Como ter um parto vaginal respeitoso (humanizado) em São Paulo em 2020

Anne Bitencourt
8 min readMay 9, 2020

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Alguns anos depois da minha gravidez do Caetano, depois de ter vivido na pele a odisseia de buscar um parto vaginal dito humanizado, ter conseguido parir o Caetano pélvico, tornei-me doula, voltei a atuar com acupuntura, dessa vez especializada em obstetrícia, volto aqui para contar pra vocês como parir em São Paulo em 2020.

Nesse meu caminho, após acompanhar mulheres e depois de conhecer muitas equipes que prestam assistência ao parto, descobri algumas coisas:

Foto Bia Takata
Parto vaginal natural, foto de Bia Takata
  • Ter algum dinheiro aumenta sim suas chances de conseguir um parto vaginal respeitoso, através da contratação de profissionais
  • Tem equipes que facilitam o pagamento, parcelando, negociando os honorários, auxiliando no procedimento de prévia de reembolso

E sem mais delongas, vou listar didaticamente as possibilidades:

Casa de parto: Atualmente temos duas em São Paulo, Casa Angela e Casa de Parto Sapopemba. A equipe de assistência é composta por parteiras (enfermeiras obstetras e obstetrizes), ou seja, não tem médico. Pode um acompanhante por mulher, uma fotógrafa e uma doula (que é bem-vinda). Não dá pra parir lá se houver:
- cesárea anterior
- aborto ou curetagem recente (acho que 1 ano e meio)
- gestação gemelar
- doenças como diabetes gestacional, hipertensão, sífilis, HIV positivo, alguns tipos de câncer ainda que já curados, cardiopatias, doenças pulmonares, renais, etc
- uso de medicamentos controlados como antidepressivos, moduladores de humor, etc
- bebê em apresentação pélvica (sentado)
- trabalho de parto prematuro, antes das 37 semanas
- gestação com mais de 41 semanas
- bolsa rota há mais de 16 horas sem entrar em trabalho de parto
- exame de Strepto B positivo
- morar fora da grande São Paulo
Sapopemba fica na zona leste, é conveniada do SUS e o pré-natal lá começa na 37ª semana, o hospital em caso de transferência de emergência é o Vila Alpina. A ideia dessa casa é que a gestante faça um acompanhamento total pelo SUS e chegue bem próximo ao parto. Oferecem também acompanhamento pós-parto que incluem cuidados com o bebê, amamentação, vacinas, exames, etc.
A Casa Angela fica na zona sul de SP, o parto pode ser feito pelo SUS se o pré-natal for feito na UBS, ou pode ser particular, em torno de R$ 6.500 que pode ser pago de forma muito facilitada. Precisa um acompanhamento por lá a partir das 28 semanas. As acomodações são as mesmas pelo SUS e particular, o que ao meu ver é ótimo. O hospital de transferência em caso de emergência é o Campo Limpo. O acompanhamento da mulher parida é até 12 meses do bebê.
As transferências nessas duas casas (menos de 2%), caso ocorram por emergência é para os hospitais de referência que citei anteriormente, de ambulância da Casa de Parto.

Parto domiciliar: É possível com gestação de baixo risco, se excluem mulheres que tem cesária recente (um ano e meio), hipertensão e diabetes gestacional descontrolada, sífilis, HIV positivo. Há diversos modelos de equipe, mas o mais comum é duas parteiras (enfermeiras obstetras e obstetrizes) ou médicas (obstetra e pediatra). A OMS preconiza que os partos domiciliares devem e podem ser assistidos por parteiras, uma vez que a atuação tanto médica quanto de parteira é exatamente a mesma, ou seja, médicas e parteiras fazem tecnicamente as mesmas coisas num parto domiciliar. Muitas mulheres costumam escolher ainda equipe médica e não de parteiras por conta de uma cultura de medicalização do parto, de insegurança e desempoderamento dos seus próprios corpos, ou seja, muitas mulheres não acham e não são tratadas como protagonistas do seus partos. Vejam bem, isso não é uma críticas às mulheres que escolhem uma equipe médica para parto domiciliar, afinal, o princípio do dito parto humanizado (eu prefiro respeitoso) é que se respeite as vontades da mulher. Poucas equipes médicas fazem esse trabalho pois o CRM não vê com bons olhos. Há modelos mistos, médica obstetra e parteira, também comuns em São Paulo.

Tanto a OMS quanto o Ministério da Saúde afirmam que o parto domiciliar é tão seguro quanto o parto hospitalar, de acordo com resultados obstétricos advindos de pesquisas internacionais e nacionais, porém essas constatações não são amplamente divulgadas.

Doulas são muito bem-vindas ao cenário do parto domiciliar, pois são fundamentais para o apoio a mulher e sua família e também para identificar a hora de chamar a equipe técnica.
Há valores de equipes para todos os bolsos, inclusive engana-se quem acha que um parto domiciliar é sempre a opção mais barata. Felizmente ainda temos muitos profissionais que avaliam seus honorários caso e caso e acompanham mulheres com diversas condições financeiras. Alguns convênios não reembolsam se for somente equipe de parteiras (a famosa reserva de mercado), outros convênios não reembolsam honorários de partos domiciliares. Dois pontos importantes, o parto domiciliar deve ser PLANEJADO, e não “ah, se estiver tudo bem vamos ficando” e também que apesar de haver médico no cenário domiciliar, isso não inclui anestesista. A anestesia necessita de aparato e só pode acontecer no hospital que tem a estrutura adequada. É básico, mas não custa reforçar essa informação.

Parto hospitalar: aqui pode parir quem quiser, do baixo risco ao alto risco (deve, nesse caso). As configurações são muitas então vou dividir por modelos de assistência e equipe.

Parto hospitalar com médico do convênio: não existe, é uma falácia. Não estou aqui pra julgar os médicos que recebem uma miséria do convênio pela consulta e pelo parto vaginal e que necessariamente precisam ficar horas disponíveis para o parto, tendo que desmarcar todas as consultas. O convênio paga mais pela cesária, sabiam? A maioria dos médicos do convênio que diz que faz parto vaginal (eles não fazem ok? quem faz o parto é a mulher) começa no final da gestação com o combo de amedrontamento dizendo que o bebê tá muito grande, muito pequeno, muito líquido, pouco líquido, bacia estreita, orientais não tem passagem, cordão enrolado no pescoço, etc etc e milhares e etc. Eu prefiro os sinceros que falam que só fazem cesária eletiva. Outra parcela de médicos do convênio que dizem que fazem parto vaginal cobram uma taxa de disponibilidade (que é ilegal mas todo mundo paga). Esses médicos fazem o combo indução/aceleramento + cadeia de intervenções pra agilizar e caso seu corpo não reaja bem a todas essas intervenções e você não dilate mil cm em 2 horas você escutará, tentamos de tudo, vamos ter que ir pra cesária, e rapidamente voltam pro consultório correndo. Inclusive esse tipo de profissional fala que as doulas são desnecessárias (SOCORRO). É possível sim um parto vaginal pelo convênio com pagamento de taxa de disponibilidade, garanto que com muitas intervenções, principalmente ocitocina de rotina, anestesia, episiotomia e fórceps.

Ou seja, preto no branco, parto pelo convênio, por via vaginal no hospital particular, respeitando o tempo do bebê e da mãe, sem milhares de intervenções não existe.

Parto hospitalar pelo SUS com profissionais do plantão: É muito possível um parto pelo SUS, na verdade é quase impossível você conseguir uma cesária desnecessária, ou seja, ela vai acontecer apenas se mãe e/ou bebê correrem risco de vida. A maioria dos trabalhos de parto são acompanhando pelas parteiras nesses hospitais, normalmente o obstetra só é chamado (quando é) na hora de nascer. Alguns hospitais são escola, ou seja, lá os estudantes testarão tudo que aprenderam, incluindo episiotomia, pontos, fórceps, etc. Em São Paulo temos o Amparo Maternal que é considerado uma referência em parto respeitoso, eu tenho ressalvas, acho que isso depende muito dos profissionais que estão de plantão no dia. Um ponto importante, analgesia de parto no SUS é difícil de acontecer, uma vez que o anestesista fica dedicado apenas para os casos de cesária. As doulas normalmente são bem vindas, alguns hospitais do SUS exigem cadastro prévio e ou treinamento no voluntariado.

Parto hospitalar particular com profissionais do plantão: depende do hospital que for escolhido e depende do profissional que estiver de plantão naquele dia. Na minha experiência hospitais da Rede D’Or (São Luiz Itaim e São Luiz Anália Franco) e SEPACO são locais mais possíveis de um parto respeitoso. Geralmente evolui muito bem, principalmente se a gestante é bem informada, possui um plano de parto, um acompanhante alinhado com as suas necessidades e expectativas e principalmente se essa mulher tiver uma doula. Deixo abaixo uma tabelinha pra vocês verem a porcentagem de cesárias em cada hospital de São Paulo, antes que vocês escolham aqueles que são conhecidos como os que tem a melhor hotelaria.

Parto hospitalar com equipe particular: aqui que separamos o joio do trigo. Tem as equipes humanizadas e os médicos tradicionais. E é por eles que vou começar. Os médicos tradicionais que sua prima pariu, sua amiga pariu, é o obstetra da família toda e te conhece desde bebê, mas nenhuma dessas mulheres teve doula porque não precisa porque na equipe do médico tem uma enfermeira que você não conheceu ainda (e nem vai), ou seja, socorro. Toda vez que um médico diz que não trabalha com doula ou que não precisa, só passa um filme na minha cabeça: ele não quer que eu abra os olhos dessa mulheres. Os bebês nascem por via vaginal sim, a violência obstétrica é velada, e normalmente dizemos que esses bebês são paridos pelos médicos. Também com esse tipo de equipe, a enfermeira é a que “justamente” está no plantão no centro obstétrico naquela hora, é aquela equipe que não vai investir em você, aí entra a violência velada e pra mim escancarada, mas como as mulheres sempre tem seus corpos violados acabamos não percebendo. Entram os repetitivos exames de toque, entram os repetitivos cardiotocos, entra a pressa e a falta de confiança que o corpo daquele mulher vai funcionar e vai trabalhar no tempo que as coisas precisam acontecer. Ou seja, ou seu corpo responde rápido ou em menos de 12 horas você vai ouvir que não dilatou suficiente e que o bebê está em sofrimento fetal. Qual mãe que não vai acreditar que seu bebê está sofrendo se está pagando por uma assistência particular? Nenhuma. Todas vão aceitar qualquer que seja o procedimento proposto pois afinal contrataram um profissional.
Pra mim esse é o modelo mais triste de assistência ao parto, mulheres que tem seus corpos violados veladamente, mulheres que são enganadas e ainda pagam muito por isso.

E aqui eu faço uma pausa pra respirar, uma pausa dolorida lembrando das mulheres que acompanhei, em que falei o que poderia acontecer, não acreditaram em mim e após o nasciment, ou no puerpério entenderam que foram enganadas, que tiverem seus partos roubados ou seus corpos manipulados sem necessidade.

Temos o modelo de assistência com equipe humanizada, que são os profissionais da saúde que trabalham de forma transdisciplinar, que dividem condutam, que apresentam a parteira antes do parto, aliás, que indicam algumas parteiras para que a mulher conheça e escolha, que fazem questão da doula, que indicam fisioterapia pélvica, que encaminham pra acupuntura, que aceitam o plano de parto, ou melhor, que pedem por ele, que respeitam as escolhas da mulher, que ajudam na papelada e orçamentos pro convênio reembolsar. Esse modelo de equipe não faz episiotomia, não faz nenhuma intervenção desnecessária, não desvalorizam o corpo da mulher, muito pelo contrário, investem nessa mulher, indicam rodas de gestantes, indicam filmes, livros, documentários. E aqui temos equipes para todos os bolsos, vai por mim. Esses profissionais sentam no chão, dormem enquanto o trabalho de parto acontece e estão ali pra acompanhar essa família nessa travessia.

Também tem as equipes hands-off, minha paixão, que é grupo mais seleto ainda. São tão raros quanto pandas, mas eles existem. Eu vou guardar esse assunto para um próximo post porque tem polêmica envolvida aqui. Sempre.

Por mim, queria lembrar que episiotomia, manobra de kristeller com a mão (ou com o rebozo), silenciar a mulher, negar livre movimentação, negar alimentação e hidratação, negar a presença do acompanhante é violência obstétrica e pode acontecer em alguns desses cenários. O que diminui as chances que você não passe por isso é muito informação, plano de parto, companhia do acompanhante informado e de doula experiente preparada.

Dúvidas? Me chama no inbox do IG que eu respondo.

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Anne Bitencourt
Anne Bitencourt

Written by Anne Bitencourt

Um pouco de obstetrícia um pouco de elocubrações, não nessa ordem, juntas ou separadas.