Um mundo embaixo da marquise

Um final de semana no Parque Ibirapuera foi capaz de revelar um mundo de identidades das mais diversas que existem em São Paulo

Carolina Menezes
7 min readJun 7, 2018

Por Carolina Menezes, Maria Júlia Giovanini e Rafael Bittar

Marquise do Parque Ibirapuera. Fonte: PoucaMala

Sábado, 2 de junho. Por volta das 8h, Jeremias, 14, e Mateus, 15, pegam um ônibus em Paraisópolis rumo ao Parque Ibirapuera. É a primeira vez de Jeremias no Parque, os dois levam debaixo dos braços seus skates. Jeremias também é iniciante no skate, não sabe fazer muitas manobras, enquanto que Mateus também não é lá tão experiente nisso, mas sabe e gosta de “pegar velocidade”. Os meninos passariam a tarde no Ibirapuera, no máximo às 17h tomariam o ônibus da volta para casa. A escolha do lugar para andarem de skate não ao acaso, na marquise, foi feita porque lá os meninos se sentiriam à vontade. O lugar não causa neles a sensação de serem estranhos no ninho. Lá, há como eles outros e muitos jovens que passam o dia andando de skate; partilhando não só de um mesmo espaço físico, mas também o mesmo espaço no lugar de representatividade. E apesar das barreiras que em outro momento serviriam para separar essas pessoas, na marquise o sentimento de identidade é maior e dura aquele tempo de encontro que tem alguma razão de ser.

Esse sentimento de pertencimento, muitas vezes perdido na hostilidade em se viver numa das capitais mais complexas e diversas do mundo, é encontrado na marquise do parque pelos skatistas (como são os meninos de Paraisópolis), pelos que andam de patins, os que estão a pé só de passagem, os que passam e bicicleta, os que testam um esporte novo e despertam nos olhares em volta curiosidade. Todo esse mundo abrigado na extensão da marquise é diverso e de longe, pode parecer ou soar homogêneo, mas de perto, o que se vê é a convivência dessa multiplicidade de gente ocupando seu espaço, a sua maneira, na cidade.

“A antropologia vai dizer que você não necessariamente conhece alguém que partilha com você uma identidade, mas você se reconhece compartilhando gostos e interesses com o outro. Não necessariamente você conhece a pessoa face a face, mas se você se encontrar com ela em algum evento você pode ter certeza que vocês terão muito papo e pode nascer ali até uma bela amizade, um novo contato para a vida toda.” — Lillian Torres, antropóloga, professora e pesquisadora atuante na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Urbana. Leia a entrevista na íntegra aqui.

Um país que se desenvolveu a partir de índios das mais diversas tribos, negros de diferentes etnias africanas, portugueses, italianos e até holandeses gerou um universo de culturas que nos tornou uma população caracterizada pela mistura. Cada local possui sua bagagem cultural, e não de forma totalmente isolada. Existe um diálogo crescente entre as culturas que possibilitam trocas e uma integração entre os indivíduos de diferentes identificações. Dito isso, é possível afirmar que essa interação pode ser percebida e exemplificada de maneira mais forte na cidade mais populosa do Brasil: São Paulo. Segundo dados do IBGE, a população estimada em 2017 foi de 12.1 milhões de pessoas. Cada uma dessas pessoas carrega em si um contexto, experiências e vivências com características únicas que se combinam e formam identidades. A coexistência das identidades culturais na cidade de São Paulo nem sempre é pacífica, mas mostra a complexidade dos seres humanos e, mais do que isso, sua necessidade de união para se fazer existir em sociedade.

Segundo o Dicionário de Direitos Humanos, as identidades culturais que se observam hoje não possuem contornos nítidos. Isso porque a globalização introduziu uma grande fluidez e apresentou uma nova configuração na formação de identificações em grupo; pode-se afirmar que a construção de identidades culturais hoje ocorre de maneira muito menos fixa e sólida. Ao longo dos anos, filósofos e sociólogos buscaram uma explicação conclusiva sobre o termo e ainda não a alcançaram de fato.

David Harvey, professor de Antropologia britânico, geógrafo renomado na contemporaneidade e citado na obra de Stuart Hall chamada “Identidade cultural na pós modernidade”, buscou expressar e denunciar a forma com que as contradições sociais manifestam-se no espaço geográfico. Seu estudo diz que atualmente o sujeito está se fragmentando e, dessa forma, se desprende de tudo que é pré-estabelecido como identidade fixa no que diz respeito à cor, gênero, etnia ou classe. A ruptura com as identidades estabilizadas no passado é o que desloca a centralidade do indivíduo e introduz a pluralidade na formação do núcleo de uma identidade cultural. Isto, impulsionado pelas mudanças pós-modernas que alteram a cada dia mais as estruturas da sociedade, gera uma integração caracterizada pela diferença. Antagonismos sociais produzem necessidade de uma busca de novas posições a serem ocupadas por grupos que têm total motivação para resistir, se fazer existir e lutar por um espaço digno no contexto atual dentro da maior cidade do país.

Fizemos uma observação ao longo de um final de semana no Parque Ibirapuera. Localizado entre as avenidas Pedro Álvares Cabral, República do Líbano e IV Centenário, o Ibirapuera é o parque mais visitado da América Latina. O Parque, que é tombado e patrimônio histórico de São Paulo, conta com pavilhões que abrigam museus, auditório e uma marquise, que é o local onde mais se reúnem grupos que expressam nitidamente a essência da diversidade de identidades culturais presentes na cidade. O espaço é grande e acolhedor, cheio de árvores e gramados extensos. A primeira coisa que se nota é a convivência entre os mais diversos grupos embaixo da marquise: skatistas, crianças de patinete, idosos caminhando, jovens em roda sentados no chão, ciclistas, todos dividindo o mesmo local.

Além disso, também há grupos que utilizam o espaço do parque para realizar atividades que vão desde passeios com seus cachorros, até um estilo de luta medieval. No domingo, conversamos com lutadores de Draikaner, grupo de Swordplay Boffering (como é chamada a prática de luta medieval). O grupo de mais de 20 pessoas de todas as idades é um entre muitos que existem ao redor do país que pratica o esporte. Os lutadores de Swordplay se reúnem no Ibirapuera atrás do auditório “impreterivelmente todos os domingos; seja dia das mães, dia dos pais, Natal, faça chuva ou faça sol” como nos contou Maria Clara, uma das integrantes que estava treinando como aprendiz.

Caminhando também por outras regiões de São Paulo, não demoramos para perceber as maneiras como as identidades presentes na cidade também se manifestam em forma de protesto. Em uma longa caminhada pela Avenida Paulista, a mais famosa e movimentada avenida da cidade, encontramos nos muros marcas produzidas por grupos que procuram se fazer existir perante uma sociedade que ainda carrega intolerância e preconceito contra aqueles que são diferentes do “padrão”.

O espaço urbano é onde os grupos encontram maneiras de utilizar sua voz. Aqui, vemos cartazes de manifestação de resistência de grupos LGBTQI+ e feministas.

Seguindo a caminhada e chegando até a Rua Augusta, encontramos mais manifestações. Conhecida por seus bares, boates e restaurantes, é uma das ruas mais famosas e frequentadas de São Paulo, onde muitas pessoas circulam dia e noite.

Aplicações de estêncil em um muro branco manifestam frases relembrando duas mortes que abalaram o país no geral mas especialmente a população negra, feminina e periférica: Marielle, vereadora do Rio de Janeiro, feminista, lésbica e militante pelos direitos humanos que foi executada em março desse ano e Matheusa, estudante, transsexual e artista que também foi assassinada no RJ. Ambas as mortes trouxeram um abalo para esses grupos identitários, ao mesmo tempo em que aumentaram a força de resistência. A produção de marcas visuais reafirmando a própria identidade faz parte de uma luta muito maior. Ao fazerem isso, os grupos ocupam um local da cidade manifestando sua resistência contra qualquer tipo de preconceito; seja através de símbolos, arte, poesia, qualquer tipo de representação que compõe um ato político de existência. Esses atos só mostram como esses grupo estão em busca de conquista de espaço, tanto político, quanto social e civil.

--

--