A inteligência artificial e o novo papel do designer na sociedade em rede. (Parte 2 de 4)

Bruno Lorenz
8 min readJan 3, 2019

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por Bruno Lorenz e Carlo Franzato

Essa é a segunda parte de um artigo que busca refletir sobre o impacto da Inteligência Artificial no processo de design. Você pode ler a introdução sobre o assunto clicando aqui, e a primeira parte do ensaio, clicando aqui.

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Inteligência artificial e processos de projeto.

Dreyfuss (1972) explica que os estudos relacionados à Inteligência Artificial buscam produzir um programa heurístico — baseado em regras específicas — que permitiria a uma máquina simular um comportamento inteligente e racional.

Em discussões recentes, Russel e Norvig (2016) listam oito definições que, além da racionalidade, consideram também a dimensão comportamental dos estudos relacionados ao campo. Para fins sintéticos, listamos tais definições a seguir.

“[Automatização de] atividades que associamos ao pensamento humano, atividades como tomada de decisões, a resolução de problemas, o aprendizado.” (BELLMAN, 1978)

“O novo e interessante esforço para fazer os computadores pensarem (…) máquinas com mentes, no sentido total e literal.” (HAUGELAND, 1985)

“O estudo das faculdades mentais pelo uso de modelos computacionais.” (CHARNIAK; MCDERMOTT, 1985)

“O estudo das computações que tornam possível perceber, raciocinar e agir.”(WINSTON, 1992).

“A arte de criar máquinas que executam funções que exigem inteligência, quando executadas por pessoas.” (KURZWEIL, 1990)

“O estudo de como os computadores podem fazer tarefas que hoje são melhor desempenhadas pelas pessoas.” (RICH; KNIGHT, 1991)

“Inteligência computacional é o estudo do projeto de agentes inteligentes.” (POOLE et al., 1998).

“Inteligência Artificial está relacionada a um desempenho inteligente de artefatos.” (NILSSON, 1998).

A partir dessas definições, percebe-se que os esforços se voltam não apenas à compreensão de entidades inteligentes (entender como elas pensam) mas também à construção de tais entidades: os pesquisadores do campo buscam desenvolver um sistema racional que percebe, compreende, toma decisões e age de acordo com aquilo que ele sabe sobre o mundo.

O avanço da I.A. sobre diversas áreas anteriormente dominadas pelos seres humanos — principalmente com relação a automação de postos de trabalho pelo mundo todo — é um fenômeno que vem recebendo mais atenção nos últimos anos, tanto por parte dos meios de comunicação quanto da academia. Nada mais compreensível: a partir do momento que milhares de empregos que antes eram ocupados por mão de obra humana são substituídos por máquinas — mais rápidas, mais baratas e mais eficientes — , o impacto social e econômico é difícil de ser ignorado.

Inicialmente, a preocupação da substituição estava centrada em atividades repetitivas e bem delimitadas que, apesar de por vezes complexas, são passíveis de serem atendidas por meio de uma lógica binária de certo e errado — caixas de supermercado, motoristas, repositores, etc. No entanto, discussões recentes se atentam para a capacidade do algoritmo de se embrenhar em tarefas que acreditava-se ser de domínio exclusivamente humano, como àquelas ligadas à criatividade.

Christian (2013, p.28) cita Hofstader (1979, apud CHRISTIAN, 2013):

“Às vezes”, diz Douglas Hofstader, “parece que cada novo passo em direção à I.A., em vez de produzir algo que todo mundo reconheça como inteligência genuína, só faz revelar o que uma inteligência genuína não é.”

Embora à primeira vista essa possa parecer uma opinião controladora — que mantém intacta nossa pretensão à exclusividade como seres pensantes -, tem a incômoda aparência de uma retirada gradual, suscitando a imagem mental de um exército medieval recuando do castelo para a paliçada. Mas a retirada não pode prosseguir indefinidamente. Pense bem: se tudo o que consideramos característica do “pensar” não envolve de fato pensar, então… o que é pensar? Seria apenas, parece, um epifenômeno — uma espécie de “descarga” no cérebro — ou pior, uma ilusão.

[…] esse recuo é bom ou mau? […] os computadores serem tão bons em matemática tira, em algum sentido, alguma arena de atividade humana ou nos libera de ter de realizar uma atividade não humana, deixando-nos livres para uma vida mais humana?

A segunda ideia pode parecer a mais atraente, mas começa a se figurar menos interessante se pudermos imaginar um ponto no futuro quando o número de “atividades humanas” ainda por “liberar” tiver ficado desconfortavelmente pequeno.

A capacidade de projetar os artefatos que constituem o mundo que nos cerca é uma dessas atividades essenciais que nos torna humanos e que nos diferencia dos outros animais. (Cross, 2006; Nelson; Stolterman, 2012). No entanto, definir com exatidão no que consiste esse projetar — ou fazer design — , não é uma tarefa fácil, dado principalmente a indeterminação epistemológica do campo. São comuns, por exemplo, livros sobre o assunto que dedicam parte de sua introdução para esclarecer qual é o entendimento que se tem sobre design na obra. Quando nos voltamos especificamente para a prática projetual, tal indeterminação não desvanece.

Enquanto Simon (1996, original de 1969) enxerga o processo de projeto sob uma visão positivista, relacionada a um processo estruturado e racional que atenda às delimitações estabelecidas no contexto, Schön (2000) defende uma postura fenomenológica — a da prática reflexiva — onde o designer se deixa influenciar pela sua subjetividade e pela sua intuição, em um processo de conversa com o projeto, que decorre enquanto se projeta.

Ambas são visões essenciais para a compreensão da atividade projetual. À primeira vista, a definição de Simon parece se adequar melhor às capacidades do algoritmo (ainda mais quando se tem em mente que Herbert Simon é um dos pioneiros nos estudos sobre inteligência artificial), enquanto a de Schön representa de maneira fiel os processos humanos de projeto. Ambas estão relacionadas ao enfrentamento de problemas capciosos (wicked problems, de RITTEL, 1972): problemas mal definidos, que não consideram soluções certas ou erradas, mas pertinentes ou não à situação e onde são inúmeras as razões da existência do problema.

Para o avanço da presente discussão, consideramos Cross (2006, p.31–34), que entende a natureza da atividade projetual de forma componencial, caracterizada pela manifestação de sete diferentes qualidades, elencadas abaixo:

  1. retórica: ao longo do processo, o designer constrói gradativamente um argumento que defenda e justifique o que ele está desenvolvendo;
  2. exploratória: ao invés de buscar a melhor solução para determinado problema, o designer entende o briefing como uma espécie de mapa incompleto de um território desconhecido, o que pede pela exploração do projetista;
  3. emergente: o processo não se resume a uma simples coleta e síntese de informações, mas sim uma co-evolução entre a solução e o problema;
  4. oportunista: as decisões tomadas ao longo do processo estão baseadas no que foi aprendido ao longo do percurso e com vislumbres do que pode acontecer no futuro;
  5. reflexiva: o designer empreende em uma conversa entre representações internas e externas do que poderiam ser as possíveis resoluções do problema;
  6. ambígua: por maior que seja o número de soluções geradas, é frequente o fato de que muitas das alternativas preteridas sejam retomadas posteriormente ao longo do processo. Muitos dos conceitos finais são imprecisos e inconclusivos;
  7. lida com riscos: ao se empenhar em uma empreitada pessoal na busca por inovação, é preciso encarar riscos financeiros e até mesmo da própria reputação, por exemplo.

Desde já, percebe-se que, por enquanto, os avanços da inteligência artificial não atendem a todas as características da atividade projetual. A retórica e a exploração, por exemplo, cabem ainda somente ao designer, que é capaz de lidar com a complexidade das demandas que a máquina ainda não dá conta.

No entanto, já se pode vislumbrar que outros aspectos começam a sofrer a influência da I.A. A emergência pode ser atendida pelo algoritmo, desde que direcionada e alimentada pela percepção e visão oportunista. Dessa forma, a partir das propostas sugeridas pela máquina, entra em ação a capacidade reflexiva do designer ante essas propostas. A ambiguidade pode ser executada diretamente pela máquina, a partir dos parâmetros revelados nas etapas de pesquisa e análise. Acreditamos que é nesse aspecto que reside a maior qualidade da inteligência artificial no design.

A relação entre design e inteligência artificial não é uma novidade no mundo acadêmico. Os projetos de pós-graduação de Cross (1967, apud Cross, 2006), a discussão sobre métodos da década de 1960 e as próprias reflexões de Simon sobre o mundo artificial (1969, publicado novamente em 1996), já apresentavam uma preocupação sobre a influência e os impactos que um exerce sobre o outro. Em nosso ponto de vista, no entanto, o que está mudando de maneira preponderante recentemente é a natureza dessa influência.

Movimentos recentes — que carregam em suas dinâmicas as lógicas da sociedade em rede — apontam para mudanças na forma como a I.A. pode estar presente na atividade projetual, não mais como uma auxiliar passiva (tais como softwares CAD), mas como um agente ativo, em especial em etapas de geração de alternativas para o problema enfrentado.

Estamos cientes, claro, que apresentar a natureza da atividade projetual a partir dos argumentos de Cross (2006) e relacioná-los com os avanços da I.A. não parece ser suficiente para sustentar a hipótese de que o algoritmo pode substituir a criatividade humana em processos de design. Essa lacuna, no entanto, destaca o caráter exploratório do presente artigo: queremos abrir discussões e manifestar questionamentos que certamente não serão respondidos nessa série de textos, mas que reverberem para que possamos explorar o impacto de tais tecnologias e paradigmas no âmbito da atividade projetual.

Dentro de atividades criativas, reflexivas e ambíguas, o risco de substituição pela máquina ainda parece distante, quase indistinguível no horizonte. Dreyfuss (1972), por exemplo, defende que a inteligência artificial nunca irá substituir o homem em tarefas criativas. No entanto, frisamos que o enfoque do presente artigo não se concentra na questão de substituição: queremos refletir sobre como esse novo contexto altera o papel do designer nos processos projetuais e o que será preciso para que este se adapte à nova realidade que emerge.

Para exemplificar o poder transformador dos algoritmos atrelados à I.A. sem correr o risco de se perder no emaranhado dos aspectos técnicos e matemáticos do campo, apresentamos, na próxima parte dessa série de textos, projetos nas quais os algoritmos afetam os processos de projeto.

Referências

Christian, B. O Humano Mais Humano: O que a Inteligência Artificial nos Ensina Sobre a Vida. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Cross, N. Designerly Ways of Knowing. Londres: Springer-Verlag, 2006.

Dreyfus, H. What Computers Can’t Do: A Critique of Artificial Reason. New York: Harper & Row, 1972.

Nelson, H.; Stolterman, E. The Design Way. 2a ed. Cambridge: The MIT Press, 2012.

Rittel, H. On the planning crisis: Systems analysis of the “First and Second Generations”. Bedrifts Økonomen, p. 390–396, 1972.

Russel, S.; Norvig, P. Artificial Intelligence: A Modern Approach. 3a ed. Essex: Pearson Education Limited, 2016.

Sanders, E.; Stappers, P. J. Co-creation and the new landscapes of design. CoDesign, v. 4, n. 1, p. 5–18, 2008.

Simon, H. The Sciences of the Artificial. Cambridge: MIT Press, 1996.

Schön, D. Educando o Profissional Reflexivo: um Novo Design para o Ensino e a Aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.

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Bruno Lorenz

Designer, Mestre em Design Estratégico e entusiasta de futuros possíveis.