

Com a morte se aproximando, Jesus estava em direção ápice de aflição. O Getsemani se dá poucas horas depois da celebração da Páscoa. Lá, Jesus diz: “A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal” (Mc. 14:32). No registro de Marcos, a ceia é instituída logo depois de Jesus anunciar que será traído:

18. Quando estavam comendo, reclinados à mesa, Jesus disse: “Digo-lhes que certamente um de vocês me trairá, alguém que está comendo comigo”. 19. Eles ficaram tristes e, um por um, lhe disseram: “Com certeza não sou eu! (…) 22. Enquanto comiam, Jesus tomou o pão, deu graças, partiu-o, e o deu aos discípulos, dizendo: “Tomem; isto é o meu corpo”. (…)

Já sentia a dor da traição e da cruz!

Jesus estava em direção a sentir “uma tristeza mortal”! Os discípulos ficaram tristes com o anúncio da traição. Há proclamação de juízo contra o traidor (v.21)! Já sentia a dor da traição e da cruz. É em meio a tristeza e juízo, ainda sim celebrou e instituiu a ceia.

Ainda pensando no NT, retomo mais uma vez a questão do sacerdócio universal. Atos 2:42ss fala que “Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao partir do pão e às orações. (…) Partiam o pão em suas casas (…)”. A Igreja de Jerusalém, com suas mais de 3000 pessoas, partia o pão de casa em casa. Será que os apóstolos iam de casa em casa? O sujeito “eles”, que rege o v.42 e os versículos seguintes, não se refere a toda igreja? Pense ainda no texto clássico de 1Co. 11. Paulo condena os excessos e abusos egoístas em que eles estavam errando, mas quando relembra-os de como praticar a Ceia, não diz “esperam até a minha chega, ou a chega de outro apóstolo ou mestre, como Apolo, daqui a três meses”. Paulo espera que os coríntios celebrem a ceia direito, mas não coloca um apóstolo entre as condições necessárias.

Assim, mesmo no Novo Testamento, vemos que a Eucaristia também é instituída em um momento de tristeza (e mesmo de juízo!) de Jesus e seus discípulos. Em Atos e nas cartas paulinas, temos a evidência que ela era celebrada nas casas, sem o apontamento da necessidade de um dos apóstolos.

Por último, e talvez o mais essencial, destaco que [2.4] tanto no AT como no NT, as cerimônias expressam confiança na vitória que ainda não era plena! Segue o fio:

O povo de Israel ainda não havia sido liberto do Egito, ainda sim celebrou a Páscoa. Jesus ainda não havia morrido - seu corpo não havia sido partido ou seu sangue derramado -, nem a ressurreição acontecido, mas houve instituição da Páscoa. Por quê? Porque estas são também celebrações que aguardam com esperança, mesmo em tempos de morte e agonia!

Termino com algumas contribuições de amigos, ao expor as ideias que viriam aqui. Zé Bruno comentou comigo: “A ceia é o paradoxo do lamento da sexta e da alegria só domingo!”. Sim! E neste entre-tempos, assim como é uma antecipação da presença física de Cristo, é uma antecipação da celebração, da chegada da Nova Jerusalém!

Neste sentido, a Eucaristia é um ato contra-cultural. Ela demonstra nossa fé. Uma forma de dizer para o mundo que nossa esperança está na na vitória de Cristo sobre a morte. Nossa esperança é maior que a pandemia! Meu amigo Tassyo pontuou: A ceia não é um luxo que temos nos tempos de conforto, ela é também um ato de fé e resistência aos momentos de dor, como uma declaração de confiança na vitória que virá. Deus prometeu liberdade. Deus prometeu vida. Deus firmou nova Aliança com seu sangue.

Por fim, talvez este seja o caráter primário. Esta eu devo ao João Abreu: essa convicção, esta esperança, é anterior e fundacional ao aspecto comunitário! Nós já podemos celebrar! Celebraremos com esperança, mesmo em meio ao lamento!

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André Pereira

tentando aprender e aproveitar o que significa ser amigo, discípulo e servo de Jesus.