O dia que escolhi morrer

Cecilia Benazzato, PhD
5 min readApr 26, 2024

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Atenção, conteúdo sensível: suicídio, abuso psicológico, abuso de drogas.

Capítulos 1 e 2 aqui.

Capítulo 3 — O médico e o monstro.

Eu estava sentada de frente para o médico, enquanto minha mãe estava de pé ao meu lado olhando para qualquer outra coisa. Me recordo de ver inúmeros diplomas pendurados na parede nas mais diversas línguas, sendo o de destaque o da residência de psiquiatria em uma das maiores universidades da América Latina. Era uma sala grande e branca, que não combinava com a baixa estatura do médico e seu cabelo que parecia ter saído de um programa de auditório do Silvio Santos durante os anos 80.

O diálogo inicial desse primeiro encontro me soou como uma enorme incógnita. Eu não entendia metade dos termos que estavam sendo ditos, mas me lembro vagamente de frases como “meus horários são complicados por conta do meu atendimento no ambulatório psiquiátrico” e “pacientes em crise são complicados mesmo”. Após uma série de frases trocadas entre minha mãe e o psiquiatra, ele finalmente direciona seu olhar para mim e pergunta:

- Você entende por qual motivo você esta aqui, Cecília?

Da minha boca não saia sequer ar, quanto menos resposta. Eu não me sentia doente. Eu não reclamei de qualquer mal-estar para minha mãe, pai, família, amigos, escola. Motivo de estar ali? Eu gostaria que me explicassem, e não que me perguntassem. Eu estava apavorada.

O psiquiatra, então, pede para minha mãe se retirar da sala e nos dar um momento à sós. A essa altura, eu não queria ficar sozinha com ninguém, muito menos com uma pessoa que tem o título de psiquiatra, que eu não fazia ideia do que era capaz de fazer, mas sabia que havia uma pessoa na sala de espera completamente desesperada de estar na companhia dele. Minha mãe saiu da sala, e o diálogo a seguir aconteceu:

- Cecília, o que se passa? Agora que sua mãe saiu, você pode me contar tudo que quiser, que será um segredo entre nós.

Eu definitivamente não queria ter confidências com uma pessoa que eu conheci a 10 minutos atrás. Confiar em alguém sempre foi algo muito difícil para mim. Por conta dessa relação complicada com a família e o bullying que eu sofria na escola, eu tinha medo de confiar nas pessoas. Não apenas medo de não respeitarem a minha confiança com aquela pessoa, mas eu tinha medo do julgamento. O fato de ser julgada pela minha família em toda discussão me fez entender que falar o que eu sentia levaria ao julgamento, e essa necessidade de aprovação da pessoa que criou o julgamento a levaria a comentar meu segredo ou sentimento com outras pessoas. Eu me sentia em alerta o tempo todo. E, infelizmente, isso ainda é algo muito presente nas minhas relações, me deixando sempre desconfortável e em uma constante discussão interna antes de conseguir me abrir com as pessoas.

- Me conte como é a relação com sua família. Sua mãe comentou que você prefere ficar sozinha a ter momentos com a família. Você se sente triste com frequência?

E essa pergunta foi a perfeita armadilha para a enorme sucessão de abusos medicamentosos que sofri na minha vida começando com os meus 13 anos até os meus 30 anos de idade.

A tristeza era uma constante na minha vida. Eu havia perdido minha avó e lidava com o luto pela primeira vez na minha vida sem qualquer suporte emocional, meus pais não me ouviam e me tratavam como uma pessoa que não merecia atenção pois eu era “louca” e “preferia ficar longe deles do que com eles”, minha irmã ficava do lado dos meus pais a qualquer situação e isso aumentava a minha sensação de solidão, eu sofria bullying na escola e, além de tudo isso, estava com meu cérebro completamente desbalanceado e corpo explodindo em hormônios devido a um fato que todos nós um dia vivemos: a adolescência. Curiosamente, nenhum desses fatores foram levados em consideração quando eu disse “sim” de forma tímida e baixa, sem sequer olhar para o médico.

Essa resposta fez o psiquiatra pedir para minha mãe retornar à sala e, prontamente, iniciou um longo discurso sobre depressão enquanto falava nomes de medicamentos, formas de administrar, dosagens, efeitos colaterais e quanto tempo em média o remédio começava a fazer efeito. Todo esse discurso foi feito em um tom de “tenha paciência” para minha mãe, não para mim.

Lítio para depressão. Diazepam para crises nervosas. Retorno em 3 meses. Esse foi o pacote que ganhei logo na primeira consulta com o psiquiatra, onde minha única interação com ele foi um “sim” tímido.

Os dias seguintes ao início desses medicamentos me trouxeram sentimentos e pensamentos que foram apagados pelas drogas. Eu sentia muita coisa, mas meu cérebro não era capaz de processar. Era como se eu permanecesse anestesiada o tempo todo. Era uma sensação de coma dos meus sentimentos. Se você já leu relatos de pessoas que permaneceram em coma induzido, muitas relatam que conseguiam ouvir e entender parcialmente o que acontecia em volta, mas não conseguiam reagir por conta da medicação que era administrada para manter o coma. Era exatamente esse sentimento que eu tinha 24 horas por dia.

Por um momento, eu acreditei que eu poderia me curar e ser a filha que meus pais queriam. Que eu não seria mais motivo de vergonha para minha família. Que eu seria aceita. Que finalmente a loucura iria embora, afinal eu não sentia mais nada. O problema era sentir e comunicar os meus sentimentos, então o “problema” havia sido eliminado. Até o dia que eu senti dores nas mamas e, eu com 13 anos, passei a lactar.

A experiência de produzir leite e amamentar é algo natural e esperado por uma mulher quando uma criança nasce. O ato de amamentar é único e cria uma conexão importante entre mãe e filho. Mas para eu de 13 anos, trancada no banheiro de casa, com leite saindo do meu peito era a cena mais desesperadora da minha vida. Eu não sabia se chamava minha mãe, se chorava, se engravidei do Espírito Santo, eu não sabia absolutamente nada. Após muito desespero, chamei minha mãe, que também se desesperou e foi ler a bula dos medicamentos que eu tinha começado a tomar. Após trocar informações com outras pessoas e o psiquiatra, todos chegaram no consenso que a dosagem que eu estava tomando era alta, explicando a galactorréia (produção de leite quando a pessoa não esta amamentando) e por isso, eu precisava trocar a medicação.

E foi aqui que eu passei a desenvolver um ódio por toda a situação e todos os envolvidos. Não havia medicação que me deixasse anestesiada o suficiente para não sentir o turbilhão de sentimentos que invadiu o meu cérebro. Foi maior do que eu conseguia compreender e aceitar. Eu me sentia invadida (afinal, meu seio foi examinado por muitas pessoas até a constatação do fato), me sentia violada, me sentia envergonhada, culpada, entre muitos outros “tadas”.

Ali, surgiu pela primeira vez o pensamento de que “morrer seria melhor do que viver tudo isso pelo resto da vida”. E logo depois, eu comecei a buscar maneiras de acabar com o sofrimento o mais rápido possível.

Capítulo 4 — O céu e o inferno têm a mesma porta de entrada, parte 2.

-em breve-

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Cecilia Benazzato, PhD

Biomédica e neurocientista. Brasileira. Desbravando culturas e línguas para obter mais conhecimento e ser feliz em meio a atual Ciência.