Os eternos tentáculos de Ursula K. Le Guin
Um texto sobre as preocupações e o legado da escritora que criou escritores
“Porque todas as mulheres escritoras são esquecidas rapidamente? Esta sim é uma verdadeira angústia: simplesmente observar o que acontece à escritoras. Elas se vão muito mais rápido do que os homens” respondeu Ursula K. Le Guin à China Miéville em 2009 quando questionada sobre as maiores preocupações no seu ofício de escrever.
Ursula faleceu em janeiro deste ano, 9 anos após sua entrevista com Miéville (Cidade e Cidade). Após isso, os nomes mais famosos da literatura fizeram questão de prestar suas homenagens, demostrando que seu legado vai além da captação leitores, chegando à formação de escritores.
A notícia foi sentida por todos, “figurões” como Stephen King (Torre Negra/ IT) e Rick Riordan (Percy Jackson) twittaram sobre a perda, e até George R. R. Martin (Guerra dos Tronos) fez questão de destacar que, para ele, Ursula fez parte do trio de autores da Era de Ouro da Ficção científica. No Brasil, a escritora Ana Cristina Rodrigues (Anacrônicas) reuniu vários depoimentos no texto “Criadores brasileiros falam sobre Ursula K. Le Guin” fazendo um trabalho de registro, também realizado pelo Library of America com autores internacionais dias após o falecimento.
Mas o que salta aos olhos na obra e vida de Ursula? Que admiração é essa que fez Patrick Hotfuss em 2008 comemorar que a ídolo não só tinha lido o seu recém lançado O Nome do Vento, como aceitado fazer uma sinopse para ele?
Margaret Atwood, conhecida pelo Conto de Aia, respondeu isso indiretamente no The Guardian: “Em toda sua obra, Le Guin estava sempre urgentemente se perguntando a mesma questão: Em que tipo de mundo você quer morar?”
Um de seus mais famosos livros é O Feiticeiro de Terramar, lançado em 1968, onde ela introduziu Ged, ou Gavião, um menino que vai à uma escola de Magia e, devido à sua ambição, acaba liberando uma sombra que está além da compreensão dos magos. Eu e o pessoal do clube do livro em formato de podcast chamado Marca Página gravamos três episódios sobre ele que ainda serão lançados, porém, adianto que, lá, além de nossas impressões ao longo da leitura, comentamos sobre o posfácio escrito por Ursula, onde ela explica:
“Quando O Feiticeiro de Terramar foi publicado, não havia nenhum livro como ele. Era original — uma novidade. Ao mesmo tempo, era convencional o suficiente para não assustar os críticos. […] O herói faz o que um homem deveria fazer: ele usa sua força, sua inteligência e sua coragem para conquistar, a partir das próprias origens humildes, grande fama e poder, em um mundo masculino onde as mulheres são secundárias. […] Sob outros aspectos, a minha história não seguiu a tradição. Seus elementos subversivos chamaram pouca atenção, sem dúvida, porque eu fui deliberadamente furtiva em relação a eles. Um grande números de leitores brancos, em 1967, não estavam prontos para aceitar um herói de pele escura. Mas eles não estavam esperando por isso. Eu não fiz estardalhaço e você tem que estar bem adiantado na leitura do livro para se dar conta de que Ged, como a maior parte dos personagens, não é branco”.
E continua: “Infelizmente, na época, eu não tinha poder para combater à recusa pura e simples de muitos capistas em colocar pessoas não brancas na capa de um livro. Por isso, apesar dos muitos Geds posteriores, de pele alvíssima, a ilustração de Ruth Robbins para a primeira edição — o perfil marcante e delicado de um jovem com pele marrom-acobreada — sempre foi para mim a verdadeira capa do livro”.
Alguns anos mais tarde, o tratamento que as personagens femininas receberam nesse primeiro livro foi questionado, como bem relata a escritora Julie Phillips (James Tiptree, Jr: The Double Life of Alice B. Sheldon), que perguntou isso pessoalmente à Ursula. Em resposta, a autora de Terramar não só adicionou o comentário já citado no posfácio do primeiro livro, como trouxe diversidade de gênero nas continuações da série, provando, nas palavras de Julie, que “Poucos outros escritores teriam essa coragem, mas liberdade era algo que ela valorizava acima de tudo, incluindo a liberdade de mudar”.
Outra obra popular de Ursula é A Mão Esquerda da Escuridão, uma ficção científica criada em 1969 a partir do questionamento: “E se o gênero sexual fosse ocasional e ninguém estivesse preso à apenas um?”. Então surgiu o planeta Gethen, lugar para onde o emissário terráqueo Genly Ai é enviado em uma missão de reconhecimento (também tivemos o prazer de gravar três episódios sobre este livro no Marca Página). Nos depoimentos prestados ao Library of America, Kathleen Ann Goonan (Queen City Jazz/This Shared Dream) conta sobre essa variedade de temáticas: “Ela era a voz no meu coração, não importava o que ela escrevesse. Ela falava com a mesma autoridade na voz de uma árvore, ou um coyote, um anarquista, um garoto ou uma idosa. Ela não escrevia nada que eu não devorasse, nada que não me fizesse crescer de alguma forma”.
Le Guin não mudava o mundo apenas em seus livros, mas também com suas atitudes. Relembremos sua resposta, em 1987 ao convite de escrever uma sinopse à primeira edição da revista Synergy: New Science Fiction, que só tinha autores homens dentre os contos selecionados:
Querido Sr. Radziewicz,
Eu posso me imaginar fazendo uma sinopse de um livro no qual Brian Aldiss, previsivelmente, zomba do meu trabalho, porque então eu poderia me gabar de minha magnanimidade. Mas eu não posso me imaginar escrevendo a sinopse de um livro, o primeiro de uma série, o qual além de não conter textos de mulheres, possui um tom exclusivamente masculino, como um clube ou um vestiário. Isso não seria magnanimidade, mas tolice. Cavalheiros, eu simplesmente não pertenço a este lugar.
Sinceramente,
Ursula K. Le Guin
No entanto, negar participar de publicações machistas não era a única forma com que contribuia para a atuação das mulheres no mercado literário. A escritora Elaine Showalter relembrou um discurso de Ursula de 1986, no qual ela disse à estudantes do Bryn Mawr College que mulheres são “vulcões”, e que elas viram o jogo quando oferecem sua experiência como uma verdade humana, finalizando com a pergunta: “Se nós não dissermos a nossa verdade, quem a dirá? Quem vai falar pelos meus filhos e pelos seus?”.
Outro equívoco que incomodava profundamente Ursula era quando a catalogavam. Várias vezes em vida ela deixou claro que seu objetivo sempre fora contar histórias, seja como fossem, seja para quem fossem. Em uma entrevista ao The Paris Review, ela revelou sua insatisfação em ser chamada de escritora de ficção científica: “Eu não sou. Eu sou uma romancista e poeta. Não me ponha em sua maldita caixa onde eu não caibo, porque eu estou em todo lugar. Meus tentáculos estão saindo dessa caixa em todas as direções”.
Deixo a indicação de um de seus contos mais incríveis, vencedor do Hugo Awards de 1974, chamado Os que dão as costas a Omelas, traduzido para o português pelo site A Bacia das Almas, que sintetiza muito bem as múltiplas facetas de alguém que tem não só uma bagagem de fantasia e ficção cientifica, como de pesquisa antropológica.
O maior nome ligado à ela, provavelmente, é o de Neil Gaiman (Sandman/Deuses Americanos), que nunca escondeu sua admiração ao contar que foi ela quem plantou no pequeno Neil de 11 anos o desejo de estudar em uma escola de magia (motivo que o fez escrever uma HQ com a temática). Ele relata que o trabalho de Ursula o moldou não só como escritor, mas o fez imaginar a si mesmo como feminista e a mudar a forma com que pensava sobre homens, mulheres, linguagem e histórias.
Neil foi responsável por introduzir a premiação por “notável contribuição à literatura” concedida pela National Book Awards em 2014 à Ursula, que resultou em um dos seus discursos mais famosos, falando sobre liberdade do autor e o mercado literário, ou como o próprio Gaiman comentou posteriormente: “Ela fez um discurso sobre editoras e sobre a Amazon que somente uma pessoa na sua posição poderia fazer”.
Sua fala foi vista por milhares de pessoas, uma delas foi a escritora Ada Palmer (Too Like the Lightning) que a escreveu agradecendo por, em suas palavras, “sintetizar de forma tão potente o quanto a literatura de Fantasia e Ficção científica é inestimável, não como escapismo ou entretenimento, mas como uma força criativa que força limites, amplia perspectivas e estimula a mudança social”. Para sua surpresa, Ursula a respondeu dizendo “Eu realmente achava que ninguém prestaria atenção naquilo. O resultado tem sido forte e animador. Lembra-me de que sempre vale a pena falar, mesmo quando é um pouco assustador e parece inútil. Escreva em liberdade!”
Eu fico feliz com o fato de que, quatro anos antes de seu falecimento, Ursula tivera tanto contato com o quanto ela influenciou os novos autores e seus eternos leitores. Que isto tenha dado à ela a esperança de que mulheres escritoras não seriam mais esquecidas tão rápido e que o mundo tenha percebido o alcance de seus tentáculos e sua contribuição à literatura. Por fim, faço questão de endossar o comentário de Ada Palmer de que, sim, nós, leitores e escritores, prestamos atenção em suas palavras, Ursula, e sempre o faremos.