Uma análise de “Autossuficiência”, por Emerson

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
Published in
13 min readMay 30, 2018

No post anterior, traduzi o ensaio Autossuficiência (Self-Reliance no idioma original) escrito pelo filósofo americano Ralph Waldo Emerson em 1841. Este texto é uma das maiores obras da filosofia transcendental e na minha opinião, a melhor coisa escrita por Emerson. Autossuficiência consegue transmitir fielmente as idéias por trás dos escritos do filósofo, mas acredito que apenas a tradução não seja suficiente. Uma análise mais minuciosa da obra pode lançar luz à novas perspectivas sobre o próprio texto, que acredito que possui um valor imensurável para o estado atual da sociedade ocidental.

Ralph Waldo Emerson, 1870.

O tema recorrente do ensaio é a importância que devemos dar às nossas vozes internas, às nossas intuições e idéias, muitas vezes esquecidas em meio ao barulho da sociedade do século XXI. Pessoas, celulares, televisões, redes sociais, existem muitas coisas ao nosso redor que acabam por nos distrair e nos inibem de escutar a coisa mais preciosa que temos nesse mundo: nossa própria mente. Nossas mentes possuem um potencial incrível, resultado de milhões de anos de evolução e no entanto, Emerson acredita que as pessoas estão deixando de acreditar em si mesmas, deixando de explorar seu potencial para acreditar em instituições, em outras pessoas ou em idéias já validadas pela sociedade. Já no segundo parágrafo ele escreve:

Existe um momento na educação de toda pessoa no qual ela chega à conclusão de que a inveja é ignorância; que a imitação é suicídio; em que ela deve aceitar a si mesmo pelo que ela é, tanto no melhor como no pior; e que, apesar do universo ser cheio de bondade, nenhum grão de trigo chegará a suas mãos que não seja fruto do trabalho dedicado ao pedaço de terra que lhe foi dado para cultivar. O poder que reside nela é original por natureza e ninguém além dela mesma, sabe o que poderá fazer com ele — nem ela sabe, até experimentar. Não é por acaso que um certo rosto, uma certa personalidade ou um certo acontecimento lhe causam forte impressão, enquanto outros o deixam indiferente.

E mais adiante:

O ser humano é tímido e apologético; ele não anda mais ereto; ele não ousa dizer “Eu penso”, “Eu sou”, mas não hesita em citar algum santo ou sábio.

Aqui ele descreve este poder imensurável que reside em cada um de nós, que nos torna únicos e portanto, qualquer tipo de imitação é uma forma de suicídio, uma forma de suprimir esta singularidade que existe em nossas mentes. As grandes pessoas da história não imitaram seus ídolos, mas seguiram suas intuições e seus caminhos individuais. Da mesma forma, qualquer tipo de inveja é ignorância — ignorância própria, pela falta do exercício do auto-conhecimento. Aqui, as idéias de Emerson passam a lembrar a definição do desespero de Kierkegaard que escrevi no artigo Um argumento moderno pela fé. Kierkegaard em Doença até a Morte fala sobre um homem que, na tentativa de “ser César ou nada” se desespera. Ele se desespera, não somente por não ter se tornado César, mas porque já não suporta ser ele próprio e não consegue libertar-se do seu eu. Em sua mente, ele teria conseguido libertar-se de seu eu ao tornar-se César, mas isso requereria a destruição do seu próprio eu e isto só é possível através da morte.

A imitação, a tentativa de tornar-se César, acaba por ser o suicídio do eu deste homem. César não foi o resultado da tentativa de César em se tornar César. O general romano foi produto do seu tempo, do seu espaço, das suas circunstâncias e nada além disso. Qualquer tentativa de alguém em replicar a sua história resultará em fracasso — o contexto é completamente diferente. Assim, Emerson afirma que não devemos reclamar das circunstâncias, mas aceitá-las e trabalhar com elas. Ele escreve:

Confie em si mesmo: cada coração vibra nessa corda de ferro. Aceite o lugar que a divina providência encontrou para ti, aceite a sociedade de seus contemporâneos, o encadeamento dos eventos. Grandes pessoas sempre procederam assim e confiaram como crianças na genialidade da sua época, e assim, revelaram sua percepção de que o que lhes era inteiramente digno de confiança residia em seu coração, manifestando-se pelas suas mãos e predominando em todo o seu ser.

Mas tal aceitação das circunstâncias não deverá ser confundida com conformismo. Pelo contrário, Emerson afirma que o inconformismo é uma característica intrínseca do ser humano, mas não da sociedade. O mundo espera que seus cidadãos se conformem com tudo que lhes é apresentado — e qualquer tentativa de mudança será enfrentado com desprezo por parte da sociedade e até mesmo de familiares. Mas o inconformismo é a única maneira de evitar a opressão da força do seu caráter. Existem costumes e crenças que já passaram da data de validade e que impedem muitas pessoas de destrancarem seu potencial.

Aquele que deseja ser um ser humano deverá ser um inconformista.

Conformar-se com costumes que tornaram-se obsoletos para você é o que dispersa a sua força. Isto faz você perder seu tempo e ofusca a impressão do seu caráter.

Pelo inconformismo o mundo te chicoteia com seu descontentamento. E portanto uma pessoa deve saber como apreciar uma cara amarga.

Emerson acredita que este inconformismo deve ser direcionado primeiramente às instituições e insígnias que a sociedade considera como “certo”. Desde costumes antiquados à leis desnecessárias, há inúmeras “regras” que não têm nenhum propósito além de oprimir o caráter do indivíduo. Ações têm sido tomadas quanto a isso é claro, o movimento feminista recente é uma grande prova disso, mas não devemos parar por aí. Quantas vezes aceitamos regras, ordens e idéias de instituições, governos, universidades, grandes empresas, pessoas com infinitos prêmios apenas por possuírem um nome ou um distintivo de autoridade? E quantas vezes estas autoridades nos decepcionaram? Aqui, Emerson passa a proferir um discurso semelhante ao de Nassim Taleb, ao afirmar que existe uma classe de pessoas chamadas Intelectuais Porém Idiotas, grandes acadêmicos e políticos, com belos históricos e prêmios, que tentam ditar como cidadãos normais devem se vestir, comer e viver, embora eles mesmos não sigam suas recomendações, ou não assumem as consequências de suas ações quando estas resultam em catástrofe. A crise financeira da década passada por exemplo, foi causada por esta classe de pessoas. Emerson diz que a verdade não se restringe apenas às instituições e diplomas, mas que qualquer indivíduo possui a capacidade de proferir a verdade.

Eu me envergonho quando penso na facilidade com que nos rendemos à distintivos, insígnias, nomes, à importância das sociedades e das instituições mortas. Qualquer indivíduo decente e que sabe se expressar bem me afeta e me comove muito mais do que o que é certo. Eu deveria me levantar de forma íntegra e falar a verdade crua em qualquer circunstância. Se a maldade e a vaidade se vestem de filantropia, deveríamos aceitá-las? Se um devoto fanático abraçar a causa generosa do Abolicionismo e vier até mim com suas últimas notícias de Barbados, porque não lhe diria: “Ame o teu filho, ame o teu lenhador; seja modesto e amável; e não disfarce tua ambição dura e cruel com essa ternura incrível por escravos que vivem a milhares de quilômetros de distância. O teu amor pelo que está longe não passa pelo desprezo pelo que está perto.” Tal reação seria dura e deselegante, mas a verdade é mais bela do que o falso amor.

(…)

E assim a confiança na Propriedade, incluindo a confiança nos governos que a protege, é a necessidade da autossuficiência. As pessoas têm desviado o olhar delas mesmas e das coisas por tanto tempo, que acabaram por estimar as instituições religiosas, eruditas e civis como guardas da propriedade, e desaprovam que as ataquem, porque sentem que são ataques à propriedade.

A hipocrisia do Intelectual Porém Idiota é notável para Emerson. No trecho acima ele os acusa do falso ativismo que praticam com coisas que estão longe de seu alcance e do completo desprezo com os problemas locais e logo, problemas que poderiam ser resolvidos por eles. Da mesma forma ele se espanta com esta aura protetora que rege estas pessoas que são responsáveis por boa parte dos problemas de nosso mundo. Emerson anseia pelo momento do qual os indivíduos passem a ignorar estes falsos profetas e passem a seguir a força de seu caráter. Ele reconhece que tal ação é difícil, visto que somos humanos e podemos cometer um erro que nos custe a nossa segurança. Mas o filósofo afirma que não há problema algum em errar e que a consistência é algo que não devemos desejar. No trecho abaixo ele diz: Uma consistência tola é o duende das pequenas mentes, adorada por estadistas, filósofos e teólogos. Assim, a pura autossuficiência não provém de sermos seres humanos completos, mas de aceitarmos nossos erros e de agirmos sem medo de errar, pois é este medo que nos inibe de agir com nosso completo potencial.

O outro terror que nos amedronta de nossa confiança pessoal é nossa consistência; uma reverência por nossas atitudes ou palavras passadas, porque os olhos dos outros não possuem mais informações para computar nossa órbita do que nossas atitudes passadas, e nós nos relutamos em decepcioná-los.

Parece que nunca confiar somente em sua memória é uma regra sábia, muito menos em assuntos que requeiram pura memória, mas é melhor trazer o passado para o presente e julgá-lo com seus milhares de olhos e viver sempre em um novo dia.

Uma consistência tola é o duende das pequenas mentes, adorada por estadistas, filósofos e teólogos. Com consistência, uma grande alma não tem nada para fazer. Se for o caso, é melhor que se importe com sua sombra na parede. Diga hoje o que você pensa com palavras firmes e amanhã fale o que pensas amanhã em palavras firmes novamente, mesmo que contradiga tudo o que falasse hoje. — “Ah, mas com certeza você será incompreendido.” — É tão ruim assim, ser incompreendido? Pitágoras foi incompreendido, e também Sócrates, e Jesus, e Lutero, e Copérnico, e Galileu e Newton e qualquer outro espírito puro e sábio que tenha encarnado. Ser grande é ser incompreendido.

Porém, a autossuficiência não virá da noite para o dia. Ela evolui, deve ser trabalhada, exercida diariamente, em cada ação. Emerson diz que a força do caráter é acumulativa. O resultado de agirmos de forma justa, sem medo de errar, de acordo com nossos próprios princípios pessoais será exibido em algum momento do futuro — mesmo que estas ações não aparentem ser corretas para as pessoas ao nosso redor. Com o tempo, tudo será explicado, recompensado e estas ações servirão de apoio para o nosso próprio caminho a trilhar.

Sua conformidade não explica nada. Aja individualmente e o que você já tenha feito individualmente irá se justificar para você agora. A grandeza apela ao futuro. Se posso ser suficientemente firme hoje para fazer o que é justo e ainda desdenhar, devo ter feito tanta justiça antes para me defender agora. Seja como for, aja de forma justa hoje. Sempre desdenhe as aparências, e sempre poderás agir de tal forma. A força do caráter é acumulativa. Todos os dias de virtude do passado foram feitos para isso. O que compõe a majestade dos heróis do senado e do campo de batalha, que tanto despertam nossa imaginação? O apoio da consciência de uma cadeia de dias de virtude e de vitórias. Juntos, elas iluminam o ator que segue adiante.

Emerson diz que este conceito de autossuficiência é muito valioso em uma era de desigualdade social. A sociedade anseia por um salvador, por aquele que resolverá todos os seus problemas, mas seus indivíduos são incapazes de arregaçarem as mangas e agirem por conta própria. Aqueles que o agem e falham, serão condenados pelos olhos de seus semelhantes. É aí que o exercício da autossuficiência é mais importante. Para o filósofo, aquele que age por completo com autossuficiência não temerá o julgamento de seus concidadãos, que em contrapartida o respeitarão pelo poder de seu caráter.

Se alguma pessoa considera os aspectos presentes daquilo que é chamado por distinção social, verá a necessidade desta ética. A fibra e o coração do ser humano parecem ter sido retirados, e nós nos tornamos tímidos e abatidos chorões. Temos medo da verdade, do destino, da morte e temos medo de nós mesmos. Nossa era não produz grandes homens. Queremos homens e mulheres que renovem a vida e nosso estado social, mas vemos que a maioria das naturezas dos indivíduos são insolventes, incapazes de satisfazer suas próprias necessidades, que elas possuem uma ambição desproporcional em relação à sua força prática e se apoiam ou imploram pelo dia e pela noite sem parar. Nossa vida doméstica é mendicante, não escolhemos nossas artes, nossas ocupações, nossos casamentos, nossa religião, mas foi a sociedade que as escolheu para nós. Somos soldados de salão. Esquivamos a áspera batalha do destino, local onde nasce a força.

Se nossos jovens falham em seus primeiros empreendimentos, perdem toda a esperança. Se um jovem comerciante falha, as pessoas dizem que está arruinado. (…) Ele anda lado a lado com seus dias e não se sente envergonhado em não “estudar uma profissão”, porque ele não posterga a sua vida, mas sim a vive. Ele não tem uma única chance, mas centenas delas. Que um Estóico descubra os recursos do ser humano e diga às pessoas que elas não são salgueiros inclinados, mas podem e devem desapegar-se; que com o exercício da autoconfiança, novos poderes aparecerão; que um ser humano é a palavra em forma de corpo, nascido para derramar a cura nas nações, que ele deveria se sentir envergonhado pela nossa compaixão, e que no momento que ele age a partir de si mesmo, jogando as leis, os livros, as idolatrias e os costumes pela janela, não sentimos mais pena, mas o agradecemos e o honramos — e este mentor restaurará a vida do ser humano em esplendor, e fará com que seu nome seja querido por toda a história.

O que impressiona no entanto, é que este ensaio foi escrito em 1841, mas poderia muito bem ter sido escrito em 2018. Emerson identifica problemas que iriam persistir por mais de 150 anos após a concepção deste texto. Ele, contudo, acredita que a falta de autossuficiência na sociedade provém da modernidade. No trecho abaixo ele compara o cidadão moderno com um aborígene da Nova Zelândia e mostra o quão dependente o cidadão moderno é de suas ferramentas e de suas instituições. Na continuação, ele questiona se as ações dos cristãos realmente seguem a filosofia do Cristianismo, da mesma forma que os estóicos agem de acordo com o estoicismo, ou se eles são apenas “cristãos de instituição”, seguindo cegamente as ordens da Igreja.

A sociedade nunca avança. Ela retrocede tão rápido em um lado como avança no outro. Ela sofre mudanças contínuas; é bárbara, é civilizada, é Cristã, é rica, é científica; mas esta mudança não é aperfeiçoamento. Para cada coisa que se agrega, algo é tirado. A sociedade adquire novas artes e perde velhos instintos. Que grande contraste existe entre o Americano bem-vestido, que lê, que escreve e que pensa, com um relógio, um lápis e uma conta de câmbio em seu bolso, e o Neozelandês nu, cuja propriedade é um porrete, uma lança, uma manta e um décimo de uma cabana para dormir! Mas compare a saúde destes dois homens e verás que o homem branco perdeu a sua força aborígene. Se o que os viajantes nos contaram é verdade, golpeie o selvagem com um machado e, em um dia ou dois, a ferida se curará como se o golpe fosse um sopro suave, e este mesmo sopro mandará o homem branco para o seu túmulo.

O ser humano civilizado construiu a carruagem, mas já não usa mais os seus pés. Se apoia em muletas, mas não pode apoiar-se em músculos. Possui um bonito relógio Genovês, mas não consegue calcular a hora pelo sol. Possui um almanaque náutico de Greenwich, e por isso está seguro de ter a informação ao seu alcance, mas não pode reconhecer uma única estrela quando sai às ruas. Ele não observa o solstício; sabe pouco do equinócio; e o brilhante calendário anual carece de um indicador em sua mente. Seus cadernos de anotações enfraquecem sua memória; suas bibliotecas sobrecarregam sua inteligência; o escritório de seguros aumenta o número de acidentes; e poderíamos perguntar se as máquinas não o restringem; se não perdemos alguma energia por refinamento, por um Cristianismo impregnado em formas e instituições, pelo vigor da virtude selvagem. Como cada Estóico foi um Estóico; onde está a Cristandade no Cristão?

Os últimos dois parágrafos merecem uma atenção especial. Emerson volta a reafirmar a importância de agir de acordo com nossos princípios e nos recomenda a não deixar nossas vidas à mercê da sorte, da deusa Fortuna. Que ao trabalharmos com Vontade, ao agirmos com autossuficiência, não nos incomodaremos mais com os azares da aleatoriedade da vida. Mas que tal modus operandi não é o suficiente. Emerson nos alerta que eventos favoráveis podem nos iludir, podem nos fazer acreditar que tudo está bem e que nada pode nos atingir. Ele finaliza com: Nada pode te trazer paz além de você mesmo. Em outras palavras, não serão estes eventos favoráveis como vitórias políticas ou o retorno de um amigo que nos farão felizes, mas somente a aceitação de nós mesmos. A felicidade não provém de coisas externas, mas sim de nossa paz interior, resultado do exercício da autossuficiência. Mas Emerson não se limita ao indivíduo, ele o recorda de que existe um mundo ao nosso redor que apenas triunfará quando os valores da autossuficiência prevalecerão, e enfim: Nada pode te trazer paz além do triunfo dos princípios.

Não exija nada de ninguém, e em meio às infinitas mudanças, seus princípios serão a única coluna que sustentará tudo que te rodeia. Aquele que sabe que o poder nasce internamente, que ele é fraco porque tem procurado pelo bem fora de si em todas as partes, e ao perceber isso, joga-se por completo em seus pensamentos, imediatamente coloca-se de pé, domina seus membros e faz milagres; da mesma maneira que uma pessoa que para sobre seus pés é mais forte que uma pessoa que para sobre sua cabeça.

Assim, use tudo o que for abençoado pela deusa Fortuna. A maioria das pessoas joga na loteria com ela, ganham tudo, perdem tudo, enquanto sua roda do destino continua girando. Mas considere estes ganhos como ilícitos, e lide com a Causa e o Efeito, os chanceleres de Deus. Trabalhe e adquira coisas com Vontade, e trancarás a Roda da Fortuna, e já não terás medo de seus giros. Uma vitória política, o aumento dos aluguéis, a recuperação de uma doença, ou o retorno de um amigo ausente, ou algum outro evento favorável, elevam teu espírito e pensas que bons tempos estão a caminho. Não acredite nisso. Nada pode te trazer paz além de você mesmo. Nada pode te trazer paz além do triunfo dos princípios.

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