A metamorfose de Hansi Flick

Clarissa Barcala
23 min readDec 20, 2022

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Apesar da eliminação, a Alemanha foi um dos times mais ricos taticamente durante a Copa do Mundo. Foto: Reprodução/Twitter DFB.

A eliminação precoce da Alemanha, que acabou caindo na fase de grupos da Copa do Mundo pela segunda vez seguida, foi bastante sintomática e expôs os problemas que a Mannschaft enfrenta desde o ciclo para a Copa da Rússia. As transições defensivas problemáticas de um time que empilha jogadores à frente da linha da bola para atacar e acaba se desprotegendo atrás, além de uma falta de contundência da equipe em ambas as áreas, acabou custando (mais) um mata-mata de Copa do Mundo para os alemães.

No entanto, apesar de escancarar os problemas, a Copa do Qatar também mostrou por que Hans-Dieter “Hansi” Flick é uma das grandes referências em organização ofensiva no futebol mundial. O treinador já mostrava sua característica ultraofensiva no Bayern de Munique, que sob Flick ganhou a Champions League com recorde de gols marcados (goleando o Barcelona por 8 a 2) e conquistou a Bundesliga de 19/20 marcando 100 gols, apenas 1 a menos do que o recorde histórico do campeonato (que pertence ao Bayern de Gerd Müller, nos anos 70).

A Alemanha foi líder em praticamente todos os indicadores ofensivos durante a fase de grupos. Dentre as 32 seleções, a Mannschaft liderou em finalizações, finalizações a gol e grandes chances criadas. A Alemanha finalizou 69 vezes (26 contra o Japão, 11 contra a Espanha e 32 contra a Costa Rica) e criou 17 grandes chances. Além disso, manteve uma média de posse de bola de 59%.

Gráfico que relaciona grandes chances e finalizações por jogo das seleções na fase de grupos. Observe a posição da Alemanha. Foto: Reprodução/Twitter DataFla.

Uma estatística que resume bastante o poderio ofensivo da Alemanha é a de gols esperados (ou xG, sigla em inglês para expected goals). Essa estatística avalia a “probabilidade de um chute acertar um alvo e/ou virar um gol”. Ela mapeia a posição e condição de uma finalização e calcula sua probabilidade de virar um gol, dando-a um valor de gol esperado (xG) através de um número de 0 a 1. Assim, os gols esperados avaliam a qualidade dos chutes de uma partida e, a partir disso, calculam quantos gols “deveriam” ter sido marcados.

A Alemanha acumulou, ao longo da fase de grupos, assustadores 11,12xG, sendo 3,53xG contra o Japão, 1,24xG contra a Espanha e 6,35xG contra a Costa Rica. Em todas as suas partidas, a Alemanha superou seu oponente em gols esperados e, somente no jogo contra a Costa Rica, criou mais xG que 29 das 32 seleções em seus 3 jogos na fase de grupos. Para mensurar o tamanho do poder ofensivo da Alemanha de Flick a partir dos gols esperados, deixo aqui algumas comparações: a Alemanha acumulou 3,15xG contra o Brasil no 7 a 1, o Bayern acumulou 5,59xG no 8 a 2 contra o Barcelona e a Espanha acumulou 3,79xG no 7 a 0 sobre a Costa Rica. No final da Copa do Mundo, os 11,12 gols esperados da Alemanha a deixaram em terceiro lugar no quesito, atrás apenas das finalistas França (14,38xG) e Argentina (16,36xG). Ambas disputaram 7 jogos (com 2 prorrogações para a Argentina e 1 para a França), enquanto a Alemanha jogou apenas 3.

Os problemas defensivos dos times de Hansi Flick não são segredo algum, e não é minha intenção varrê-los para debaixo do tapete. Eles existem, são graves e custaram uma participação no mata-mata para a Seleção Alemã. No entanto, é fácil perceber que, se Flick contasse com uma contundência ligeiramente maior de seus atacantes na hora de finalizar, a Alemanha com certeza ainda estaria na Copa do Mundo. A demora da Mannschaft em matar os jogos, mesmo produzindo tanto, foi seu principal calcanhar de Aquiles. Ficar no mundo do “se” no futebol é pouco produtivo, mas se a Alemanha conseguisse converter melhor o que criou no primeiro tempo do jogo contra o Japão, dificilmente levaria a virada na segunda etapa e provavelmente passaria de fase. Além disso, se a Alemanha convertesse o que criou no segundo tempo do jogo contra a Espanha, talvez conseguisse virar e melhorar sua situação no grupo. Por fim, se a Alemanha tivesse, no jogo contra a Costa Rica, a mesma eficácia que o Bayern do próprio Flick teve no 8 a 2 sobre o Barcelona, talvez o time passasse a Espanha no saldo de gols e prosseguisse para o mata-mata. O fato é que nada disso aconteceu, mas Hansi Flick deu todas as armas a seus jogadores de ataque para que acontecesse. Ele, em três cenários diferentes, usou três estratégias diferentes e teve sucesso em cada uma delas. Aqui, vou destrinchar as distintas organizações ofensivas da Alemanha de Hansi Flick na Copa do Mundo.

Subjugar seu adversário a partir da posse: a mistura posicional/funcional contra o Japão

Escalação da Alemanha no jogo contra o Japão.

A estreia da Alemanha na Copa de 2022 não era nem um pouco cômoda, embora talvez parecesse à primeira vista (ao final da partida, percebeu-se que foi ainda mais incômoda do que o previsto). O Japão tinha um time muito jovem com uma proposta muito clara: os japoneses não faziam questão de manter a posse de bola por períodos longos, mas isso não significava que eles iam se trancar em seu próprio campo, enfiando 10 jogadores dentro da área e aguardando uma chance de contragolpe cair do céu. Pelo contrário: a marcação japonesa era alta, agressiva e digna de um time que quer dar as cartas do jogo.

O Japão era, talvez, o pior encaixe de jogo que a Alemanha poderia enfrentar. Os japoneses estavam dispostos a morder os alemães o tempo todo e deixá-los desconfortáveis com a posse em todo momento para que a bola fosse recuperada nas faixas mais perigosas do campo. Bola recuperada, a instrução era clara: os japoneses deveriam disparar contra a Alemanha, aproveitando que a Mannschaft ataca com muitos jogadores e acaba deixando espaços nas costas da defesa. Para isso, o Japão não adiantava a pressão até os zagueiros: preferia dar um passo para trás e cercar os volantes, principalmente Kimmich. O jogador do Bayern é um autêntico “motorzinho”, que arma o time desde trás e dita o ritmo do jogo. Tirando-o do jogo, a Alemanha já sofreria o primeiro baque.

Assim, a Alemanha tinha um cenário claro pela frente: teria que encarar, a partir da posse, um adversário que não a deixaria confortável momento nenhum enquanto tivesse a bola.

1. A saída de bola em 1+3+2

A Alemanha saía jogando a partir de uma estrutura de 1+3+2: o primeiro passador era o goleiro Neuer, muito ativo nessa fase inicial de disitribuição. À frente do camisa 1, a Alemanha formava um trio de zaga: o lateral-esquerdo David Raum se lançava ao ataque, enquanto o lateral-direito Niklas Süle, zagueiro de ofício, se juntava a Rüdiger e Schlotterbeck para compor um trio de defensores. À frente dos 3 zagueiros, Kimmich e Gündoğan formavam uma dupla de volantes.

Estrutura de 1+3+2 da Alemanha na saída de bola. Neuer (em amarelo) bem próximo dos zagueiros (em preto) para ser uma opção de passe. Mais à frente, os dois volantes (em branco).

A saída de bola da Alemanha começava a indicar o plano de Flick para avançar em campo: para fazer a bola progredir, o time deveria se estruturar em um ataque posicional. A ideia era que a Mannschaft precisava controlar os espaços do campo, espalhando seus jogadores e, assim, dificultando a marcação alta do Japão, que precisaria cobrir um espaço muito grande para cercar a Alemanha. Por isso, a saída de bola alemã era extremamente definida no 1+3+2: nenhum outro jogador de linha deveria descer para se apresentar, pois isso comprometeria o posicionamento dos atacantes e a ocupação dos espaços. Apenas Müller, esporadicamente, baixava para virar uma opção de passe, mas mesmo assim ele continuava na faixa de campo destinada a ele.

Alemanha na saída de bola em seu 1+3+2. Mesmo com dificuldades para superar os 5 japoneses que pressionam, nenhum outro jogador se apresenta para não comprometer o posicionamento do time e a ocupação dos espaços. Observe a distância entre Rüdiger e Schlotterbeck, abrindo um espaço para Neuer avançar mais caso necessário.
Raro caso onde um dos jogadores de ataque (em vermelho) desce um pouco mais para auxiliar na saída de jogo. Müller se apresenta, mas sem deixar sua faixa do campo. Os outros jogadores de ataque, Raum e Musiala, continuam afastados.

2. Progredindo com a bola a partir de um 3–2–5 posicional para manipular os espaços

Estrutura da Alemanha para avançar em campo.

À medida que a bola progredia e a Alemanha ganhava metros, ficava clara a estrutura que Flick escolheu para o jogo: ele alinhou a Mannschaft em um 3–2–5 posicional. A estrutura 3+2 na saída de bola continuava, com o trio de zaga logo atrás da dupla de volantes. No ataque, Gnabry e David Raum abriam bastante o campo, enquanto Havertz, Musiala e Müller se posicionavam por dentro. Havertz era um falso 9: ele partia da posição de centroavante, mas frequentemente recuava e circulava pelo ataque para tirar a referência dos zagueiros. Müller e Musiala atacavam os “meio-espaços” (ou half-spaces, em inglês), faixa do campo entre o lado do campo e o centro.

Com essa estrutura, a Alemanha causava sérias dúvidas ao Japão, que se defendeu em uma linha de 4 por todo o primeiro tempo. Os alemães tinham uma linha de 5 atacantes para atacar 4 defensores, que ficavam em dúvida: se os laterais japoneses marcarem Gnabry e Raum, as faixas centrais ficarão esvaziadas e Musiala, Müller e Havertz terão espaço. No entanto, se os laterais japoneses fecharem para marcar Müller e Musiala, Gnabry e Raum ficarão livres pelos flancos. Assim, partindo de sua estrutura posicional, a Alemanha manipulava os espaços para criar dúvidas nos japoneses e abrir buracos na defesa.

3–2–5 posicional da Alemanha: trio de zaga (em preto — Rüdiger não aparece na imagem), dois volantes (em branco) e cinco atacantes (em vermelho) que espaçam a linha defensiva do Japão.
A linha de 5 atacantes da Alemanha. Observe que Havertz e Müller trocaram de posição, mas a estrutura continuou a mesma: nessa fase do jogo, o mais importante é que as posições estejam ocupadas, pouco importa por quem.
Mais um exemplo onde há troca de posição no ataque da Alemanha (Müller e Gnabry), mas a estrutura se mantém.
Lance que mostra exatamente como a Alemanha manipula os espaços através de seu ataque posicional. Gnabry recebe a bola na ponta. Kimmich está marcado por Endo e Müller (não aparece na imagem) por Tanaka.
Gündoğan avança e atrai a marcação de Endo. Gnabry sai da ponta e vai para o meio, atraindo a marcação de Tanaka. Müller sai do meio e vai para a ponta, mantendo a estrutura de ataque da Alemanha e prendendo Nagatomo. Assim, Nagatomo não pode fechar para aumentar a marcação, pois não pode deixar Müller livre.
Assim, Kimmich fica livre, pois o avanço de Gündoğan atraiu Endo. Tanaka não pode sair para cobrir Endro, pois o movimento de Gnabry o prendeu, e Nagatomo não pode cobri-lo pois a posição de Müller o deixa fixado na lateral. Observe a área (hachurada em preto) que essa movimentação gera: por isso é tão importante que as posições sejam respeitadas, para manipular melhor a marcação japonesa e criar espaços.

3. Ataque funcional e futebol associativo no campo de ataque

Quando a Alemanha consegue se instalar no campo de ataque, Flick muda radicalmente a organização ofensiva do time. Enquanto a Mannschaft usa uma rígida e bem definida estrutura posicional para sair jogando, percorrer metros, progredir com a bola e avançar em campo, a abordagem muda radicalmente quando a tarefa é ocupar o campo de ataque e criar chances de gol. Para isso, Flick parte para uma estrutura funcional e um futebol altamente associativo, usando aglomerações no setor da bola e assimetria para atacar o Japão.

Alemanha em sua estrutura posicional com o trio de zaga (em preto), os dois volantes (em branco) e os atacantes (em vermelho), mas já começa a aproximar mais seus jogadores ao invés de espaçá-los em campo. Observe que 8 jogadores estão na mesma faixa do campo, enquanto Müller e Gnabry nem aparecem.
Postada no campo de ataque, a Alemanha abandona seus conceitos posicionais e se estrutura em um clássico ataque funcional: os dois volantes, Raum, Musiala e Havertz se aproximam muito pelo lado esquerdo. Süle avança em diagonal e se oferece como opção de passe na base da jogada. Até Müller e Süle, os mais distantes da zona da jogada, se posicionam no corredor central.
O ataque funcional da Alemanha também pode se organizar do lado direito: Süle avança para se aproximar de Müller e Gnabry. Kimmich se posiciona na base da jogada, bem próximo da zona da bola. Musiala abandona sua posição mais à esquerda para se aproximar também, enquanto Havertz prende a atenção dos zagueiros. Apenas Gündoğan, na faixa central, e Raum, na ponta esquerda, estão mais afastados.
Mais um exemplo de organização pela direita: Müller, Gnabry, Musiala e Havertz se aproxima muito. Da linha de 5 atacantes, apenas Raum fica mais distante. Kimmich e Gündoğan ficam na base da jogada, sempre bem próximos da bola, e ganham a companhia de Süle.

Aqui, a ideia de Flick é concentrar suas peças ofensivas, dando-as bastante liberdade para se associarem, trocarem de posição, tabelarem, se desmarcarem e infiltrarem, algumas das principais especialidades dos meias que a Alemanha escalou, como Haverz, Musiala e Müller. Essa proximidade dos jogadores potencializa suas interações e dificulta muito a marcação do adversário, que precisa se desdobrar para bloquear tantas linhas de passe e jogadores de ataque.

Além disso, ao concentrar seis, sete e às vezes até oito jogadores em uma mesma faixa de campo, o adversário é forçado a arrastar seu bloco defensivo para aquele setor. Desse modo, a faixa de campo oposta naturalmente fica mais vazia, e um jogador que estiver bem posicionado nesse lugar esvaziado pode ser acionado em uma inversão para aproveitar esse espaço. É a ideia de lado forte e lado fraco, tão comum no futebol funcional: concentro muitos jogadores em um setor do campo, formando o lado forte, e ataco o setor esvaziado (lado fraco) em uma inversão.

Alemanha usando o lado fraco: Müller recebe a bola na ponta direita e os jogadores se começam a se aproximar no setor direito, onde está a bola. Apenas Gündoğan e Raum ficam mais distantes.
A movimentação arrasta todo o bloco defensivo do Japão para o lado direito, liberando o lado esquerdo para Gündoğan e Raum atacarem livres.
A jogada do primeiro gol da Alemanha surge de seu ataque funcional: jogadores se aproximam no lado direito, e a movimentação constante das peças ofensivas dá espaço a Kimmich na origem da jogada. Além disso, o bloco defensivo do Japão se compacta na zona da bola, abrindo a ponta esquerda para Raum explorar.

Somente no primeiro tempo, a Alemanha teve 81% da posse de bola, finalizou 14 vezes e criou 2 grandes chances, além de ter sofrido apenas um chute: um verdadeiro monólogo. Os alemães tomaram conta da bola e esbanjaram seu poder ofensivo, além de não cederem rigorosamente nada ao Japão. Mesmo no segundo tempo, quando o nível da Alemanha caiu e os japoneses cresceram no jogo, o time de Flick ainda conseguiu finalizar mais 12 vezes e criar mais 3 grandes chances, mantendo 66% da posse de bola.

Avançando em uma estrutura posicional e ocupando o campo de ataque em uma organização funcional, a Alemanha mesclou os dois principais modos de se atacar com perfeição, e não saiu de campo com um placar elástico pois acabou tropeçando na falta de efetividade dos próprios atacantes. Assim, o time acabou abrindo uma brecha para tomar a virada do Japão, mas ao assistir o jogo, a sensação que ficou é que a Alemanha teve o resultado nas mãos por muito tempo. Por mais culpa dos jogadores que de Flick, a Mannschaft deixou-o escapar.

Gráfico que mostra as chances criadas de cada equipe: Alemanha em verde e Japão em azul. Cada barrinha é uma chegada ao ataque, e quanto mais alta ela é, mais perigo ofereceu. Até a reação japonesa, observe o número de chances que a Alemanha teve no jogo.

Retorno às raízes: pressão, gegenpressing e contra-ataque contra a Espanha

Escalação da Alemanha no jogo contra a Espanha.

Contra a Espanha, a Alemanha encarava um cenário radicalmente diferente do que contra o Japão. Além de enfrentar a seleção que seria, em tese, sua principal adversária na luta pela liderança do grupo, a Alemanha encontrava um time espanhol altamente confiante. Na rodada anterior, a Espanha tinha exibido um futebol irretocável e, jogando a partir do Jogo de Posição, goleado a Costa Rica por incríveis 7 a 0.

Flick sabia que a Espanha de Luis Enrique era um time praticante do Jogo de Posição, com princípios ofensivos muito influenciados pelo Barcelona do Guardiola. Assim, o adversário da Alemanha queria ter a bola a todo custo e manter a posse por longos períodos de tempo. Frente a isso, Flick não quis brigar com a Espanha para dominar a bola e armou uma estratégia radicalmente diferente da usada contra o Japão.

Para enfrentar a Espanha, Flick voltou quase 20 anos no passado, quando o futebol alemão se desenvolvia sob forte influência de Ralf Rangnick. Aqui, os times da Alemanha se destacavam pela agressividade: marcavam com uma linha alta e de forma muito agressiva para que, ao recuperar a bola, atropelassem seus adversários em um contragolpe. Além disso, eram equipes com uma rápida reação ao perder a bola, saltando para pressionar o oponente e recuperar a posse o mais rápido possível. Para enfrentar a Espanha, Flick abriu mão da posse de bola para pressionar os espanhóis, tirando o conforto deles com a bola, recuperar a posse e atropelá-los em transições ofensivas.

1. Os encaixes de marcação da Alemanha

4–2–3–1 da Alemanha buscava espelhar o 4–3–3 da Espanha: Gündoğan marca Busquets, Kimmich marca Pedri e Goretzka marca Gavi.

Hansi Flick armou a Alemanha em um 4–2–3–1 para espelhar o 4–3–3 que Luis Enrique escolheu para armar a Espanha. O jogo de posse de bola da “Fúria” passava muito pelo tripé de meio de campo: Busquets, o primeiro volante responsável pela saída de bola, e Gavi e Pedri mais avançados. Frente a isso, Flick colocou Gündoğan na posição de “camisa 10”, o meia central do 4–2–3–1, com Kimmich e Goretzka na dupla de volantes. Assim, a Alemanha contava com 3 meio-campistas, mas não em um trio como no 4–3–3: Gündoğan, mais avançado, fazia marcação individual em Busquets, enquanto Kimmich e Goretzka marcavam Pedri e Gavi respectivamente. Desse modo, Flick buscava sufocar o meio de campo espanhol e, assim, comprometer a circulação de bola de seu adversário.

Gündoğan, Kimmich e Goretzka (em branco) fazendo marcação individual em Busquets, Pedri e Gavi (em vermelho).
Câmera aérea mostra exatamente como a Alemanha marcava a saída de bola da Espanha. Müller pressiona os zagueiros, Gnabry e Musiala cortam linha de passe para os laterais e Gündoğan, Kimmich e Goretzka marcam Busquets, Pedri e Gavi. Foto: Reprodução/Twitter Branko NIkovski.

2. Os gatilhos de pressão

Para pressionar a Espanha, a Alemanha usava um mecanismo chamado “gatilhos de pressão”. Os espanhóis construíam sua saída de bola com 6 ou até 7 jogadores: Unai Simón (o goleiro), Rodri e Laporte (os zagueiros), Carvajal e Jordi Alba (os laterais) e Busquets (o volante). Esporadicamente, Pedri ou Gavi baixavam um pouco para ajudar na saída de bola. Além disso, a Espanha espaçava bastante seus jogadores nesse momento; portanto, a Alemanha não conseguiria marcar agressivamente 6 jogadores espanhóis bem espaçados em campo efetivamente, além de se desgastar muito no processo.

Por isso, Flick instruiu seu time a seguir alguns “gatilhos” para iniciar a jogada. Quando a Espanha saísse jogando, os alemães avançariam a marcação e cercariam os jogadores, mas sem pressionar com tanta intensidade ainda. Assim, a Alemanha esperaria pelo momento certo, quando algum jogador espanhol desse um passe ou fizesse um movimento que deixasse a posse de bola ligeiramente mais exposta. Esse seria o “gatilho” que iniciaria a pressão alemã.

Normalmente, a Alemanha reforçaria a marcação em um lado do campo e deixaria o outro sem marcadores. Isso era proposital, pois forçaria a Espanha a jogar por aquele lado. Assim que a Espanha caísse nessa “armadilha” (normalmente recuando para o goleiro ou passando para um zagueiro ou lateral), o gatilho era acionado: a Alemanha começava sua pressão agressiva, apertando a marcação e forçando erros do adversário. Quando a posse espanhola ficava um pouco mais vulnerável, era a hora de “atacar” e recuperar a bola.

Situação de saída de bola da Espanha. Laporte recua a bola para Unai Simón, goleiro, e Alemanha sobe sua linha de marcação. Observe que o bloco de marcação alemão está ligeiramente mais à direita, bloqueando o lado esquerdo da Espanha. Müller corta a linha de passe para Laporte, Gnabry marca Alba e Gündoğan marca Busquets. Até Musiala está mais pela direita; isso força a Espanha a sair jogando pelo seu lado direito, com Rodri e Carvajal, que estão livres. Alemanha monta sua armadilha.
Unai Simón passa para Rodri: é o gatilho da Alemanha para pressionar. Musiala dobra a marcação em Rodri junto de Müller, que também corta a linha de passe para Unai Simón. Busquets não é uma opção, pois é marcado por Gündoğan. Gavi também não: está marcado por Goretzka, e a linha de passe para ele está bloqueada por Musiala. Rodri também não pode passar para Carvajal, pois Raum saltou para pressioná-lo.
Todas as opções de passe curto estão bloqueadas, e Rodri é forçado a um passe longo. Assim, a Alemanha consegue recuperar a posse de bola.
Outro lance: Espanha começa a jogada do lado esquerdo e Alemanha corta as opções de passe curto por lá, “liberando” o lado oposto.
Recuo de Laporte para Unai Simón é o gatilho de pressão. Müller avança no goleiro espanhol, cortando a opção de passe para Laporte, e Musiala avança em Rodri. Pedri está marcado por Goretzka e Busquets, por Gündoğan. Assim, Unai Simón é forçado a tentar um passe mais longo para Carvajal.
Unai Simón passa para Carvajal, mas Raum mais uma vez salta para marcar o lateral espanhol. Os dois dividem a boa, Raum ganha a disputa e a Alemanha consegue uma recuperação de bola no campo de ataque.
Outro lance: aqui, o gatilho da pressão acontece com Laporte. O zagueiro recebe a bola e, ao invés de passá-la, prefere conduzi-la. Isso deixa a posse de bola mais vulnerável e ativa a pressão alemã.
Pedri recebe a bola em más condições, pressionado por Kimmich e com Müller e Gündoğan triplicando a marcação em cima dele.
Pedri é forçado a recuar para Unai Simón, que não tem opções de passe curto. Mais uma vez, a única opção é Carvajal.
Carvajal recebe e Alemanha dobra a marcação nele, com Raum e Musiala. Mais uma vez, todas as opções próximas estão marcadas: Musiala corta a linha de passe para Rodri, Gündoğan está marcando Busquets e Goretzka está marcando Gavi. Observe que Laporte está apenas “vigiado” por Gnabry, logo parece livre: outra armadilha para a Alemanha
O passe de Carvajal para Laporte é outro gatilho de pressão: Gnabry avança em Laporte, antecipa a jogada e corta o Passe: Alemanha recupera a bola no campo de ataque, quase dentro da área.

3. Pressionar, recuperar e acelerar: a Alemanha “rolo compressor”

A marcação agressiva da Alemanha tinha um principal objetivo: recuperar a bola em faixas avançadas do campo e, assim, poder armar um contra-ataque em uma zona muito mais perigosa, encurtando a distância que seria percorrida caso a Alemanha recuperasse a bola na defesa. Além disso, uma recuperação de bola no campo de ataque encontraria uma Espanha desorganizada, se preparando para atacar, o que potencializaria ainda mais o contra-ataque alemão.

Alemanha pressiona a Espanha e corta as opções de passe mais próximas: Carvajal é marcado por Gnabry, Kimmich persegue Koke, Füllkrug marca Laporte e Sané pressiona Rodri, com a bola. Musiala está cortando a linha de passe para Busquets e Gavi e Jordi Alba fica “livre”: mais um gatilho.
Rodri tenta o passe para Alba: é o gatilho para a pressão. Musiala abandona a marcação de Busquets e salta para interceptar o passe.
Musiala corta o passe e a Alemanha dispara em velocidade com Gnabry, Füllkrug e Sané. A Espanha tem mais jogadores, mas está desorganizada: observe o buraco entre Rodri e Laporte que Füllkrug e Sané podem explorar.
Outro lance: Goretzka desarma Nico Willams no meio de campo e Rüdiger fica com a bola.
Rüdiger passa para Hoffman, que passa para Goretzka. Espanha tenta pressionar para recuperar a bola e matar o contra-ataque.
Passe de primeira de Goretzka para Schlotterbeck desmonta a tentativa de pressão da Espanha, que agora precisa correr para trás. Mais uma vez, Sané e Füllkrug aproveitam uma defesa desorganizada para correr com o campo aberto.
Gol da Alemanha surge dessa estratégia: Füllkrug pressiona Laporte, que tenta fazer um passe para Pedri.
Por causa da pressão de Füllkrug, o passe sai ruim e Klostermann o intercepta.
Sané recebe por dentro, e Füllkrug e Musiala já se preparam para atacar a defesa desorganizada da Espanha.
Quando Musiala recebe o passe de Sané, Füllkrug e Klostermann já estão entrando livres dentro da área da Espanha. Observe a desoganização da defesa espanhola, que não teve tempo para se recompor.

4. Usando a posse de bola para “contra-atacar”

A última arma de Flick para atacar a Espanha não partia da pressão alta e recuperação no campo de ataque, mas sim da posse de bola. No entanto, a finalidade era a mesma: encontrar um cenário de campo aberto para que seus atacantes pudessem acelerar a jogada e atacar a defesa espanhola em velocidade. Assim, Flick desenhou um jeito de “contra-atacar” a Espanha, mas usando somente a posse de bola.

A ideia de Flick era usar o controle da bola de um jeito radicalmente diferente do jogo contra o Japão. Ao invés de espalhar suas peças pelo campo e avançar calmamente, a Alemanha concentrava mais a posse em seu campo de defesa, na saída de bola. Além disso, a Alemanha não usava mais a “saída posicional” do jogo contra o Japão, onde os jogadores de ataque não podiam descer para se apresentarem: aqui, muitas vezes um jogador mais ofensivo deixava sua posição para oferecer mais uma opção de passe.

Como o time de Luis Enrique queria ter a posse o tempo todo, os espanhóis naturalmente pressionariam a Alemanha para recuperar a bola rapidamente e voltar a dominá-la. Assim, a ideia de Flick era juntar muitos jogadores na saída de bola para atrair a pressão da Espanha e, a partir daí, criar um “efeito dominó”. A Alemanha saíria jogando e atrairia a marcação dos jogadores espanhóis; à medida que a Mannschaft conseguisse quebrar a primeira linha de pressão da Espanha e avançar com a bola em campo, mais jogadores adversários teriam que saltar de suas posições para pressionar os alemães, e assim por diante. Isso acabaria criando um “efeito dominó” em que, à medida que mais jogadores da Espanha avançassem para pressionar, mais espaço se abriria às costas deles até que a Alemanha encontrasse um cenário com o campo aberto, como em um contra-ataque. Por fim, os alemães poderiam aproveitar esse espaço acelerando. A ideia não era ter o controle da posse o jogo inteiro; apenas o suficiente para atrair a pressão espanhola para que o espaço às costas da defesa se abrisse.

Alemanha inicia sua saída de bola com 4 jogadores espanhóis na marcação.
Musiala recebe a bola nas costas dos marcadores espanhóis e acaba atraindo a atenção de mais dois jogadores. Esse movimento acaba abrindo um buraco nas costas dos meio-campistas da Espanha, que pode ser explorado por Goretzka e Gündoğan.
Goretzka recebe a bola no espaço que se abriu no meio de campo da Espanha, e os atacantes alemães disparam contra o campo aberto.
Outro lance: na saída de bola, Neuer recebe e atrai a marcação dos jogadores espanhóis.
Neuer dá um passe longo, e Gündoğan disputa a bola no meio de campo. Assim, ele consegue atrair a marcação de três espanhóis, novamente abrindo espaços no meio de campo.
Gündoğan ganha a disputa e a bola sobra para Goretzka, que pode conduzir no espaço que se formou no meio de campo espanhol. Mais uma vez, a Alemanha encontra um cenário de campo aberto a partir da posse de bola.

Enquanto no jogo contra o Japão a Alemanha teve muito sucesso em subjugar seu adversário a partir da posse, avançando com calma em seu ataque posicional, superando a marcação agressiva japonesa e criando chances ao ocupar o campo de ataque em seu ataque funcional, a abordagem contra a Espanha foi radicalmente diferente.

Flick mostrou seu repertório e atacou a Espanha a partir de uma pressão extremamente agressiva e contra-ataques fulminantes, agindo como um autêntico rolo compressor. Além disso, quando tinha mais a bola, também a usava de um jeito diferente: ao invés de tentar ocupar o campo de ataque, preferiu atrair a Espanha na saída de bola para atacar os espaços que se formariam. Nessa nova estratégia, Flick também teve sucesso: finalizou mais vezes que seu adversário (11 contra 7) e acertou mais o alvo (4 contra 3). Além disso, criou mais grandes chances (3 contra 2) e chutou mais vezes de dentro da área (8 contra 3). Por fim, também acumulou mais gols esperados: 1,24 contra 0,70. A Espanha só superou a Alemanha na posse de bola (64%), mas produziu menos ofensivamente em todos os outros quesitos. Mesmo assim, o jogo acabou empatado; novamente, Flick acabou tropeçando na falta de efetividade de seus atacantes, que chegaram a desperdiçar a melhor chance do jogo no último lance dos acréscimos.

O desespero no tudo ou nada: bombardeio contra a Costa Rica

Escalação da Alemanha no jogo contra a Costa Rica.

Para o jogo contra a Costa Rica, Hansi Flick fez uma mudança relevante. Ao invés de escalar Kimmich na dupla de volantes como nas partidas anteriores, o treinador escalou Goretzka e Gündoğan como volantes e mandou Kimmich para a lateral direita. Agora, a novidade aqui não é a volta de Kimmich para a lateral por si só (o alemão explodiu no Bayern de Munique como lateral-direito, mas joga regularmente como volante por clube e seleção há vários anos). A grande novidade foi o perfil do jogador que começou no lado direito da defesa. Contra Japão (Süle) e Espanha (Kehrer), o escolhido para jogar na lateral-direita havia sido um zagueiro de ofício. Isso, entre outras coisas, dava mais sustentação à defesa alemã, que já não era a mais segura da Copa. A entrada de Kimmich na posição mudava radicalmente o perfil: ao invés de um zagueiro a mais, a Alemanha ganhava, em sua linha de defesa, um jogador de perfil muito mais ofensivo, muito mais capaz com a bola no pé e, claro, menos seguro defensivamente.

Essa mudança previa o terceiro cenário que a Alemanha enfrentaria na fase de grupos: a Costa Rica não tentaria ser agressiva na marcação como o Japão e muito menos proativa na posse de bola como a Espanha: a estratégia costarriquenha era se trancar em seu campo de defesa, defendendo extremamente perto de sua área e dando a posse de bola para a Alemanha. A Costa Rica chegou para o jogo pensando em sofrer o mínimo de gols possível, sem pensar muito em como atacar a Alemanha ou deixá-la desconfortável com a bola. O jogo estava desenhado para ser um monólogo, um verdadeiro “ataque contra defesa”. Assim, ter um armador a mais em sua linha de defesa era muito, muito importante.

1. Saída de bola em 2+3

No jogo contra a Costa Rica, a Alemanha promoveu uma leve alteração em sua saída de bola. Enquanto no jogo contra o Japão os jogadores se alinhavam em um 3+2 (com 3 zagueiros e 2 volantes) para sair jogando, nessa partida a estrutura se inverteu e foi para um 2+3. A dupla Süle e Rüdiger iniciava a jogada, e tinha à sua frente 3 jogadores de meio de campo: Gündoğan mais recuado, Kimmich pela direita e Raum pela esquerda.

Essa mudança claramente foi promovida pela posição de Kimmich na lateral-direita, que implicava em duas coisas. A primeira, já explicada antes, é que o jogador que ocupava a lateral-direita não era mais um zagueiro que ia compor uma linha de 3 defensores, mas sim um armador. A segunda foi que, como Kimmich saíra do meio de campo, Goretzka iniciou como volante ao lado de Gündoğan. No entanto, o camisa 8 não é um exímio construtor, e é muito melhor atuando como um jogador que ataca a linha de defesa adversária com sua força física, um infiltrador. Assim, Goretzka ficava mais avançado, sem participar da saída de bola. Para Gündoğan não ficar sozinho à frente dos zagueiros, Kimmich e Raum formavam uma linha de 3 volantes com o jogador do Manchester City.

Alemanha inicia a jogada em 2+3.

2. Avançando em campo de forma posicional

Alemanha avançando em campo usava uma estrutura posicional em 2–3–5.

Assim como o 3+2 na saída de bola contra o Japão indicava uma estrutura em 3–2–5 posicional, o 2+3 contra a Costa Rica indicava o 2–3–5 que a Alemanha usaria para avançar em campo.

A estrutura 2+3, com os 2 zagueiros e 3 volantes, ficava na base da jogada. À frente, Goretzka e Musiala eram os meias mais avançados, que atacavam os meio-espaços e se posicionavam entre as linhas de marcação da Costa Rica. No ataque, Müller era um falso 9 e frequentemente se juntava a Goretzka e Musiala em uma posição mais recuada. Por fim, Sané e Gnabry abriam o campo.

O 2–3–5 posicional da Alemanha nessa partida era ligeiramente menos rígido que o 3–2–5 contra o Japão. Aqui, Flick escalou Sané (canhoto) na ponta direita e Gnabry (destro) na ponta esquerda. Portanto, eles naturalmente levariam a bola para dentro ao receber, e não para o fundo. Por isso, os pontas (Sané e Gnabry) se revezavam com os laterais (Kimmich e Raum) para abrir o campo, e trocas de posição entre esses atletas eram bem comuns. Além disso, o trio central formado por Goretzka, Müller e Musiala era extremamente fluido e sempre “brincava” com as trocas de posição para confundir os zagueiros costarriquenhos.

Por fim, Flick não espalhou tanto as suas peças pelo campo como contra o Japão e, mesmo em uma estrutura posicional, preferia deixá-la mais próxima. Isso facilitaria a compactação que veremos na sessão seguinte, criaria mais linhas de passe e, ainda, facilitaria o trabalho de perde-pressiona da Alemanha: ao perder a bola, a Mannschaft teria mais facilidade em recuperá-la imediatamente com seus jogadores mais próximos, pois isso facilitaria na dobra de marcação no setor da bola, além de abrir menos espaços. Assim, os pontas não ficavam colados à linha lateral, mas sim bem próximos da jogada. Além disso, a distância entre as linhas (2 zagueiros, 3 volantes e 5 atacantes) era bem curta.

Alemanha em seu 2–3–5: zagueiros não aparecem na imagem, trio Kimmich-Gündoğan- Raum na base da jogada e 5 atacantes: Sané e Gnabry abertos e Goretzka, Müller e Musiala por dentro.
Alemanha avança em seu 2–3–5. Observe que Sané não está colado na linha lateral, mas bem próximo dos outros jogadores para ser uma opção de passe mais curto. A distância entre as linhas alemãs é curta: não há muito espaço entre zagueiros e volantes e entre volantes e atacantes: o time avança bem compacto.

3. Mescla posicional/funcional no campo de ataque

Alemanha ocupando o campo de ataque.

Para ocupar o campo de ataque, a Alemanha usava uma estratégia similar, mas não idêntica, ao jogo contra o Japão. Mais uma vez, Flick escolheu compactar seus jogadores em um lado do campo quando o time estava posicionado para atacar. No entanto, essa organização era mais uma mescla entre um ataque posicional e funcional, ao contrário do jogo contra o Japão, que mostrou uma Alemanah 100% funcional ocupando o campo de ataque.

Na partida contra a Costa Rica, a Alemanha esboçava sua estrutura posicional, mas apresentava intensas movimentações, aproximações e trocas de posição. Além disso, quando um jogador deixava sua posição, não havia outro que imediatamente a ocuparia, como em um clássico ataque posicional. Nessa fase do jogo, a Alemanha se preocupava pouco com suas posições e mais nas movimentações dos seus jogadores, sem prendê-los à lugares específicos. Assim, os jogadores tinham mais liberdade em se movimentar, criando assimetrias, desmarques e aproximações que confundiam a defesa da Costa Rica.

Alemanha concentra jogadores no lado direito, sem posição fixa. Sané tem liberdade de sair da ponta direita, sem alguém ter que ocupar seu lugar. Kimmich ataca por dentro e Goretzka se apresenta na lateral do campo, onde Kimmich estaria. Gündoğan avança e Müller e Musiala se aproximam.
Outro lance: mais uma vez Alemanha aproxima seus jogadores do lado direito. Kimmich abre o campo e Sané fica na base da jogada com Gündoğan. Goretzka, Musiala e Müller se aproximam da jogada, arrastando o bloco defensivo da Costa Rica para lá.
Na sequência do lance, Gündoğan inverte o jogo para Gnabry, que está no lado fraco.
Na câmera aérea, observe a compactação da Alemanha no lado esquerdo: Musiala, Müller e Goretzka estão muito próximos e Kimmich saiu da direita para se posicionar na base da jogada, por dentro. Apenas Gündoğan e Sané estão mais afastados.

4. Trocação, desespero e bombardeio no segundo tempo

Alemanha no segundo tempo.

Para o segundo tempo, Flick realizou várias mudanças que tornavam seu time ainda mais ofensivo (principalmente após tomar a virada da Costa Rica). Primeiro, uma troca aparentemente defensiva: Goretzka saiu para a entrada de Klosterman, lateral direito, o que devolvia Kimmich ao meio de campo. Depois, Gündoğan, volante, saiu para a entrada de Füllkrug, centroavante. Raum, lateral, saiu para a entrada de Götze, meia-atacante. Por fim, Müller, atacante, foi substituído por Havertz, que também é atacante. No desespero, Flick esvaziou seu meio de campo (na reta final do jogo, a Alemanha tinha apenas Kimmich de volante) e preencheu sua linha de atacantes.

Assim, Flick armou sua Alemanha em uma mescla de 3–1–6 e 2–2–6 extremamente móvel. Klostermann se juntava a Süle e Rüdiger na saída de bola como terceiro zagueiro, mas frequentemente deixava a linha de defesa para avançar. Mais à frente, Kimmich era o único meio-campista do time, atuando como volante, e frequentemente ganhava a companhia de Klostermann para formar uma dupla de volantes. Por fim, uma linha de 6 atacantes. Flick trocou Sané e Gnabry de posição, para que o ponta destro ficasse pela direita e o canhoto pela esquerda. Assim, eles tinham mais sucesso em abrir o campo e levar para o fundo. Por dentro, Füllkrug era um centroavante típico, que fixava os zagueiros e era a referência dentro da área. Havertz atuava como um segundo atacante por trás de Füllkrug, circulando pelo ataque. Por fim, Musiala e Götze eram os meias que preenchiam os meio-espaços, normalmente bem próximos de Havertz.

No segundo tempo, com a classificação ameaçada e atrás no placar, Flick não queria controlar a posse de bola em todas as faixas do campo, dominar o meio de campo e avançar com calma para subjugar a Costa Rica. A ideia era preencher a linha de defesa costarriquenha e bombardear o gol adversário com sua linha de atacantes. Com seu meio de campo esvaziado, a Alemanha fatalmente deixaria espaços para a Costa Rica contra-atacar, mas Flick apostou no tudo ou nada. Foi nesse momento que aconteceu um verdadeiro bombardeio: apenas no segundo tempo, a Alemanha finalizou 20 vezes (7 no alvo), criou incríveis 7 grandes chances, acertou a trave 3 vezes e acumulou 4,70 gols esperados.

Vista aérea da Alemanha no segundo tempo em seu 3–1–6: 3 zagueiros, Kimmich como volante e linha de 6 atacantes.
Nessa imagem, Klostermann avança, deixa a linha dos zagueiros e forma uma dupla de volantes com Kimmich: Alemanha no 2–2–6.
A Alemanha no campo de ataque: Kimmich e Klostermann na base da jogada e muita movimentação na linha de atacantes. Sané deixou a ponta e foi para dentro, enquanto Musiala fez o inverso. Füllkrug fixa os zagueiros e Havertz atua como segundo atacante. Götze ataca o meio-espaço.
Jogada do gol da virada da Alemanha: linha de atacantes ocupa a defesa da Costa Rica, que está em inferioridade numérica. Observe a liberdade dos jogadores: aqui, Sané está por dentro, Havertz por fora e Musiala como o segundo atacante.
Alemanha ataca a linha de defesa da Costa Rica com 6 jogadores, que se desdobra para marcar tantos atacantes. Assim, Gnabry recebe na ponta e arrasta o bloco defensivo costarriquenho para lá, abrindo espaço para Havertz, na ponta esquerda, receber o lançamento e marcar.

Conclusão: não há terra arrasada

A eliminação da Alemanha deixa, com certeza, um gosto amargo na boca dos alemães. Afinal, é a segunda queda na fase de grupos seguida que o país enfrenta. Além disso, a última vez que a Mannschaft passou das oitavas de final em algum torneio oficial foi na Euro 2016, quando foi eliminada pela França nas semifinais. Desde então, queda na fase de grupos nas Copas de 2018 e 2022, um quase rebaixamento na Liga das Nações e uma eliminação nas oitavas de final na Euro de 2021.

No entanto, como visto aqui, a Alemanha parece estar no caminho certo, pelo menos ofensivamente. Em 3 jogos diferentes, enfrentando cenários drasticamente diferentes, Flick usou 3 abordagens distintas e teve sucesso em cada uma delas. Seus conhecidos problemas defensivos custaram-lhe um mata-mata, mas nada disso poderia ter acontecido se seus atacantes fossem mais eficazes na cara do gol. A Alemanha foi, de longe, o melhor time ofensivo da fase de grupos: foi o que mais produziu e o que mais apresentou repertório. Aparentemente, a DFB sabe disso e resolveu manter Flick no comando da Seleção até 2024, na Euro, que é quando seu contrato acaba. O treinador já afirmou que não quer passar uma década treinando a Mannschaft como vários de seus antecessores, então uma saída depois da Eurocopa é bem provável. Se ela se confirmar, os grandes clubes europeus devem ficar muito atentos, pois uma das maiores referências em organização ofensiva e futebol de ataque estará no mercado.

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