Contos midiáticos da magreza: como a mídia retratou as mulheres e contribuiu com a gordofobia

Essa é a primeira parte do meu Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo pela ECA-USP, uma análise de como a imprensa feminina representou os corpos femininos ao longo das décadas, por meio de capas da revista Capricho e manchetes em torno de Marília Mendonça. Você vai encontrar o link da continuação no final dessa postagem.

Anny Martins
11 min readJul 26, 2022

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O QUE NOS CONTARAM SOBRE O CORPO FEMININO IDEAL?

Em setembro de 2021, a influenciadora Jeska Grecco viralizou com uma publicação no Twitter que relembrava mulheres rejeitadas e ridicularizadas pela mídia e pela sociedade por serem consideradas gordas nas décadas de 1990 e 2000. Mulheres que, segundo a autora da postagem, “mereciam desculpas coletivas” pelo constrangimento público criado em torno de seus corpos. Entre elas, a estrela norte-americana Britney Spears, que passou de ícone da sensualidade no início dos anos 2000 para se tornar duramente criticada pelo seu peso em 2007, especialmente depois de sua performance no palco da premiação MTV Video Music Awards (VMA).​

Eis a fragilidade de estar, como indivíduo, no centro das atenções midiáticas: basta uma mudança de cenário — ou de corpo, que no caso de Britney, passou por um puerpério duplo após duas gestações consecutivas — para que um exemplo positivo se transforme em um modelo a ser condenado. E enquanto mulher, o lugar para onde se viram as atenções identitárias se concentra em sua aparência física. Uma condição mutável e superficial que parece resumir seu valor, conforme manda o mito da beleza proposto pela pensadora feminista Naomi Wolf (1992).

“Na histórica distinção entre os sexos e entre corpo e alma, as mulheres tenderam a ser consideradas mais próximas do universo orgânico, corporal, do que os homens, como se as atividades intelectuais não lhes fossem tão apropriadas quanto aquelas relacionadas à reprodução da espécie”

— Denise Bernuzzi de Sant’Anna em História da beleza no Brasil (2014)

Nessa publicação da revista britânica OK!, recuperada em outro tweet feito em 2021, vemos uma ferramenta clássica do culto à beleza (e à magreza): a utilização de imagens de antes e depois, no qual o depois mostra a silhueta que passou por um processo de “embelezamento”. Mais precisamente, o emagrecimento. “Que diferença faz um ano…”, anunciava a manchete, expondo por meio das fotografias o que se esconde depois das reticências: que um ano de dietas controladas e exercícios físicos rigorosos foi capaz de trazer de volta a conhecida e aclamada “beleza” de Britney Spears. De um lado, sua apresentação considerada desastrosa no VMA em 2007. Do outro, sua aparição no mesmo evento em 2008.

A escolha das imagens foi estratégica. O antes, que representa o feio, mostra um frame espontâneo da cantora durante a fatídica performance, em que ela utilizava uma calcinha e um sutiã cenográficos. Já o depois, que representa o belo, é uma foto posada, em que Britney olha para a câmera enquanto caminha no palco, com uma iluminação mais forte, sem sombras, e um vestido como figurino, deixando o corpo menos visível. Corpo este que, em uma análise fria, não parece tão diferente entre uma imagem e outra. Mas o imaginário criado pela contraposição entre as duas figuras cria uma sensação de transformação positiva, o que é corroborado pelas informações contidas no texto. É o que chamamos de um enunciado subentendido, quando o conteúdo não é acessível de imediato, e nem sempre o deseja ser, já que isso poderia afetar seus objetivos ocultos. Vou falar mais sobre esses subentendidos mais adiante.

Em tempos de alta disseminação do movimento body positive — positividade corporal, em tradução livre — e do ativismo gordo, olhar para um passado tão próximo sob uma perspectiva mais crítica causa espanto. Na publicação de Grecco no Twitter, diversas respostas demonstravam esse sentimento de choque de realidade e traziam depoimentos de mulheres que, na época, enxergavam a beleza ideal da mesma maneira e odiavam o próprio corpo com base nesses padrões estéticos, especialmente na adolescência. Relatos de distúrbios de imagem e transtornos alimentares também compõem o escopo dos comentários. Mas enquanto os discursos pessoais se assemelham, as opiniões sobre a atual consciência coletiva acerca da gordofobia e do culto à magreza se dividem. Afinal, o que mudou? As pressões diminuíram? Os modelos de beleza se expandiram? A mídia abraçou o body positive e as demandas das mulheres gordas?​

De acordo com as pesquisas de Carolina Duó Souza (2019), o movimento body positive tem origem em 1996, quando a educadora Connie Sobczak e a psicoterapeuta Elizabeth Scott, ambas norte-americanas, fundaram um instituto voltado para ajudar jovens mulheres com problemas de autoimagem. Antes ainda, raízes mais profundas levam ao fat liberation movement — movimento da liberação gorda — , que teve início durante a segunda onda do feminismo nos anos 1960 e ganhou maior relevância a partir da terceira onda, nos anos 1990, quando problemas relacionados às políticas do corpo receberam maior protagonismo.​

Essa história se costura também mais recentemente com o body image movement — imagem corporal positiva, em tradução livre — , que repercutiu depois que o documentário Embrace foi lançado pela australiana Taryn Brumfitt em 2016. Conforme mostram os estudos de Agnes Arruda (2020), jornalista, pesquisadora e ativista da causa gorda, a autora do movimento “cogitou passar por cirurgias plásticas após o nascimento de seu terceiro filho, por ter ganhado peso e por seu corpo ter se modificado ao longo do processo. No entanto, ao se dar conta da violência física e simbólica que tal decisão representava, passou a militar pela aceitação corporal”.​

Não que o ativismo gordo e o movimento body positive sejam equivalentes. Nas palavras de Malu Jimenez (2020), fundadora do Grupo de Estudos Transdisciplinares do Corpo Gordo no Brasil, por mais que ambos promovam um “autoconhecimento de seu próprio corpo como valorização de sua história” — e nisso se incluem outros corpos preteridos pelos padrões de beleza, como o de pessoas não-brancas e com deficiências físicas — , o ativismo gordo vai além do discurso de autoaceitação e propõe o empoderamento por meio da “despatologização e acessibilidade do corpo gordo”. Principalmente dos corpos gordos femininos.

Como podemos ver, essas discussões não são de hoje. Contudo, as repercussões dessas temáticas na mídia jornalística brasileira são recentes, em particular quando pensamos em um olhar mais aguçado da imprensa. Termos relacionados como gordofobia, referente à discriminação e à consequente exclusão social de pessoas gordas, e o body shaming, o ato de ridicularizar ou criticar alguém por sua aparência corporal, ganharam importância em 2017, segundo Arruda. Na ocasião, piadas do humorista Danilo Gentili foram rebatidas pela youtuber Alexandra Gurgel, momento em que o primeiro termo teve um pico de buscas, segundo a ferramenta Google Trends.

Ninguém escapa

Em novembro de 2021, houve um novo aumento repentino de buscas pela palavra, que se deu após a morte da cantora goiana Marília Mendonça. Aos 26 anos, ela deixou um legado “essencial” para o gênero musical sertanejo, nas palavras do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), órgão responsável pelos direitos autorais da música brasileira.

De acordo com a instituição, foram 331 composições registradas em seu nome, dentre as quais 98 não foram lançadas por ela nem por outros artistas. Em 2017, quando tinha apenas 22 anos, já havia se tornado a artista mais assistida do Brasil no YouTube, acumulando mais de 3 bilhões de visualizações somente em seu canal oficial. O feito viria a se repetir de novo e de novo em outras plataformas. Após sua morte, a “Rainha da Sofrência”, como é conhecida pelo público, foi homenageada na sessão in memoriam, dedicada aos artistas que se foram, da premiação musical Grammy Awards 2022. Esse legado patrimonial e cultural não foi o bastante para blindá-la das pressões estéticas.

Enquanto viva, durante sua breve carreira solo iniciada em 2015, era constantemente questionada sobre como era não estar dentro dos padrões de magreza e todas as suas mudanças corporais foram registradas pelas mídias. Ali, no centro das atenções, onde não há espaço para individualidades. Em 2016, a revista feminina Marie Claire ressaltou, durante uma entrevista, que ela não era “o tipo de pessoa que segue tendências e/ou imposições de beleza ou moda”, questionou se ela “sofria preconceito por não ser magra” e se “o assédio dos homens aumentou”, no mesmo ano em que emplacava os hits “Infiel” e “Eu Sei de Cor” e se consagrava como fenômeno da música brasileira. Em 2017, realizou o procedimento do “balão gástrico” e teve seus ganhos e perdas de peso vigiados por seguidores e pela mídia. Quem antes a criticava por ser gorda, agora indagava porque estava emagrecendo se antes se declarava feliz do jeito que era.

Em março de 2018, foi alvo de uma piada do apresentador Fausto Silva, no popular programa dominical da Rede Globo Domingão do Faustão. Na ocasião, ele se dirigiu a Marília com as seguintes frases, em referência ao programa de filmes exibido pela emissora às segundas: “A vingança dos gordinhos hoje aqui. Hoje nós não vamos fazer Domingão, nós vamos fazer tela cheia”. Ela então retrucou com bom humor: “Eu vim aqui perguntar um negócio pra você. Eu estava conversando com o pessoal lá fora e quero saber que dia você vai me convidar pra comer pizza lá na sua casa. Você vive me chamando de gordinha, mas me chamar pra comer você não quer”. O acontecimento causou diversas reações nas redes sociais, em que internautas comentavam a gratuidade e a recorrência de comentário desse teor feitos por Faustão.

Já em 2021, em um desabafo em sua conta pessoal do Twitter, relatou já ter sido chamada de “gorda, feia, mal vestida e mal cuidada” ao longo de sua trajetória profissional, e que agora que estava em processo de emagrecimento, as pessoas continuavam a descredibilizá-la pelo seu corpo, insinuando que ela havia realizado algum procedimento cirúrgico para emagrecer. Ou seja, mesmo o fato de estar se encaixando nos padrões identitários de um corpo desejável gerava ataques virtuais, assim como acontecia em 2017. Não podia ser gorda nem emagrecer.

Em sua morte, não foi diferente. Sua aparência foi destaque em tributos, obituários, retrospectivas e homenagens. Em uma coluna da Folha de S. Paulo no dia seguinte à sua morte, o historiador Gustavo Alonso pontuou que seu visual “não era dos mais atraentes para o mercado da música sertaneja”, que “era gordinha e brigava com a balança” e que “durante a quarentena, vinha fazendo um regime radical que tinha surpreendido a muitos”, tornando-se “bela para o mercado”. Em uma publicação com caracteres limitados para sobressaltar os pontos altos da carreira da cantora, a escolha desse assunto não foi arbitrária. É esse um dos pontos trazidos pela acadêmica Maria do Rosário Gregolin (2008) acerca da arqueologia do saber de Foucault em torno do discurso: sua produção é “controlada, selecionada, organizada e redistribuída por procedimentos que visam a determinar aquilo que pode ser dito em um certo momento histórico”. Não havia aleatoriedade nas palavras do colunista da Folha de S. Paulo.

Ele não foi o único a selecionar e propagar esse discurso na ocasião da morte de Marília. Na televisão aberta, o apresentador Luciano Huck, da Rede Globo, destacou o quão “magrinha” ela estava na última vez que a viu em seu programa durante uma homenagem. Seu emagrecimento também foi comentado por Ana Maria Braga, no programa matinal Mais Você, da mesma emissora, imprimindo um juízo de valor ao afirmar que essa mudança estética estaria “criando um caminho para ela” e que isso “fazia sentido com esse vozeirão”. Todos foram duramente criticados por suas declarações nas redes sociais, abrindo também hipóteses sobre mudanças da receptividade da audiência em relação ao conteúdo dos discursos.

Considerando esses espectadores como consumidores dos produtos midiáticos, essa possível não-aceitação de falas gordofóbicas e machistas poderia também participar da ressignificação de sentidos. Com a problematização publicizada nas redes sociais e nos veículos de comunicação, não é raro se deparar com um mea culpa por parte de quem propagou esses discursos; foi o caso de Luciano Huck, que utilizou o programa seguinte para se desculpar pelo comentário sobre Marília. Seja por puro interesse no lucro contínuo, como uma maneira de reter o público, ou por uma reflexão genuína de quem assume a culpa, é notável que as manifestações de repúdio surtem efeito e ganham voz em espaços dominantes.

Mas de onde vem essa mentalidade que repudia a estigmatização de corpos femininos? Por quais meios midiáticos se disseminou, para além de publicações feministas? Quando penso na construção de novos (e velhos) significados sobre e para as mulheres, meu olhar não se volta para a mídia hegemônica e generalista, que é acima de tudo uma mídia masculina e informativa, conforme demonstram os estudos de Dulcília Buitoni (1981).

O que me toca é, novamente, a informação que impulsionou e iniciou este trabalho. Aquelas cujas capas me seduziam enquanto menina e desenharam minha percepção de mundo por tanto tempo. Que me fizeram acreditar que eu não tinha a silhueta correta e precisava de uns ajustes. Que vira e mexe ocupam um espaço sufocante na minha cabeça. Mas também que me introduziram a pautas mais progressistas, em uma eterna contradição. Os espaços específicos e interpretativos onde se moldaram e se moldam as imagens dominantes sobre o corpo feminino: as revistas femininas e, mais recentemente, os portais de notícia derivados, que ganharam vida própria ao longo da década de 2010.

“No mundo ocidental, televisão, publicidade e revistas femininas se aliam na construção de imagens dominantes, num contexto de globalização crescente. As revistas femininas sempre foram poderosos elementos na construção da identidade da mulher. No reino da cultura da imagem, a aparência ajuda a produzir o que somos — ou pelo menos o modo como somos percebidos”

— Dulcília Buitoni em Mulher de papel: a representação da mulher na imprensa feminina brasileira (1981)

A socióloga Natalie Jovanovski (2017) descreve o termo diet culture, equivalente ao culto à magreza no Brasil, como uma “vigilância de gênero”, iniciada e reproduzida pelo patriarcado para afastar as mulheres de seus corpos e seus apetites, em um processo de objetificação. O conceito vai ao encontro da definição do mito da beleza de Naomi Wolf, em que esses corpos são padronizados e controlados, em um processo que determina a aparência e, sobretudo, o comportamento social das mulheres.​

As vigilâncias de gênero fabricadas pelo mito da beleza, como o culto à magreza, são asseguradas por instituições dominantes. Constroem-se narrativas únicas, identidades unidimensionais; esgotam-se subjetividades. São as “lendas necessárias” que uma sociedade conta para manter seus alicerces — aqui, o patriarcado e o neoliberalismo. Sob a ótica de Judith Butler (1993), as identidades são construídas discursivamente, em “um modelo performativo […] no qual nossas ações, repetidas incessantemente, constituem a identidade como se fosse algo natural; a essência é, assim, um efeito de performances repetidas que reatualizam discursos histórica e culturalmente específicos”. É aí que a imprensa entra.

Para entender como se deu o processo de estruturação desse projeto ocidental e quais eram os discursos presentes nas revistas femininas brasileiras, voltemos no tempo em Origens da Gordofobia.

O conteúdo completo está disponível também no site do trabalho.

Você pode encontrar as referências teóricas e as fontes das imagens usadas nesse trabalho aqui.

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