Estamos online em casa. A internet vai “quebrar”?

Carlos d'Andréa
R-EST
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5 min readMar 24, 2020

Atualizações:
25/03 - uma reprodução deste artigo foi publicada em 25/03/20 no site da UFMG, minha (querida) instituição.
26/03- Por sugestão dos editores do BroadBandNow, acrescentei link para a página de tráfego de Nova York.

A eclosão da pandemia de COVID-19 e o acelerado isolamento social de parte da população de dezenas de países estão sendo acompanhada por uma renovada adesão a diferentes serviços online. Novas listas de conteúdos selecionados a dedo passaram a circular, plataformas audiovisuais antes restritas, como a Globoplay, tiveram o acesso liberado e proliferam ainda lives protagonizadas por artistas, intelectuais e por influenciadores digitais.

Ao mesmo tempo nota-se uma explosão das atividades (algo improvisadas) de trabalho remoto e educação à distância através de plataformas como Zoom e Google Meet (esta teve o uso liberado em vários país, inclusive Brasil). Acrescenta-se a este cenário um profusivo uso de aplicativos que nos permitem continuar “próximos” a parentes e amigos. Durante a pandemia o número de ligações pelo WhatsApp dobrou em países como a Itália, segundo afirmou Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, em uma conferência de imprensa na quarta, dia 18.

Dia a dia fica mais evidente que a possibilidade de aliviarmos parte do nosso angustiante período de reclusão com horas adicionais de séries e com conversas online esbarra em um desafio concreto: as limitações na infraestrutura instalada em cada país ou região. Em geral invisibilizada, a dimensão material da internet tem ganhado o centro das discussões, pois aumentam as dúvidas sobre sua capacidade de suportar o crescente aumento de tráfego de dados no prolongado período de isolamento social. Os percentuais variam de acordo com o ínicio e a intensidade da quarentena: na Itália, o consumo via redes fixas já dobrou enquanto no Reino Unido aumentou em 30%. Nos EUA, levantamento da BroadbandNow indica que, embora em cidades como Nova York já haja queda na qualidade do serviço, o impacto geral ainda é baixo.

Imagem: Engadget

A discussão mais significativa sobre como lidar com os limites da infraestrutura da internet em meio à pandemia de COVID-19 está em curso no âmbito da União Europeia. No dia 18 de março, Thierry Breton, comissário da UE, anunciou em sua conta no Twitter um acordo com o CEO da Netflix para que a plataforma diminuísse em 25% a resolução de seus vídeos, abdicando da qualidade HD. Para minimizar o “tensionamento” (termo usado por Breton) das infraestruturas, foi improvisada a campanha #SwitchToStandard, que obteve depois a adesão do YouTube, Amazon Prime e da Apple TV.

Já o lançamento da plataforma de filmes Disney+ na França foi adiado para abril a pedido do governo francês. Em alguns outros países europeus — incluindo Itália e Espanha, epicentros da pandemia no continente -, foi mantido o lançamento agendado para sexta, dia 24 de março, mas acordou-se a redução de 25% no tráfego de dados. No Reino Unido, a preocupação inclui a possível oferta de conteúdos educacionais pela BBC.

No Brasil, matéria publicada pela Folha de S. Paulo apontou, ao final da primeira semana de quarentena, para um aumento médio de 40% no tráfego de internet banda larga fixa das principais operadoras do país. Segundo apuração do jornal, picos entre 150% e 200% provocariam a “falência da rede”. Em entrevista ao Convergência Digital, Milton Kaoru Kashiwakura, do NIC.br, aponta que o recorde de tráfego não é motivo de preocupação imediata, pois a capacidade dos grandes provedores seria o dobro da efetivamente utilizada no momento. Apesar disso, aponta a matéria, em São Paulo “as autoridades já estudam qual o melhor horário para adotar aulas à distância mesmo na rede pública”.

As primeiras medidas pelas operadoras já estão em implementação: desde segunda (23), o Globoplay suspendeu conteúdos nas qualidades 4K e Full HD (1080p). O YouTube passou a exibir vídeos apenas na qualidade standard a partir de terça, dia 24, e a Netflix agendou para dia 26 a redução de 25% para o público brasileiro. Neste caso, a resolução final da imagem vai depender de cada plano de assinatura.

Para a evitar o problema, a Anatel articula um “compromisso” público para manter o “Brasil Conectado”. Segundo o Sinditelebrasil (sindicato patronal que reúne as telecoms), uma série de medidas emergenciais estão sendo tomadas, incluindo “atenção e cuidado redobrado na operação das redes fixas e móveis”. Aos clientes, foi solicitado um “uso sensato e responsável das redes e serviços”.

Outras instituições, no entanto, querem incentivar o aumento no consumo de dados: projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro no dia 18 de março obriga as operadoras a “disponibilizar gratuitamente o acesso a sites de comunicação, redes sociais e streaming (vídeos), sem contabilização no pacote de dados dos clientes”.

Com bastante otimismo, alguém pode ver no aumento de oferta de conteúdos um reavivamento de uma das utopias fundadoras da internet: o acesso “ilimitado” ao vasto conhecimento acumulado e constantemente atualizado online. Ainda que de modo temporário e por um motivo trágico, a versão contemporânea da “Biblioteca de Alexandria” (instituição responsável pela gestão da vasta produção cultural e científica do Antigo Egito) estaria, enfim, dando a ver a sua potência.

Em um artigo de opinião publicado no New York Times, a articulista Josephine Wolff argumenta no sentido contrário. Ao discutir, além da sobrecarga nas redes domésticas de internet dos EUA, a ameaça de ciberataques, o texto tem um título nada animador: Our Internet Isn’t Ready for Coronavirus. No Brasil, a desigualdade da infraestrutura instalada nas diferentes regiões e fragilidade das recentes políticas de governança da internet tornam o cenário muito mais complicado.

Assegurar o pleno funcionamento da internet em meio à pandemia de COVID-19 mostra-se um desafio complexo e duradouro. Assim como nas ações epidemiológicas, a coordenação de esforços passa pelas instituições, em especial pelas plataformas online, que concentram parte significativa do tráfego de dados e são responsáveis por parte crescente da infraestrutura da internet. Não nos assustemos, no entanto, se nosso isolamento social demandar também novas e inesperadas restrições no uso de serviços online. Uma intensa operação de telecomunicações e um uso mais solidário nas modificadas rotinas domésticas devem se articular para que a expressão “quebrar a internet” continue a se referir apenas aos assuntos mais comentados nas mídias sociais.

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Carlos d'Andréa
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Prof. Communication Studies at @ufmg , Brazil. Coordinator of @rest_ufmg .