Duna Capítulo 40: O Teste

Bruno Birth
brunobirth
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5 min readSep 23, 2020

“Há em todas as coisas um padrão que faz parte de nosso universo. Tem simetria, elegância e graça: as qualidades que sempre encontramos na obra de um verdadeiro artista. É possível encontrá-lo na mudança das estações, na maneira como a areia escorre de uma colina, nos emaranhamentos de galhos de um arbusto de creosoto ou no padrão de suas folhas. Tentamos reproduzir esses padrões em nossas vidas e nossa sociedade, à procura dos ritmos, das danças, das formas que confortam. mas pode-se ver perigo na busca da perfeição definitiva. Está claro que o padrão definitivo encerra sua própria fixidez. Nessa perfeição, todas as coisas seguem para a morte.”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meu amigo Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

É incrível como as reflexões do capítulo 22 de tempos em tempos voltam só para nos assombrar. Neste excerto de Irulan vemos o que já foi discutido sobre como o ser humano tenta impôr uma ordem inatural ao caos de sua existência aleatória, lançando a humanidade em um ciclo vicioso e histórico de depressão, fracasso e morte. Leia a análise do capítulo 22 clicando AQUI.

Dois aspectos marcam este capítulo. Primeiramente temos um retrospecto do que aconteceu a Jessica e Paul, bem como aos fremen que os rodeiam, nos últimos dois anos. Quando a terceira parte do livro Um começa sabemos da passagem do tempo por conta de uma revelação do barão Harkonnen, sendo que no capítulo seguinte o livro se manteve no contexto do planeta natal dos Harkonnen, Giedi Primo, com a reunião do barão Vladimir e o mentat Hawat.
Agora, voltando ao contexto de Muad’Dib, tivemos um breve resumo dos fatos que giraram em torno da ascensão social de Paul (baseada nos mitos religiosos dos nativos de Arrakis) e a situação de Jessica, sob as responsabilidades de ser a nova Reverenda Madre dos fremen, além do fato de ter dado a luz a Alia, a irmãzinha de Paul.

A outra esfera importante deste capítulo gira em torno de Paul Atreides.
Embora o garoto de 17 anos não esteja em uma situação confortável, a inconstância se foi, agora que sua posição dentro do mundo de Arrakis se estabeleceu. Isso faz com que as preocupações de Paul se concentrem em pontos claros e plenamente detectáveis. De certa forma, essa situação diminui as suas turbulências psicológicas e possibilita a Muad’Dib se aprofundar em suas habilidades psíquicas, o que se traduz para nós leitores como novas características narrativas da presciência, características até então não descritas no livro.
Veja o trecho abaixo:

“…agora passado, futuro e presente fundiam-se, sem distinção. Era uma espécie de fadiga visual, que ele sabia advir da necessidade constante de manter o futuro presciente como uma espécie de memória que, por si só, era uma coisa que pertencia intrinsecamente ao passado.”

Falamos na análise do capítulo que nós todos, eu e você, possuímos as habilidades psíquicas das Bene Gesserit e de Paul Atreides, só que em escala bem menor e menos discutida em larga escala pois as tradições que formam as nossas sociedades não se pautam em uma “ciência da mente”, tal como ocorrera com o mundo futurista de Duna. Mas, há um modo simples de explicar esse trecho de Paul. Nós, como já falado, vivemos criando prognósticos de como se comporá nosso futuro, seja ele em um elevado período de tempo ou mesmo em questão de minutos. Nossas mentes se prendem (diria que até inconscientemente) ao futuro. Pois bem, as projeções prognósticas que nossas mentes criam se tornam memórias com o simples passar de tempo, e nós as carregamos com nossos projetos ou motivações para tentarmos realizar esses pensamentos direcionados ao futuro. É isso o que está descrito no texto acima. Aspectos do futuro que se tornam passado. Tudo acontecendo em simultâneo em nossa mente.
Essa maneira de Paul de gerir a presciência ainda não havia sido descrita no livro mas, como falei acima, além da inconstância de seu estado ter desaparecido, Paul está dois anos mais maduro. Por isso Frank Herbert começa a trilhar mais aspectos de suas habilidades enquanto repete algumas vezes no capítulo a frase “aconteceu ou ainda está para acontecer?”, fazendo uso dessa característica de interpretação do tempo (de colocar o futuro como um aspecto do passado) que a mente humana naturalmente faz.

Enquanto se prepara para um verdadeiro teste de fogo que colocará à prova o significado de sua soberania perante os fremen, Paul Muad’Dib nos dá outro aspecto de suas habilidades psíquicas.
Leia este outro trecho:

“Imaginou se seria possível que seu espírito-ruh tivesse, de algum modo, fugido para o mundo onde os fremen acreditavam que ele levava sua verdadeira existência: o alam al-mithal, o mundo das similitudes, o reino metafísico onde todas as limitações físicas eram eliminadas… …remover todas as limitações era remover todos os pontos de referência.
‘Eu sou quem sou porque estou aqui’, disse ele”.

Existe um livro de filosofia chamado Simulacros e Simulação, do francês Jean Baudrillard. Neste livro Baudrillard discute de modo crítico como a sociedade abraça símbolos e como estes se relacionam com a contemporaneidade para criar contextos que afastam o ser humano da realidade. Tais contextos sintéticos se apoderam das atribuições sensoriais da mente humana e estabelecem e ambientes de falsa realidade. Sabe aquela ideia de que os humanos não mais conseguem se relacionar naturalmente, apenas pela superficialidade das redes sociais? Sabe aquela ideia de que a alimentação humana está cada vez mais atrelada a produtos industrializados? Sabe aquela crítica de que os seres humanos estão cada vez mais atribuindo valor exacerbado a objetos de cunho materialista e não mais ao intelecto ou a natureza propriamente dita? Então. Tudo isso (e muito mais) faz parte da vasta gama de simulacros nos quais estamos nos enfiando como humanidade.
Mas antes de partir para essa parte crítica, o autor francês explica como a mente humana se relaciona com o ambiente à sua volta para criar referências diversas e estabelecer suas interpretações do que é ou não real. Sem estas referências espaciais, a mente humana é fisiologicamente incapaz de dizer o que é realidade.
Nesse trecho que destaquei, Paul Atreides faz exatamente o exercício de se imaginar fora, aquém das referências e limitações do ambiente em torno de si para se questionar se nessa situação ele é capaz de saber o que é ou não real. Quando termina seu exercício mental e abre os olhos, Paul chega à conclusão de caráter construtivista de que um indivíduo é o que é por conta do contexto que o cerca, por conta de como a mente deste indivíduo se relaciona com os pontos de referência espaciais que consegue detectar e interpretar.

A preparação de Paul é intensa e reflexiva pois, como falei acima, o teste que deve cumprir é complicadíssimo: montar e guiar um verme da areia. Simples assim, como diria a Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam.
O capítulo termina com o grupo fremen chefiado por Stilgar à distância, enquanto um verme de três quilômetros de comprimento se movimenta na areia como uma imensa montanha, indo na direção do isolado Paul Muad’Dib.
Falhar no teste de montarenador é igual falhar no teste do Gom Jabbar, ou seja, resulta na morte.

Leia as análises de todos os outros capítulos clicando AQUI.

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Bruno Birth
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