13 reasons why e as violências de ser mulher: fitas 1 e 2

Carol Patrocinio
Polemiquinhas com a Carol Patrocinio
6 min readApr 18, 2017
Os sinais de que alguém não está bem, algumas vezes, não existem, mas você sempre pode olhar as violências que essa pessoa sofre. A resposta pode estar ali.

[Esse é o primeiro texto de uma série sobre os temas abordados em “13 reasons why”. A cada dois dias úteis um novo texto será publicado. O segundo texto, sobre as fitas 3 e 4, já saiu!]

Há spoilers aos litros.

Essa não é mais uma crítica sobre “13 Reasons Why”, apesar do título da série aparecer no título do texto. Esse é um texto sobre como as violências sofridas pelas mulheres destroem nossa relação com o mundo, com nós mesmas e nos levam a caminhos questionáveis.

Um ponto importante antes de começar essa conversa é avisar que haverá gatilhos. Não porque falte cuidado com quem os têm, mas porque a gente precisa discutir as coisas e fortalecer umas às outras para que esses gatilhos não se tornem também de outra pessoa. A única maneira que conheço para fortalecer as pessoas é falar sobre os assuntos. Se você tem questões muito fortes com suicídio, estupro, violências como bullying e desumanização sugiro que leia esse texto com a companhia de uma pessoa de confiança, assim como faça o mesmo se quiser assistir a série que gerou toda essa discussão.

Nesse post nada é gráfico, mas nossa mente e nossa memória fazem esse papel com eficácia muito maior do que qualquer imagem criada poderia fazer. Cuide de você e das pessoas ao seu redor. Peça ajuda quando sentir necessidade. Lembre que você nunca está sozinha.

Tirar a própria vida ainda é um assunto tabu na nossa sociedade. A palavra suicídio é vista como qualquer coisa menos uma opção. Aqui eu escolho a encarar como uma eutanásia para mentes e almas doentes — deixando claro que não é um incentivo, apenas um lugar de respeito a quem escolheu esse caminho. Se as doenças do corpo merecem atenção e respeito, isso seria o mínimo a se esperar das doenças emocionais — e físicas não aparentes, já que depressão, síndrome do pânico e outras questões presentes nas vidas das pessoas neuroatípicas se manifestam, também, no corpo.

1 — A série

Não é fácil assistir “13 Reasons Why” quando se é mulher, que é do lugar em que falo. Talvez não por ser gráfica, porque se fosse um livro nossa cabeça o transformaria em imagens, talvez não pelo tema tratado, mas por serem violências tão presentes nas nossas vidas que algumas já se tornaram banais ao olhos dos outros. A dor não é apenas pela personagem, mas por cada uma de nós, por nossas amigas, nossas familiares e nós mesmas, por entender que o inadmissível segue acontecendo.

Aqui vou passar por cada razão da maneira que eu as enxerguei, da maneira que elas fizeram sentido para mim. Talvez não seja assim que outras pessoas tenham encarado, mas esse é um texto que traz um único ponto de vista: de uma mulher não especialista em psiquiatria, suicídio ou saúde mental.

Fita 1 — Lado A: Você deu um beijo, disseram que tinha ido além

Se você está lendo isso e faz parte do grupo dos adultos que esqueceram como é ser adolescente, preciso te lembrar de uma coisa: na adolescência tudo se transforma em algo imenso para quem vive e para quem está ao redor.

“Perder” a virgindade é um assunto extremamente tabu. As meninas não falam sobre isso até certa idade, não assumem sua curiosidade ou desejo. Os meninos têm medo e são levados por adultos a apressarem a primeira vez com qualquer pessoas que esteja disposta a isso. Ao mesmo tempo mil coisas estão acontecendo dentro de você e você não consegue nem nomear todas elas.

Pode parecer pequeno hoje, depois de uma idade em que beijos levam ao sexo quase como um trampolim, mas não era assim aos 16 anos e não é assim para quem tem 16 anos. A fama que algo assim — seja sexo ou preliminares — cria é carregada para sempre. Pela menina. Em pouco tempo todo mundo esquece que aquele menino foi o primeiro a fazer isso ou aquilo, mas a menina… Para sempre ela será a vagabunda. E os desdobramentos de ser uma vagabunda são muito maiores do que se imagina.

Fita 1 — Lado B: Seus melhores amigos te deixaram de lado

Na adolescência a gente quer, mais do que tudo, fazer parte de um grupo, se sentir aceita e querida. (Vamos fingir que isso só acontece na adolescência.) Mas ao mesmo tempo você sabe como é difícil ter amigos: é fácil conviver com várias pessoas, para alguns mais fácil do que para outros, mas ter amigos, pessoas que te escutam, que te respeitam, entendem e compartilham das suas angústias… Bem, esse desafio é muito maior — na fase adulta também.

Perder os amigos, independentemente se eles tenham se tornado um casal ou não, é sempre doloroso. Mais do que isso: é como se seu chão tivesse sido retirado de um segundo para o outro.

Nessa fase você está em dor constante, então qualquer momento é o pior momento para estar sozinha.

Fita 2 — Lado A: Você está em uma lista que fala sobre seus atributos físicos

Meninas gostosas sempre são vagabundas. Essa afirmação é assustadora, né? Mas é isso que nós, mulheres e homens, somos ensinados durante toda a vida. Por que uma mulher teria um peito grande se não fosse para receber olhares masculinos? Por que uma mulher teria bunda grande se não fosse para deixar homens com tesão? Ninguém pensa na biologia, ninguém pensa que corpos são diferentes simplesmente porque não são iguais. A gente, enquanto sociedade, cria respostas sem sentido para dúvidas extremamente simples.

Se não é simples lidar com isso sem aparecer em uma lista, imagina quando seu nome está ali, estampado, quase um convite para que desconhecidos observem seu corpo, deem sua opinião não requisitada e a tornem um objeto para o prazer alheio.

Em 2016 um grupo de meninas foi colocada em uma lista de “Mais Vadias” em escolas do Grajaú, Parelheiros e Embu das Artes. A lista, que rodava por escolas, foi transformada em uma pichação em um local de grande passagem. Uma das meninas disse que o argumento para que ela estivesse na lista foi “que eu me achava e pagava de gostosa na escola”. É importante lembrar que em uma sociedade como a nossa ser vadia não fala apenas sobre nossa vida sexual, mas sobre não cumprir expectativas alheias — escrevi sobre isso no texto “A próxima vadia é você”.

Algumas dessas meninas tentaram suicídio, outras largaram a escola. Se a gente for pensar que a educação é um direito de todos e que é assegurada pelo Estado, temos aqui um problema seríssimo de evasão escolar porque o ambiente não é seguro — ah, a segurança também é responsabilidade do governo — e sabemos quem poderia/deveria ser responsabilizado em primeiro lugar.

O ponto aqui é: apesar de acontecer com frequência, essa não é uma atitude que pode ser vista como brincadeira e os efeitos que esses tipo de listas têm são devastadores.

Fita 2 — Lado B: Você tem um stalker

O primeiro passo é entender que perseguir alguém não é uma atitude elogiosa. Você não se sente mais bonita, mais querida ou mais importante. O que você sente é medo. Com o tempo você passa a desenvolver paranoia, sentir-se observada, não tem mais liberdade porque você nunca sabe o que será visto pelos outros.

Aqui a gente também precisa lembrar que divulgar imagens sem autorização de quem aparece nelas é crime, ainda mais imagens que têm cunho sexual. São inúmeros os casos de mulheres adultas que desistiram da vida porque tiveram imagens suas divulgadas sem autorização. Imagina qual o peso disso para uma adolescente?

Independente de alguém poder provar ou não que é você, a sensação de poder ser descoberta a qualquer momento te acompanha o tempo todo. Não preciso nem dizer que isso não é saudável, né?

Muitas vezes as violências que impomos a nós mesmas são uma antecipação do que acreditamos que pode acontecer. Não é racional, não é bonito e não é delicado: é a vida real e ela é impulsionada a cada interação social que temos ou deixamos de ter.

Esse é o primeiro texto de uma série sobre os temas abordados em “13 reasons why” (Os 13 porquês, em português). Você acompanha todos os textos no Polemiquinhas com a Carol ou no Facebook.

O segundo texto, sobre as fitas 3 e 4, já saiu!

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