13 reasons why e as violências de ser mulher: fitas 3 e 4

Carol Patrocinio
Polemiquinhas com a Carol Patrocinio
8 min readApr 20, 2017
Ninguém precisa ter certeza de nada para ridicularizar alguém. O olhar das pessoas, tanto vítimas quanto agressores, diz muito!

[Esse é o segundo texto de uma série sobre os temas abordados em “13 reasons why” — o primeiro está aqui: fitas 1 e 2. A cada dois dias úteis um novo texto será publicado. O próximo texto sai na terça-feira, dia 25 de abril: marque na agenda!]

Cuidado: temos spoilers nas próximas linhas.

Mulheres competem entre si. Quem nunca ouviu essa frase? A gente ouve tanto que em dado momento, mesmo inconscientemente, passa a se perguntar se ela não é verdadeira. E quando a gente se faz essa pergunta pela primeira vez tudo em nós passa por uma transformação. É como se as cores mudassem e a gente enxergasse diferente tudo o que sempre esteve ao nosso redor.

A partir daí a gente esquece que aquela outra mulher tem muito mais em comum com a gente do que podemos imaginar ou ignorar. A gente olha pras coisas que ela conquistou e a gente não, pros pontos da vida dela que queria que fossem daquele jeito na nossa, pras vitórias que ela teve e a gente desejaria. A gente esquece totalmente do medo, das dores, dos problemas que todas nós enfrentamos apenas porque nascemos assim: mulheres.

E então chegamos ao tema que ao mesmo tempo que une muitas pessoas no feminismo, afasta outras: a sororidade. Muito se fala sobre como as mulheres precisam se ajudar, precisam estar lado a lado e ignorar as diferenças. Na teoria é lindo, na vida real não é bem assim. Existem pessoas boas e ruins — e muitos outros tons entre esses extremos. Em cada um desses pontos existem mulheres, assim como existem homens e pessoas não-binárias. Sororidade, pra mim (que sou porta-voz apenas de mim), não é fingir que mulheres não erram e passar a mão em suas cabeças, é não julgar pessoas apenas porque elas são mulheres. Hannah não teve isso.

Fita 3 — Lado A: Você virou o foco para esconder problemas das outras pessoas

Quem nunca foi a dona do cigarro encontrado na bolsa da amiga? Ou a que comprou as bebidas? Talvez a que tenha ficado com os caras e a outra só estava acompanhando? A gente joga a culpa das coisas pras outras pessoas sem pensar duas vezes quando é pra salvar nossa própria pele. Podemos chamar de ser cuzonas ou podemos dizer que é instinto de sobrevivência. Você escolhe a desculpa que lhe cai melhor.

O ponto aqui não é apontar dedo pra todas as pessoas que já fizeram ou passaram por isso — que acredito ser 90% das vivas -, mas entender como tudo isso pode ter desdobramentos terríveis.

Quando você, por exemplo, tem medo de ser tirada do armário e diz que não é você, mas a fulana, que é sapatão. Antes de tudo é importante deixar claro uma coisa simples, mas de difícil entendimento: NINGUÉM TEM QUE SAIR DO ARMÁRIO. É importante pra causa? É. É transformador pra quem sai? É — pro bem e pro mal. Mas é uma decisão que cada pessoa precisa tomar sozinha. Tirar alguém do armário — aliás, que expressão horrível, né? — é obrigar alguém a falar sobre o que não quer, não está preparado ou sabe que pode trazer frutos péssimos, podres e de gosto extra amargo.

A lesbofobia não é brincadeira. Quando um homem gay anuncia ao mundo que é gay ele não deixa de ser homem. Sabe o que isso significa? Que quando uma pessoa olha pra ele não sabe a orientação sexual e ele segue tendo poder social. São estruturas fortalecidas por milhares de anos e que não se quebram com facilidade. A mulher… bem, a mulher já está num cantinho mais abaixo da pirâmide de poder. Quando ela diz que não curte homens (que, de acordo com essas mesmas estruturas, são as coisas mais maravilhosas que existem na face da terra) ela cai ainda mais na pirâmide. É como uma ofensa, como um problema que precisa ser resolvido. E muitas vezes uma tentativa de resolver, por exemplo, é o estupro corretivo.

Você se assumiria? Talvez não. Porque dói e dá medo. Mas você jogaria sua amiga na fogueira?

Se uma mulher lésbica é vista como alguém que não enxerga a perfeição masculina, uma mulher bissexual é vista como fogosa. Ela fica com homens e mulheres porque tem tanto tesão dentro dela que não consegue se controlar. E aí sabe o que essa mulher é? Uma vadia. E, bem, já falamos sobre o peso de ser vadia no texto 1. É quase como se todos os caminhos nos levassem a um mesmo lugar de muita dor e sofrimento.

Fita 3 — Lado B: Você sofreu abuso físico

Cada vez que uma mulher sai na rua ela escuta um comentário que não pediu. Ela pode ser branca, preta, alta, baixa, magra, gorda, cisgênero, transgênero, travesti, estar com roupa justa, larga, saia, moletom, burca ou nua. Toda mulher ouve — ou usa fones de ouvido em volume bem alto — comentários indesejados.

Se esses comentários são feitos por desconhecidos todos os dias, com todas as mulheres, ao caminhar em espaços públicos, não é surpresa que todos nós somos ensinados, direta ou indiretamente, que isso é algo normal.

Quando falar o que você acha do corpo de uma desconhecida é algo banal, qual o sentimento que uma pessoa tem quando conhece alguém que é famosa por sua “vadiagem”? Aquela pessoa se torna pública. Não importa se é verdade ou não, não importa o que ela pense ou diga, não importa como ela se sente: ela está ali para o prazer alheio.

Pensa em quantas pessoas desconhecidas colocam a mão na barriga de uma grávida. (Eu já estive nesse papel duas vezes e posso dizer que chega a ser desesperador). Independente de acharem que é um toque “com amor”, é um toque de uma pessoa desconhecida no seu corpo. Se isso já nos deixa desesperadas, imagina um desconhecido colocar a mão no seu seio, na sua bunda ou na sua vagina? Lugares que a vida toda você foi ensinada que ninguém deveria tocar?

E sabe o que acontece quando a gente é colocada em uma situação assim? A gente trava. É claro que tem quem consegue reagir na hora, mas a maior parte de nós, ensinadas que mulher legal não faz escândalo, fica quietinha. Ou reage depois.

“Mas, Carol, as marcas disso são tão pesadas assim?” São.

Vou contar uma história da minha vida: quando eu tinha entre 9 e 11 anos um garoto do prédio em que eu morava passou a mão na minha bunda. Não foi só isso. Ele chegou por trás de mim, eu estava andando, ele colocou a mão entre minhas pernas até a frente e passou o dedo médio da minha vagina até o cóccix. Eu travei e ele seguiu a vida. Naquele dia eu me senti culpada porque estava com um shorts curto. Ninguém me falou nada — nem tinha como, afinal eu não contei pra ninguém -, mas eu sabia que me sentir bonita e gostosa naquele shorts (nessa idade a gente já quer performar como uma mulher, apesar de ser criança) não podia ser coisa boa. Dali pra frente minha relação com os caras, com os toques, com as roupas e com o jeito que as roupas me faziam sentir mudou pra sempre. Se eu tivesse sido estuprada ali (e hoje nosso código penal vê esse toque como estupro) não teria dito nada a ninguém porque tinha certeza que a culpa era minha e de que ninguém me defenderia. Não era.

Fita 4 — Lado A: Você pediu a ajuda e te viraram as costas

A única fase da vida em que é fácil pedir ajuda é na infância. Depois disso, da pré-adolescência até a velhice as coisas ficam complicadas. Talvez porque somos levados a acreditar que temos que resolver tudo sozinhos, talvez porque não queremos que os outros saibam que temos problemas.

Na adolescência, quando a gente tenta parecer fortes, decididos e independentes isso tem um peso ainda maior. Conseguir falar sobre como a gente se sente, como as coisas têm importância e nos marcam é um desafio. Ter isso ignorado é quase como desaparecer, como ser invisível mesmo sem deixar de existir. E esse lugar aí de não estar mais presente mesmo estando cria certezas destrutivas em qualquer cabeça.

É claro que existem mil motivos para que uma pessoa ignore a outra. Pode ser porque ela não se importa. Pode ser porque ela é simplesmente egocêntrica demais para notar a questão que está abaixo do seu nariz. Ou pode ser, dentro milhares de outras coisas, que ela conheça aquela dor muito melhor do que quer que alguém descubra.

Nenhum dos motivos torna menos doloroso ser ignorado. Porém na vida real não existe só bem e mal. Não é assim simples. Na vida real o bem e o mal estão grudados, juntos em um só corpo, têm uma só forma. O bem pode ser o mal e vice-versa. As coisas vão muito além desse maniqueísmo.

A série mostra isso sem deixar dúvidas — por mais que diversos textos por aí digam o contrário. A história nem sempre é como a gente se lembra ou como a gente conta. Todas as histórias tem mais de um lado e nem por isso as marcas que elas deixam são menores ou as consequências são menos graves.

Fita 4 — Lado B: Seus sentimentos mais íntimos foram expostos e ridicularizados

Se pedir ajuda é difícil, imagina dizer o que a gente sente? Imagina, então, dizer o que a gente sente de forma lírica, por meio de metáforas, e as pessoas usarem isso para reforçar tudo aquilo que já te fizeram acreditar sobre você?

“Ah, mas o poema de Hannah que foi publicado não tinha assinatura”. E isso não muda nada. Sabe por quê? Porque não é sobre os outros, é sobre ela. Ninguém precisa saber a autoria do poema para falar sobre ele, para dar sua opinião “real” e ela não precisa assumir que aquilo tudo é sobre ela para sentir cada comentário como uma facada.

A gente não precisa ir longe. Quantas escritoras já foram chamadas de vagabundas por causa da sua obra? A jornalista Eliane Brum escreveu sobre ser ateia, em 2011, e foi chamada de vagabunda pelo pastor Silas Malafaia.

Mulheres não são encorajadas a tentar, muito menos a errar. A gente é ensinada a sempre fazer o certo, ser perfeita, acertar. Não importa a área da vida, não importa o assunto. A gente tem que ser a super mulher. E não a somos. O fracasso nos coloca em lugares assustadores. E definir fracasso aqui é impossível: pode ser o que você sente, o que te dizem ou o que querem que você pense. Tudo depende de onde você está naquele momento.

Mas isso é motivo para desistir de tudo? Não sei. Porque não é uma coisa só, não é apenas uma violência. É como machucar um lugar já machucado. A ferida não cicatriza. Podem entrar bichos, colocar ovos, transformar aquilo em um caos que pede amputação. O problema é que quando as coisas são internas a gente não consegue ver os ovinhos apodrecendo a carne. Quando a gente sente o cheiro de podre já pode ser tarde demais.

[Esse é o segundo texto de uma série sobre os temas abordados em “13 reasons why” — o primeiro está aqui: fitas 1 e 2. Você acompanha todos os textos no Polemiquinhas com a Carol ou no Facebook]

O próximo texto sai na terça-feira, dia 25 de abril: marque na agenda!

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