Um argumento moderno pela fé

Como a fé pode ser um caminho na luta contra o desespero existencial na vida moderna e a importância de combatê-lo como sociedade.

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
8 min readApr 7, 2018

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Cada um de nós atravessa a mesma jornada durante nossas vidas. Uma jornada que em muitos momentos parece ser pouco recompensadora, cansativa e sem sentido. Tal jornada — a eterna busca por si próprio — foi assunto de inúmeros filósofos e teólogos ao longo dos séculos. De forma direta ou indireta, individual ou coletiva, concreta ou abstrata, a filosofia e a religião nada mais são do que uma tentativa de responder a grande questão que ecoa por toda a linha temporal: quem somos nós? Mas a filosofia e a religião não são respostas completamente objetivas — se fossem, muitos dos problemas do mundo atual já teriam sido resolvidos. É justamente pela incapacidade que estes dois campos têm de produzir uma resposta de forma objetiva que vagamos pelo mundo sozinhos, em busca da solução final, com a esperança de que ela estará escondida em algum lugar do espaço. Do espaço e não do tempo. A percepção de que a resposta está em algum lugar e não em algum momento é uma convicção comum na sociedade, mais ainda em tempos modernos. Desde a promessa da Terra Santa por parte dos judeus até o conceito do Lebensraum (espaço vital) concebido pelos alemães no início do século XX, a humanidade tem em mente de que o paraíso é um conceito completamente espacial e que uma vez conquistado tal local, estaremos completos.

É visível como esta definição extrapolou para o capitalismo e o consumismo nos dias atuais. O American way of life (estilo de vida americano), tão almejado pelo Novo Mundo, é uma tentativa de satisfazer a noção errônea de gratificação espacial. Uma casa e um carro são sinônimos de uma boa qualidade de vida. O consumismo nos bombardeia com propagandas de como estaremos felizes ao adquirirmos tal produto X. Redes sociais tornaram-se uma tentativa de mostrar às outras pessoas como somos felizes no instante atual, como se nossas vidas pudessem ser resumidas em uma fotografia — estática, espacial. O importante deixou de ser quem somos e passou a ser o que temos e onde estamos. Tal vício da civilização ocidental é o que alimenta esta máquina de consumo sem propósito — ela vive apenas para manter-se viva, sem objetivo, sem destino, como uma máquina de movimento perpétuo.

Segundo as leis da termodinâmica, máquinas de movimento perpétuo são hipotéticas, impossíveis de existir na vida real. Máquinas que extraem energia de recursos finitos não irão operar indefinidamente, visto que os recursos são escassos. Por mais que tentemos explorar novos planetas, por mais que busquemos novas fontes de energias renováveis, o destino da atual civilização ocidental é inevitável. O mecanismo do consumo chegará ao fim pela própria definição de ser insustentável.

Foto tirada pela sonda Cassini no dia 19 de julho de 2013, mostrando o planeta Saturno, seus anéis, a Terra, a Lua e algumas estrelas vizinhas. No momento que esta foto foi feita, a Cassini estava a 1,44 bilhões de quilômetros da Terra, e a 1,21 milhões de quilômetros de Saturno.

A origem do desespero

Então, se a resposta para quem somos nós não está no espaço, onde ou quando ela estará? Definimos um objeto observando todas as suas propriedades. Um triângulo é a ligação de três pontos não-colineares no espaço e nada mais. Ele é imutável, e por ser imutável, não esperamos por novas informações deste objeto que podem mudar a sua definição e assim, o definimos como um triângulo. O mesmo não acontece com as pessoas. Quem somos hoje não implica que continuaremos iguais amanhã, da mesma forma que não somos quem éramos ontem. Novas informações, novos parâmetros chegam a cada instante e nós nos moldamos e nos ajustamos de acordo com a forma que interagimos com o ambiente ao nosso redor. Portanto, uma fotografia de nós mesmos não nos define como um ser, apenas capta quem nós éramos no instante da fotografia — ou seja, capta as nossas preferências.

Uma pessoa pode ter infinitas preferências ao longo de sua vida e muitas delas podem ser contraditórias. Um jovem socialista pode tornar-se um adulto libertário. Uma pessoa rica pode perder tudo e viver na miséria até reconquistar sua riqueza. Estamos constantemente mudando, alterando nossa aparência, nacionalidade, ideologia, profissão e bens possuídos. Portanto, não são as preferências (nosso estado em um dado instante do tempo) que nos define. Nossa moradia não nos define. Nossa profissão não nos define. Nossa conta bancária não nos define. Nossa aparência não nos define. Nossa educação não nos define. Ora, então o que é capaz de definir quem somos? Nossa essência.

A essência de algo é constituída pelas propriedades imutáveis da mesma. Mas como descobrimos nossa essência? Não podemos. É impossível dizer com certeza de que algo que nos define agora será verdade amanhã. Esta resposta só será possível ser concebida quando não haverá mais o amanhã, no momento de nossa morte, mas mesmo assim não podemos ter certeza de que isso acontecerá. Ninguém passou por essa experiência e voltou para nos dizer se a resposta lhe foi apresentada. Portanto, o entendimento de que somente a morte poderá nos trazer a resposta para a eterna pergunta é perigosa. Uma pessoa angustiada por não conseguir definir a si mesma, incapaz de viver dessa forma, poderá chegar à conclusão lógica de que é melhor esperar a morte chegar a fim de acabar com este desespero.

É neste contexto que Kierkegaard define o desespero, na incapacidade do homem encontrar e definir a si próprio. Kierkegaard em Doença até a Morte fala sobre um homem que, na tentativa de “ser César ou nada” se desespera. Ele se desespera, não somente por não ter se tornado César, mas porque já não suporta ser ele próprio e não consegue libertar-se do seu eu. Em sua mente, ele teria conseguido libertar-se de seu eu ao tornar-se César, mas isso requereria a destruição do seu próprio eu e isto só é possível através da morte.

“Se esperarmos o momento em que tudo, absolutamente tudo, esteja pronto, nunca começaremos nada.” — Turgenev

Kierkegaard também fala sobre duas diferentes origens do desespero — no finito e no infinito. O desespero no finito provém da incapacidade do homem de se libertar da rígida máquina da rotina diária a fim de encontrar a si próprio. Tal homem almeja passar por tantas diferentes experiências mas sua vida, finita, o impede e portanto, se desespera. O desespero no infinito contudo, tem origem nas infinitas possibilidades que um homem tem de buscar a si próprio. Porém, o número infinito de possibilidades o soterra na incapacidade de decidir, visto que seu tempo de vida é limitado e uma decisão errada pode significar um enorme tempo perdido. É em meio à esta indecisão, no medo de arrepender-se que o homem se desespera — e chega à conclusão de que é melhor não decidir nada do que arriscar-se em qualquer decisão. No início de Ou isso ou aquilo, ele escreve “Se você se decidir por um, irá se arrepender. Se não decidir nada, também irá se arrepender”.

O papel da fé contra o desespero

Qual é então a solução proposta por Kierkegaard? Como podemos evitar o desespero? Mais uma vez a resposta é: não podemos. Mas podemos aprender a aceitá-lo e enfim nos curarmos, através de um “salto de fé”. Kierkegaard afirma que um salto de fé em Deus, um salto de fé de que conseguiremos enfim nos encontrar no fim das nossas vidas, é capaz de nos fazer entender que qualquer decisão é melhor do que nenhuma decisão. A ação, sem qualquer expectativa de recompensa, baseando-se completamente na fé, é o único caminho a fim de evitar sucumbir à escuridão do desespero. A vida se resume a ação, movimento e dinamismo — conceitos intrinsecamente ligados ao tempo. Não pode haver vida sem luz. E não pode haver luz sem o tempo. A inação leva à um espaço sem tempo, estático, sem vida, tomado pela escuridão.

A importância da fé na sociedade moderna

Este é o objetivo do Mal. O fascismo, o comunismo e a escravidão têm como objetivo impedir as pessoas de terem a oportunidade da ação. Este é o caminho que o consumismo têm nos levado. Podemos pensar que hoje somos livres para fazer o que quisermos, mas quantos de nós são escravos das redes sociais? Quantos de nós se preocupam de forma excessiva com nossos bens materiais? Quantos de nós são iludidos por falsas promessas de felicidade que objetos sem valor alegam em propagandas? Não serei hipócrita, me incluo neste grupo. O consumismo têm, cada vez mais, advogado pela disseminação do conceito de “carpe diem” na forma de “YOLO” (You Only Live Once) entre os jovens. “Viver a vida como se não houvesse amanhã” pode parecer viver a vida de forma livre, mas no longo prazo, tal comportamento é extremamente perigoso para a sustentação da civilização — algo similar à máquina de movimento perpétuo citado anteriormente. Não à toa que a geração atual possui um alto nível de ansiedade e depressão. A dissonância cognitiva entre o que nos é prometido e o que nós experimentamos no mundo das redes sociais é gigantesca.

E o que alimenta este sistema? Assim como o fascismo escraviza pessoas, nós mesmos somos escravizados pelas grandes corporações. Os escândalos de invasão de privacidade que têm emergido nos últimos meses ilustra esta conclusão. Facebook e Google, tempos atrás tratados como os líderes tecnológicos do século XXI, sabem mais de nossas vidas do que nossos familiares. Para quê? Para nos bombardear de anúncios de coisas que não queremos para comprar coisas que não precisamos. De fato, poder comunicar-se com qualquer pessoa do mundo a qualquer instante, acessar uma quantidade infinita de informações e aprender sobre qualquer coisa em qualquer lugar é algo que um cidadão do Império Romano caracterizaria como divino. Progresso de fato foi feito. Mas a que custo? Devemos ceder nossa liberdade em troca de habilidades extraordinárias? Preferimos ser animais em um zoológico, sem nos preocuparmos com a escassez de comida e água do que ser livres? Acredito que é possível conciliar progresso tecnológico e liberdade, mas é preciso ter esse objetivo em mente no processo de inovação.

“Nada pode trazer paz além do triunfo dos princípios” — Emerson

Não acho que nossos antepassados lutaram e sacrificaram-se em prol da liberdade apenas para verem seus descendentes jogarem esta preciosa recompensa fora. Este é, portanto, o extremo sacrifício. Existiram pessoas ao longo do tempo que, ao depararem-se com o desespero, apesar do medo de tomarem alguma decisão errada, tomaram um salto na fé, tomaram alguma ação, para que eu e você pudéssemos ter a oportunidade de também agir. Acredito que, como descendentes destas pessoas, temos uma dívida e uma responsabilidade moral para com estes heróis de evitar que o Mal triunfe. Seja com pequenas ou grandes ações, o Mal deve ser combatido. Não importa se estamos aqui à toa ou não.

O fato é que estamos aqui, em uma pequena esfera azul flutuando em um infinito oceano cósmico, não há sinais de que sairemos daqui em breve e portanto, a preservação de nosso planeta deve ser uma de nossas prioridades. É aqui que temos locais inacreditáveis como os fiordes noruegueses ou as Cataratas do Iguaçú. É aqui que vivem animais tão extraordinários e complexos, resultado de bilhões de anos de evolução. É aqui que construímos e concebemos obras tão belas e magníficas, desde as Pirâmides de Gizé até a ópera de Don Giovanni. Nada disso deve ter sido criado em vão. É por isso que o Bem deve triunfar. Nas palavras de Ralph Waldo Emerson, na última frase de seu ensaio Autossuficiência: “Nada pode trazer paz além do triunfo dos princípios”.

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