O grande dilema do futebol alemão: 3 jeitos de dar o “próximo passo”

Clarissa Barcala
60 min readDec 28, 2022
Jürgen Klopp, Joachim Löw e Hans-Dieter Flick, 3 dos melhores treinadores alemães dos últimos anos com 3 respostas diferentes ao mesmo dilema.

“Sinto muito pelo resto do mundo, mas seremos imbatíveis por muitos e muitos anos” — foi o que Franz Beckenbauer, então treinador da Alemanha Ocidental, disse após a conquista da Copa do Mundo de 1990. O time comandado pelo Kaiser era um autêntico representante do pragmatismo alemão: 3 zagueiros, marcação individual, muita solidez no meio de campo e muito poder de decisão nos atacantes, especialmente em Jürgen Klinsmann. Era um time coeso, sólido e muito organizado, mas jamais se destacou (nem queria, para falar a verdade) por ser especialmente brilhante. Aquela Copa parecia decretar o fim do futebol artístico e inventivo da América do Sul e da Escola Danubiana e o início de uma “ditadura” de times organizados, taticamente disciplinados e, acima de tudo, sólidos, como a Itália em um reinventado Catenaccio, a Argentina em seu mais novo Bilardismo, a Inglaterra sempre pragmática e, claro, a Alemanha.

Acabou que a frase de Beckenbauer foi para o hall das mais malditas da história, pois a sucessão de acontecimentos depois daquele título mundial da Alemanha é quase cômica de tão diferente do que o Kaiser previu. O Brasil, declarado morto depois da eliminação nas oitavas da Copa de 90, alcançou a final nas três Copas seguintes (vencendo duas delas) esbanjando o talento inventivo de Romário, Bebeto, Rivaldo, Ronaldo, Cafu, Roberto Carlos e Ronaldinho. A Argentina bilardista deu uma volta de 180º e contratou Alfio Basile para comandar a Seleção depois da Copa de 90 e, relembrando os melhores momentos de La Nuestra com um futebol solto e ofensivo, foi bicampeã da Copa América e campeã da Copa das Confederações. A Itália abandonou Vicini em prol do novo futebol que surgia no país com Arrigo Sacchi, e a França surgiu com um time recheado de talento ofensivo com Zidane, Henry e Trezeguet.

Como se não bastasse, a Alemanha não se tornou imbatível como Beckenbauer anunciara. O Kaiser deixou o comando da Seleção depois da Copa de 90 e colocou seu auxiliar Bert Vogts no comando. Em 1992, a Nationalmannschaft chegou à final da Eurocopa, mas foi derrotada de forma contundente pela Dinamarca. Na Copa de 94, a Alemanha conseguiu uma primeira colocação no grupo, mas acabou eliminada nas quartas-de-final pela Bulgária, sensação do torneio. Na Euro de 96, um suspiro ao derrotar a República Tcheca e se consagrar tricampeã do torneio. Na Copa de 98, mais uma queda nas quartas, dessa vez com um sonoro 3 a 0 aplicado pela Croácia. A Euro 2000 ligou o sinal de alerta: a Alemanha caiu em um complicado grupo com Portugal, Romênia e Inglaterra e ficou em último lugar, sendo eliminada do torneio. A Copa de 2002 deu um novo suspiro aos alemães, que alcançaram a final, mas que deram sorte ao enfrentar Paraguai, Estados Unidos e Coreia do Sul no mata-mata. Por fim, veio o baque definitivo: na Euro 2004, a Alemanha caiu em um grupo com República Tcheca, Holanda e Letônia, não conseguiu vencer nenhum jogo e acabou eliminada. Não havia para onde correr, era hora de mudar.

A primeira grande mudança foi uma guinada no jeito de formar os jogadores nas categorias de base. A Alemanha movimentou mais de 1 bilhão de dólares nas categorias de base para melhorar e mudar a formação de seus jogadores, aprofundando o alcance de seus olheiros e aumentando vertiginosamente o tamanho da estrutura de formação de jogadores. Em seguida, a Alemanha investiu também na formação de seus treinadores: melhorou seus cursos e passou a ser mais exigente na licença dos técnicos. No entanto, o terceiro movimento da Alemanha foi o mais curioso. A Federação Alemã de Futebol (DFB na sigla em alemão) virou as costas para a “velha guarda” de treinadores do país, que cultuavam o pragmatismo e a marcação individual, e voltou seus olhos para um novo movimento tático que surgia no país.

O novo futebol alemão

Ralf Rangnick, o pai do novo jeito alemão de se jogar. Foto: Reprodução/Twitter RB Leipzig.

Nos anos 80, um modesto jogador de futebol começava sua carreira de treinador no ainda mais modesto time Viktoria Backnang. À primeira vista, isso não parece ser nada relevante, mas foi o que mudou o futebol alemão para sempre: Ralf Rangnick acabava de se tornar treinador e estava pronto para reinventar uma cultura futebolística inteira.

A primeira grande inspiração de Rangnick veio enquanto ainda treinava o Viktoria Backnang. Em 1983, o Dínamo de Kiev de Valeriy Lobanovski fazia uma excursão de inverno pela Europa e marcou um jogo-treino contra o Backnang para manter o ritmo. O estilo de jogo do time soviético assombrou Rangnick, que afirmou ter “parado para contar os jogadores do Dínamo para ver se eles tinham mais de 11 em campo, pois eles tinham superioridade numérica em todos os lances”. A segunda grande inspiração de Rangnick foi o Milan de Arrigo Sacchi, que dominou a Itália e a Europa no final dos anos 80. Esses dois times tinham algo em comum: eles realizavam uma marcação por zona ao invés da tradicional marcação individual, se defendiam em uma linha de 4 defensores e aplicavam uma pressão sufocante e sistemática no adversário, adiantando a linha defensiva ao invés de se fechar em seu próprio campo.

A partir disso, Rangnick começou a desenhar seu estilo de jogo. Abandonou a tradicional linha de 5 defensores da Alemanha para implementar uma linha de 4 (ou viererkette, como ficou conhecida no país). Abandonou também todos os conceitos de marcação individual que reinavam no futebol alemão em prol de uma marcação por zona: ao invés de encaixes individuais no campo todo, os times de Rangnick se defendiam em bloco. O objetivo não era marcar o jogador, mas sim a bola. Sua próxima mudança foi abrir mão dos conceitos pragmáticos alemães. Ralf manteve a ideia de ataques rápidos, diretos e verticais, que sempre existiu na Alemanha, mas arrancou-os da postura pragmática da “velha guarda” de treinadores e aplicou esse conceito em um futebol ofensivo: seu time deveria buscar o gol a todo momento. Por fim, Rangnick insituiu em suas equipes os conceitos de pressão e gegenpressing. O alemão detestava a passividade dos treinadores da “velha guarda”, que construíam times que preferiam sentar perto da própria área e dar a bola ao adversário. Por isso, Rangnick fazia com que suas equipes marcassem com uma linha muito adiantada, cercando o adversário desde a saída de bola. Sua ideia era a seguinte: quanto mais avançada for a faixa do campo em que meu time recuperar a bola, mais desorganizado meu oponente estará e, portanto, terei melhores condições para atacá-lo. Surge assim o conceito de pressão alta no futebol alemão, coisas que hoje parecem inseparáveis. A partir disso, Ralf armava contra-ataques ainda mais poderosos, pois encaravam um adversário mais desorganizado e percorriam menos metros. Além disso, Ranginck também precisava contornar a vulnerabilidade de seus times a contra-ataques. Para isso, ele desenvolveu um estilo de pressão para que seu time recuperasse a bola logo após perdê-la, sem deixar o adversário respirar com a posse e conseguir desenhar um contragolpe. Surge assim o gegenpressing, ou contra-pressão: o contra-ataque do contra-ataque.

Uma andorinha só não faz verão

Wolfganf Frank, treinador alemão que, junto de Rangnick, mudou o panorama do futebol do país. Foto: Reprodução/Twitter Mainz05.

A carreira de Rangnick vai além de seus títulos (que não são muitos): o alemão trabalhou principalmente em times médios e pequenos do seu país, e seu grande impacto foi influenciando as pessoas a seu redor. Lentamente, ao longo de mais de uma década, Rangnick fundou uma nova escola na Alemanha, baseada na marcação por zona, na pressão alta e em contra-ataques fulminantes. Surgem os famosos “rolos compressores”: times que recuperavam a bola no ataque e atropelavam o adversário em transição. Quando o RB Leipzig foi treinado por Rangnick, mais da metade dos gols do time vieram de ataques de no máximo 10 segundos a partir da recuperação da bola. Assim, os treinadores dessa escola construíam times extremamente agressivos, que tentavam a todo momento recuperar a bola e, a partir disso, chegar ao gol o mais rápido possível.

Rangnick foi um verdadeiro peregrino no futebol alemão: treinou os mais diferentes times, dos mais diferentes níveis, tamanhos e divisões, pois ele pouco se preocupava com os títulos que ganharia: ele queria muito mais ensinar a todos a sua volta o que ele aprendeu, divulgar o que ele acreditava como resposta à “velha guarda” e influenciar diretores, jogadores e auxiliares ao seu redor. O treinador sempre afirma que ele, sozinho, nunca conseguiria fazer nada, que não cabia a ele revolucionar o futebol alemão pois ele, isoladamente, não era ninguém. Rangnick sempre foi o primeiro a apontar a importância de uma estrutura de jogadores, auxiliares e diretores que comprassem suas ideias e que saíssem espalhando-as para outras “estruturas” e, assim, criando uma teia de aranha pelo futebol alemão. A partir disso, acontecia uma revolução silenciosa pelas divisões inferiores da Alemanha.

A importância de Wolfgang Frank tampouco deve ser ignorada. Ele começou a treinar na primeira metade dos anos 80 e foi arrebatado pelo Milan de Arrigo Sacchi, assim como Rangnick. Frank se tornou obcecado pelo time italiano e sua sincronia de movimentos ao sufocar sistematicamente seus adversários. Não demorou para que ele se tornasse um “mensageiro” da pressão alta e marcação por zona e, quase simultaneamente a Rangnick, começasse a espalhar a “palavra” pela Alemanha. Frank estava convencido de que uma abordagem mais tática, sistemática e planejada poderia potencializar um time limitado e colocá-lo em pé de igualdade em um duelo contra um oponente tecnicamente superior. Com essa filosofia, ele (mais uma vez, assim como Rangnick) “vendia” suas ideias para qualquer um disposto a ouvi-las, influenciando clubes, treinadores e jogadores, como o capitão do clube suíço FC Winterthur chamado Joachim Löw ou um modesto defensor do Mainz 05 chamado Jürgen Klopp.

O crescimento do “futebol à Rangnick” — e o dilema que ele trouxe

O trabalho incessante de treinadores como Ralf Rangnick e Wolfgang Frank em divisões inferiores durante as décadas de 80 e 90 acabaria catapultando a carreira de novos treinadores nas décadas de 90 e 2000. Normalmente, esses treinadores eram pessoas que aprenderam a valorizar a importância de todo um “ecossistema” trabalhar junto por um mesmo objetivo: tanto os 11 jogadores em campo, que deveriam acreditar na mesma ideia e batalhar por ela dentro dos 90 minutos, quanto toda a direção do clube e a comissão técnica, que tinham que trabalhar incessantemente para administrar o clube dentro e fora de campo seguindo a mesma ideia. No começo dos anos 2000, no auge da crise do futebol alemão, uma nova geração de treinadores surgia timidamente no país, praticantes do “futebol à Rangnick”. Hoje, mais de 20 anos depois, os conceitos de pressão alta, proatividade e gegenpressing parecem indissociáveis do futebol alemão. 3 dos treinadores mais relevantes nessa transformação foram Jürgen Klopp, Joachim “Jogi” Löw e Hans-Dieter “Hansi” Flick.

Jürgen Klopp foi o último deles a começar sua carreira de treinador: foi em 2001, no Mainz, quando virou jogador-treinador em um momento de desespero e salvou seu time do rebaixamento. Depois disso, Klopp se aposentou de vez para virar treinador em tempo integral, e nunca mais largou a posição. Ele fora treinado por Wolfgang Frank no meio dos anos 90 e, alguns anos depois, se tornou muito próximo de Ralf Rangnick enquanto ambos lutavam para tirar seus respectivos times da segunda divisão. Klopp foi o comandante do Mainz no primeiro acesso à primeira divisão da história do clube e ainda o manteve na Bundesliga por duas temporadas consecutivas. Após ser rebaixado em 2007 e não conseguir devolver o time à primeira divisão em 2008, Klopp se despediu de seu amado Mainz e partiu para a missão de reanimar o Borussia Dortmund, gigante do futebol alemão que estava adormecido após quase não sobreviver à maior crise da história do clube. Lá, Klopp conquistou um Campeonato Alemão em 2011, uma “dobradinha” (Bundesliga e Copa da Alemanha) em 2012 e alcançou a final da Champions League em 2013. Jürgen sairia do clube em 2015 e, poucos meses depois, voltaria a trabalhar para reviver outro gigante adormecido: o Liverpool.

Joachim Löw foi outro comandado por Wolfgang Frank. Ele foi um atacante que construiu sua carreira na Alemanha e a encerrou na Suíça, onde encontrou o treinador que mudaria sua vida para sempre. Inspirado pelos ensinamentos de Frank, Jogi se tornaria treinador logo depois de se aposentar, assumindo o comando do Frauenfeld. Em seguida, Löw venceria a Copa da Alemanha pelo Sttutgart, e então seguiu para o futebol turco. Não teve muito sucesso por lá e resolveu voltar para a “vizinhança”: acabou ganhando espaço no futebol austríaco, que sempre andou de mãos dadas com o futebol alemão. Após uma passagem promissora pelo Tirol Innsbruck, foi contratado pelo Áustria Viena. Esse foi o trabalho que o catapultou para a Seleção Alemã, onde foi auxiliar técnico de Jürgen Klinsmann por 2 anos antes de assumir de vez o comando da Nationalmannschaft, em 2006.

Hansi Flick foi, sem dúvida, o melhor jogador entre eles. O único a construir uma carreira estável na primeira divisão, Flick chegou a jogar mais de 100 partidas pelo Bayern de Munique entre 1985 e 1990, ganhando 4 Bundesligas, uma Copa da Alemanha e uma Supercopa da Alemanha. Já no fim da carreira, ele ficou 4 anos atuando como jogador-treinador pelo modesto Victoria Bammental antes de se aposentar de vez para assumir o comando do Hoffenheim, então na quarta divisão da Alemanha. Ficou lá de 2000 até 2005, quando saiu para se tornar auxiliar técnico do RB Salzburg. Na Áustria, trabalhou ao lado do italiano Giovanni Trapattoni por apenas 1 ano: em 2006, Flick foi escolhido por Löw para ser seu auxiliar na Seleção Alemã, cargo que exerceu até 2014. Depois da Copa do Mundo no Brasil, Flick se tornou parte da diretoria da DFB e só voltaria a compor uma comissão técnica em 2018 ao ser convidado por Niko Kovač para ser seu auxiliar no Bayern de Munique. A demissão de Kovač em 2019 acabou alçando Flick ao cargo de treinador do clube bávaro, mas como interino. Seu desempenho assombroso acabou convencendo a diretoria do Bayern, que o efetivou ainda em 2019.

O trabalho de Klopp no Borussia e o começo no Liverpool, os primeiros anos de Löw na Seleção Alemã e a revolução de Flick no Bayern de Munique tinham algo em comum: eram todos exemplares perfeitos do futebol à Rangnick. Seus times intensos, que pressionavam como leões e contra-atacavam em uma velocidade estonteante deram vida à equipes que viviam momentos delicados. Borussia e Liverpool eram exemplos perfeitos de gigantes adormecidos: clubes enormes que se afundaram na crise e não sabiam como sair. A Nationalmannschaft era o símbolo da crise na Alemanha, e o Bayern de Niko Kovač colecionava resultados ruins e um futebol pior ainda. Esses três treinadores revitalizaram seus times, incendiaram as arquibancadas e exibiram o mais perfeito exemplo do novo futebol alemão.

No entanto, esse “novo futebol alemão” começou a enfrentar um dilema — dois, na verdade, mas que acabam virando um só. Explico. À medida que os treinadores alemães que praticavam esse estilo cresciam em status e assumiam trabalhos em clubes (ou seleções) maiores, um problema começou a se desenvolver: seus adversários ficavam cada vez menos dispostos a manter a posse de bola, e preferiam abdicar dela e defender em um bloco mais baixo. Assim, treinadores como Klopp, Löw e Flick começaram a encarar oponentes que não tinham a bola; portanto, não havia como recuperá-la no campo de ataque para contra-atacar como eles queriam, forçando-os a manter uma indesejada posse de bola mais prolongada. O outro problema foi que, muitas vezes, os jogos saíam do controle. As equipes de Klopp, Löw e Flick, esbanjando poder ofensivo, conseguiam abrir o placar rapidamente. No entanto, esse estilo acabava propiciando um cenário muito descontrolado nas partidas, onde ambos os times partiam para uma “trocação” e a bola não parava quieta, sempre indo de um lado para o outro no campo. Assim, mesmo sendo claramente superiores, os times desses treinadores acabavam deixando a vitória escapar por não conseguirem controlar o jogo e promover uma melhor manutenção de suas vantagens.

Por um lado, os times da nova escola alemã tinham dificuldade em atacar adversários que marcavam em bloco baixo e abdicavam da bola. Por outro, eles enfrentavam sérios problemas em controlar os jogos. Todos os caminhos levam a um mesmo lugar: o futebol alemão precisava saber como controlar a bola. No final das contas, com o passar do tempo o novo estilo alemão não era mais tão “novo” assim, e chegara a hora dele se reinventar. Além disso, a passagem de Pep Guardiola no Bayern de Munique mudou radicalmente várias percepções de futebol e de organização ofensiva na Alemanha, e o país começou a olhar para o jeito de atacar de um modo diferente. Os ataques rápidos em transições não eram mais o suficiente, e os times alemães precisavam dominar a bola para controlar as partidas e superar blocos mais fechados. Surgia assim o grande dilema da última década do futebol da Alemanha: como controlar a posse de bola para dominar seus adversários e criar situações de gol a partir dela? Para essa pergunta, Klopp, Löw e Flick surgiram com respostas próprias, e vamos analisá-las aqui.

1. A resposta de Jürgen Klopp

Klopp conquistou 7 títulos pelo Liverpool, incluindo uma Premier League depois de 30 anos e uma Champions League depois de 14 anos. Foto: Reprodução/Site Premier League.

Dentro dos três treinadores, Klopp foi provavelmente quem mais sofreu com esse dilema, provavelmente porque foi quem mais abraçou o “futebol à Rangnick”. Seu trabalho no Mainz, no Borussia e o início de trabalho no Liverpool foram extremamente caracterizados pelo seu “futebol heavy metal”. Ele construía times extremamente empolgantes, muito ofensivos e intensos, que enchiam os olhos de todos, incendiavam os estádios e sempre acabavam ganhando o título de “queridinhos” da Europa. No entanto, sua reta final no Borussia Dortmund e principalmente suas duas primeiras temporadas no Liverpool começaram a escancarar as limitações do “futebol heavy metal” de Jürgen Klopp.

O alemão chegou ao Liverpool em outubro de 2015, no meio da temporada 15/16, e não teve tanto sucesso em imprimir seu estilo de jogo nos Reds por causa do calendário abarrotado que impedia uma sequência maior de treinos. As temporadas 16/17 e 17/18, que deram a Klopp mais tempo para treinar, mostraram um Liverpool que lembrava os melhores momentos do Borussia Dortmund que encantou o mundo entre 2011 e 2013, mas que sentia falta de uma coisa essencial: regularidade.

O “futebol heavy metal” acabava se tornando um exemplo perfeito do dilema do futebol alemão: durante a temporada 16/17, o Liverpool não perdeu nenhuma partida para todo o big six, mas acabou perdendo para times como Bournemouth (por 4 a 3, depois de ter aberto uma vantagem de 3 a 1), Southampton e Wolverhampton Wanderers. Os Reds eram exatamente o tipo de time que se dava muito bem quando não precisava ter a bola o tempo todo e podia focar apenas em pressionar e contra-atacar, mas acabava tropeçando em times médios e pequenos por não conseguir controlar jogos ou usar a posse de bola para furar defesas fechadas.

A temporada 17/18 teve o mesmo roteiro: resultados como um empate em 3 a 3 contra o Watford; derrota por 3 a 2 para o West Brom; outro empate em 3 a 3, dessa vez contra o Sevilla (depois de ter aberto 3 a 0), um confronto contra a Roma que terminou em 7 a 6 no agregado para o Liverpool e até vitórias malucas como o 4 a 3 sobre o Manchester City ou o 3 a 2 sobre o Leicester evidenciavam o problema. Os Reds jogavam muito bem, mas sua dificuldade em controlar os jogos acabava custando vários pontos, principalmente contra times do meio para baixo da tabela. Por isso, o Liverpool terminou as edições de Premier League de 16/17 e 17/18 com 76 e 75 pontos respectivamente, ambas em quarto lugar.

Porém, como Klopp foi quem mais sofreu com o dilema, ele também foi o primeiro a tentar resolvê-lo. No livro “Klopp”, de Raphael Honigstein, o auxiliar Peter Krawietz afirmou que “depois de terem se acostumado uns com os outros na primeira temporada, houve uma maior preocupação com a posse de bola no ano seguinte. A ideia era controlar o ritmo da partida com a bola e usar o período entre os jogos para ir adotando um jeito de jogar futebol que pudesse, idealmente, ser reproduzido de modo flexível quando sob pressão”. Krawietz afirmou que Klopp buscava construir movimentos mais padronizados ou “procedimentos combinados” para criar espaços em regiões específicas. Desde sua segunda temporada completa à frente do Liverpool, Klopp parecia entender que o caos completo que ele tanto ama talvez não fosse a resposta para tudo, e que ele precisava buscar um jeito de sistematizar o seu ataque para controlar mais os jogos. Segundo Krawietz, Klopp acredita que “ser treinador é tentar fazer com que o futebol, um jogo baseado em inúmeros eventos aleatórios, seja menos aleatório”, embora seu estilo “heavy metal” possa, a primeira vista, indicar o contrário.

O trabalho de Klopp nesse quesito melhorou vertiginosamente na temporada 18/19. O Liverpool fez, nessa Premier League, 97 pontos. Ela foi seguida de uma campanha de 99 pontos na temporada 19/20 e, depois de uma temporada coletivamente desastrosa em 20/21, o Liverpool alcançou 92 pontos em 21/22. O aproveitamento dos Reds disparou; sem abrir mão de sua intensidade, Klopp conseguiu (através de continuidade no clube, que o permitiu desenvolver cada vez mais as suas ideias) construir um jeito de, finalmente, controlar seu adversário e sufocá-lo com a bola. O Liverpool começou a cada vez menos ser o time que jogava só nas transições para virar uma equipe que esmagava o adversário contra a parede, tomava o controle da bola nas regiões centrais do campo e criava suas chances a partir disso.

Matéria do The Athletic sobre as zonas ocupadas (em vermelho) por cada time da Premier League na temporada 21/22. Repare na ocupação do campo de ataque do Liverpool. Foto: Reprodução/Twitter John Muller (@johnspacemuller).

A tarefa de Klopp não era fácil: ele tinha seus princípios e não ia largá-los. Segundo o alemão, “futebol é um jogo, e você deve jogá-lo com liberdade”; ele queria dar o máximo de liberdade possível para seus jogadores mas, ao mesmo tempo, criar um ataque “mecanizado” e sistemático que lhe permitisse criar estratégias específicas para cenários específicos e, assim, ter um maior controle sobre os jogos. A ideia de Klopp foi a seguinte: ele daria bastante liberdade a seus jogadores em um primeiro momento para que o treinador entendesse as virtudes e deficiências de seu elenco. Em seguida, com essas informações, Klopp construiria uma estrutura de ataque a partir das características de seus jogadores ofensivos, encaixando-os do melhor jeito possível e, assim, construindo um time que potencializasse as virtudes do elenco e escondesse suas deficiências. Segundo o próprio treinador, “tenho informações que não passo a meus jogadores para ver como eles reagiriam a certas situações por contra própria. A partir disso, descobriremos o que queremos deixar com ele, o que queremos ajustar e o que queremos que ele pare de fazer”. Para ver isso em prática, vamos analisar a goleada de 6 a 0 que o Liverpool aplicou sobre o Leeds United na Premier League da temporada 21/22.

Escalação do Liverpool para o jogo contra o Leeds, válido pela Premier League 21/22.

As várias maneiras de sair jogando

É difícil apontar uma estrutura exata da saída de bola do Liverpool de Klopp porque a fluidez do ataque dos Reds já começava desde o tiro de meta, mas o time construía suas jogadas a partir de alguns padrões.

A construção começava a partir da linha de 4 defensores do Liverpool e de Fabinho, o primeiro volante. Mais perto de Alisson, os Reds começavam a saída de bola em um 2+1, com Fabinho à frente da dupla de zaga. Arnold e Robertson, os laterais, ficavam mais abertos em campo e não se aproximavam tanto, oferecendo uma opção de passe mais avançada, normalmente nas laterais.

Os meio-campistas mais avançados, Thiago e Curtis Jones, tinham total liberdade tanto para se afastar da saída de bola e se aproximar dos atacantes quanto para descer e se apresentar como uma opção de passe mais próxima de Fabinho. Normalmente, o movimento de recuar para participar da saída de bola era mais comum de Thiago, que gosta de armar o jogo partindo de posições mais recuadas, enquanto Curtis Jones ficava mais solto no ataque.

Klopp não formava uma estrutura rígida de saída de bola e preferia dar mais liberdade a seus jogadores. Desse modo, havia muitas alterações na formação à frente de Alisson nesses momentos: Thiago, Curtis Jones ou ambos podiam ou não baixar para dar mais uma opção de passe, Arnold e Robertson variavam suas alturas no campo para oferecer uma linha de passe mais longa ou se aproximar bastante da jogada e até os atacantes tinham a liberdade para recuar e receber a bola dos zagueiros e volantes.

Liverpool na saída de bola: estrutura em 2+1 na frente de Alisson, com Fabinho à frente da dupla de zaga. Arnold e Thiago são opções de passe mais avançadas, não se aproximam tanto.
Vista aérea da saída de bola do Liverpool: Van Dijk, Matip e Fabinho ficam bem próximos de Alisson. Arnold e Robertson, bem abertos, são opções para um passe mais longo.
Thiago desce para participar da saída de bola com Fabinho, formando uma estrutura em 2+2.
Arnold e Robertson ficam mais próximos da saída de bola, e Curtis Jones é quem desce para formar dupla com Fabinho: estrutura em 4+2.
Mané baixa para receber entre os zagueiros Matip e Van Dijk (não aparece na imagem), ficando mais recuado que Fabinho. Próximo do volante brasileiro está Thiago. Curtis Jones e Arnold ficam mais avançados.

Avançando em campo a partir de um ataque funcional

A estrutura funcional do ataque do Liverpool.

As variações, movimentações e aproximações da saída de bola continuariam à medida que o Liverpool avançava em campo. O Leeds United de Bielsa, adversário dos Reds nessa partida, era um time que se defendia a partir de marcações individuais: o cenário não poderia ser melhor para Klopp, que usava a movimentação intensa de seus jogadores para atrair a marcação do Leeds e criar espaços através dos desmarques.

Os conceitos funcionais de Klopp começavam no trio de meio-campistas: Fabinho, Curtis Jones e Thiago não tinham posição fixa. Embora Fabinho começasse como primeiro volante, Jones como meio-campista à direita e Thiago como meio-campista à esquerda, os três circulavam com liberdade pela faixa central. Fabinho, embora começasse mais recuado, tinha total liberdade para se desprender da posição de volante e avançar, quebrando as linhas adversárias com sua força física e qualidade com a bola. Curtis Jones partia do lado direito do meio de campo e era o mais avançado dos três, formando uma estrutura de ataque muito interessante com Salah e Arnold que logo veremos. Thiago normalmente se posicionava na base da jogada, mais à esquerda.

Mapas de calor dos meio-campistas do Liverpool: sem posição marcada, eles tinham liberdade para circular pela faixa central e sempre estar próximos da jogada.

No ataque, a liberdade continuava. Salah, o ponta-direita, começava bem aberto e avançado no campo. No entanto, o egípcio costumava estar sempre próximo da bola e, por isso, podia tanto cortar para dentro, atuando como um atacante interior, quanto recuar para armar o jogo, partindo do lado direito. Em sua nova função de falso 9, Mané era o mais solto do trio de ataque. O camisa 10 saía da posição de centroavante para formar um “losango” com os três meio-campistas, ficando logo à frente de Curtis Jones e Thiago e, como visto antes, também podia participar da saída de bola. Partindo de sua posição central, Mané caía por todos os lados e também ficava sempre próximo da jogada, tirando a referência dos zagueiros do Leeds. Por fim, o “novato” Luis Díaz chegara no Liverpool apenas 1 mês antes desse jogo, mas encaixou como uma luva. Em sua passagem pelo Porto, o ponta normalmente era um jogador bem aberto pelo lado esquerdo do campo, ocupando a faixa lateral. No Liverpool, Klopp o levou para uma faixa mais central do ataque, liberando o lado esquerdo para Robertson. Assim, Luis Díaz atuava como um “segundo atacante”, sempre próximo de Mané, preparado para cortar para dentro e resolver a jogada em poucos toques.

Posição média dos jogadores do Liverpool no jogo contra o Leeds: os 3 meio-campistas bem próximos com Mané logo a frente. Luis Díaz atua mais por dentro, liberando o lado esquerdo para Robertson. Salah fica mais aberto e Alexander-Arnold fica mais próximo dos meio-campistas.

A partir disso, Klopp aglomerava seus jogadores pelo lado direito do campo, formando um ataque funcional. Por lá, os Reds se movimentavam intensamente, juntando 6, 7 ou até 8 jogadores na mesma faixa do campo. Essa estrutura causava um inferno na defesa do Leeds que, a partir de suas marcações individuais, se desdobravam para perseguir os jogadores do Liverpool e cobrir tantas movimentações em um espaço tão pequeno. Desse modo, os Reds conseguiam construir uma rede de linhas de passe curto e abrir buracos na defesa do Leeds através de desmarques, enquanto deixava o lado oposto vazio para que Robertson atacasse com suas ultrapassagens.

Liverpool junta 5 jogadores ao redor da jogada: Salah, Fabinho e Curtis Jones estão bem próximos da bola, com Arnold e Thiago na base da jogada. Mané e Luis Díaz formam uma dupla de ataque pela faixa central: assim, o Liverpool tem 7 jogadores entre o meio de campo e a linha lateral. Isso esvazia o lado esquerdo, que pode ser atacado por Robertson em uma ultrapassagem.
Outro lance: com o avanço de Matip, Liverpool agora tem 7 jogadores bem próximos da jogada. Jones está próximo da linha lateral, mas recuado. Salah também está próximo da linha lateral, mas mais à frente. Matip, Fabinho e Thiago estão na base da jogada, com Arnold por dentro e Mané na faixa central. Luis Díaz, mais isolado, pode atacar o lado vazio em uma inversão.
Mais uma vez, o Liverpool aglomera seus jogadores no lado direito do campo. Salah saiu do lado e está mais por dentro, e Curtis Jones continua mais aberto. Arnold se aproxima de Fabinho e Thiago na base da jogada, e Mané fica nas entrelinhas. Díaz, novamente, mais afastado.
Sequência do lance anterior. Curtis Jones e Salah trocam de posição: o egípcio recua enquanto o inglês fica mais avançado. Arnold, por dentro, está bem próximo da jogada. Luis Díaz saiu do lado do campo e se aproxima, enquanto Mané fica mais avançado. Thiago, recuado, fica mais distante.
Outro lance: Liverpool aglomera seus jogadores por dentro, em duplas. Matip e Salah bem recuados, Fabinho e Curtis Jones por dentro e Luis Díaz e Mané como dupla de ataque. Arnold e Robertson ficam bem abertos.

Desequilibrando a partir dos laterais: Arnold armador e Robertson no lado fraco

Uma das armas de Klopp em seu ataque funcional era o uso de seus laterais. Desde a temporada 17/18, quando Robertson foi contratado junto ao Hull City e Alexander-Arnold se firmou na equipe principal, o Liverpool tinha em sua dupla de laterais uma peça importantíssima do mecanismo ofensivo. Normalmente, os dois atuavam bem abertos e avançados, liberando Salah e Mané para cortarem para dentro e se aproximarem de Firmino, formando assim uma linha de 5 atacantes.

Estrutura de ataque do Liverpool na temporada 17/18, quando Arnold e Robertson passaram a ser a dupla de laterais titulares.

Como dito antes, esse Liverpool era um time muito mais vertical, que mantinha menos a posse de bola e preferia criar suas chances de gol através da pressão alta e contra-ataques. Desse modo, os Reds usavam bastante os lados do campo para acelerar as jogadas, usando Arnold e Salah pelo lado direito e Robertson e Mané pelo lado esquerdo, com Firmino ligando as peças por dentro.

À medida que o Liverpool começava a ter mais controle da posse de bola, a função de Arnold mudava. Klopp logo percebeu que o inglês não era tão rápido e forte como Robertson, que tinha muita facilidade em receber em velocidade e levar a bola para a linha de fundo. As principais valências de Arnold eram outras: o lateral-direito rapidamente se estabeleceu como o melhor passador do time, se tornou o cobrador de bolas paradas (desde escanteios até faltas diretas) e apresentava uma visão de jogo digna dos melhores meio-campistas do futebol mundial. Desse modo, com o passar das temporadas, Klopp levou-o cada vez mais para as regiões mais centrais do campo. Assim, ao invés de precisar atuar como um ponta que recebe bolas em velocidade e precisa produzir cruzamentos de linha de fundo, Arnold começou a ser um lateral-interior, que se posicionava por dentro do ataque e armava o time a partir de uma zona mais central. Ele começou a ocupar os meio-espaços, o lugar do campo entre a faixa central e a linha lateral; essa nova posição potencializava os excelentes passes longos e a visão espetacular de Arnold, permitindo que ele lançasse e cruzasse a partir de uma zona mais central e acionasse os atacantes que infiltrassem na área adversária.

Todos os toques na bola de Arnold no jogo contra o Leeds. Observe que, quanto mais o lateral avança no campo, mais ele participa do jogo por dentro.

Enquanto Arnold atuava em uma posição cada vez mais central, Robertson fez exatamente o contrário. A evolução do jogo de Mané, que jogava na ponta-esquerda, fez com que o senegalês atuasse cada vez mais próximo de Firmino como um atacante mais fechado, até que ele virasse de vez um falso 9 na temporada 21/22. Esse processo acabou esvaziando o lado esquerdo, que agora era todo de Robertson para que o escocês, com muita velocidade, fôlego e força física, pudesse realizar suas famosas ultrapassagens, sendo acionado em um passe longo ou em uma inversão de bola.

Toques na bola de Robertson no jogo contra o Leeds. Observe que ele recebe a bola muito mais aberto que Arnold e não participa tanto por dentro como o inglês.
A diferença nos mapas de calor de Robertson e Arnold indica como os laterais tinham funções distintas. Arnold participava mais da construção das jogadas como um armador, pegando muito na bola em regiões mais centrais. Robertson, por sua vez, era acionado em uma faixa de campo mais avançada, além de atuar bem mais aberto.

Essa diferença nos perfis dos laterais fez com que o ataque funcional de Klopp fosse potencializado. Como o Liverpool compactava seus jogadores pelo lado direito do campo, Arnold sempre estava próximo da jogada. Assim, o inglês poderia pegar mais vezes na bola e ajudar a construir as jogadas como um meio-campista armador. Robertson, do outro lado, também era potencializado. Com a compactação dos jogadores do Liverpool pelo lado direito, a defesa do Leeds United naturalmente seria arrastada para lá; isso acabaria esvaziando o lado oposto, deixando um espaço aberto para Robertson atacar em suas poderosas ultrapassagens através de uma inversão de bola. Assim, Klopp instituía a ideia de “lado forte, lado fraco” em seu ataque funcional: o flanco direito concentraria mais jogadores (lado forte), enquanto o flanco esquerdo ficaria vazio para que, em uma inversão, Robertson fosse acionado (lado fraco). A ideia não era que o escocês ficasse posicionado como um ponta, mas que ele deixasse o espaço vazio até o momento certo para o ataque: chegar, não estar.

Liverpool ataca a área do Leeds pelo lado direito, aglomerando 6 jogadores por lá. Arnold está por dentro, próximo de Mané e Fabinho. Isso acaba arrastando o bloco defensivo do Leeds para lá, liberando o lado esquerdo para a ultrapassagem de Robertson.
Liverpool agora se compacta por dentro e Arnold fica bem no meio do campo, sempre próximo da jogada para armar o time. Pelo lado esquerdo, Robertson está mais afastado, esperando o momento certo para a ultrapassagem.

O triângulo pelo lado direito

Como o Liverpool concentrava seus ataques pelo lado direito, onde aglomerava seus jogadores, Klopp construiu uma estrutura para guiar os ataques por lá através da movimentação de três jogadores: Salah, Arnold e Curtis Jones.

Salah é o ponta-direita, Arnold é o lateral-direito e Curtis Jones é o meio-campista pela direita: naturalmente, os três formariam um triângulo pelo lado do campo. A forma mais intuitiva de trabalhar a partir dele é com Arnold na base, Curtis Jones por dentro e Salah avançado e aberto. No entanto, Klopp dá bastante liberdade para que esse triângulo “rotacione” através das trocas de posição desses jogadores.

Arnold, como visto antes, é um lateral interior, que sai de uma posição aberta para ficar mais por dentro e armar o time por lá. Salah é quem começa mais próximo da linha lateral, mas o poder de fogo e a qualidade de passe do egípcio o tornam muito mais perigoso em regiões mais centrais. Por fim, Curtis Jones começa por dentro, mas é um jogador muito inventivo e é capaz de render em qualquer posição do ataque; assim, os três “rodam” o triângulo e, a partir disso, orientam os ataques pelo lado direito.

Triângulo formado com Curtis Jones na base, Arnold mais aberto e Salah mais avançado.
Lance segue e o triângulo roda: agora, Arnold fica na base, Salah por dentro e Jones fica aberto e avançado.
Outro lance: aqui, Curtis Jones está na base, Salah está por dentro e Arnold está aberto e avançado.

Malandro é malandro, Mané é craque: as vantagens a partir de um falso 9

Uma das poucas más notícias para os torcedores do Liverpool durante a temporada 21/22 foi a queda de rendimento de Roberto Firmino. O brasileiro foi contratado junto ao Hoffenheim em 2015 (apenas alguns meses antes de Klopp) depois de ter se destacado na Bundesliga como um meia-atacante. Sob Jürgen, Firmino se transformou em um falso 9 de altíssimo nível: no “futebol heavy metal” do alemão, com meias infiltradores, pontas verticais e laterais ofensivos, Firmino era quem organizava tantas peças ofensivas, conectando-as e armando os ataques.

Durante a temporada 21/22, no entanto, o nível de jogo do brasileiro caiu, e Klopp teve que buscar alternativas. Depois de vários testes com Diogo Jota no centro do ataque, acabou que foi um ponta-esquerda que mudou tudo. Luis Díaz chegou do Porto em janeiro e seu encaixe imediato no time forçou várias mudanças de Klopp para colocar o colombiano entre os 11 titulares.

A saída de Jürgen foi consumar um processo que já acontecia há muito tempo. Como dito antes, Sadio Mané foi cada vez mais se tornando um atacante de faixa central, abandonando uma posição mais aberta para atuar mais por dentro. Assim, Klopp resolveu o problema ao tirar Firmino dos 11 titulares, colocar Luis Díaz na ponta-esquerda e começar a escalar Mané como falso 9. Desse modo, o senegalês atuou no centro do ataque durante toda a segunda metade da temporada 21/22.

Toques na bola de Mané no jogo contra o Leeds. Observe como o senegalês está presente em toda a faixa central do campo de ataque, do meio de campo até a área.

A escolha de Mané era o equilíbrio perfeito entre Roberto Firmino e Diogo Jota. Enquanto o brasileiro era um armador puro, cuja principal função era deixar a posição de centroavante para circular, abrir espaços e armar o time, o português não tinha a técnica de Firmino, mas compensava ao atuar como um excelente infiltrador. Jota é um atacante muito rápido e muito ágil, perfeito para atacar a defesa adversária em velocidade. Mané, com suas próprias características, poderia oferecer tanto a técnica de Firmino quanto o perigo em profundidade de Jota.

Mapa de calor de Mané na partida contra o Leeds. Partindo da faixa esquerda do campo, ele estava presente em todos os setores. Além disso, perceba como seu mapa de calor parece muito mais de um meia do que de um atacante.

Mané, talvez, era o atacante mais agraciado com a liberdade que Klopp dava a seus jogadores na hora de atacar. Originalmente um jogador de faixa esquerda do campo, o senegalês costumava circular mais por lá, mas tinha total liberdade para encostar na jogada (normalmente pelo lado direito, como visto antes), recuar para ajudar na saída de bola e “passear” por todo o campo de ataque. Contra o Leeds United, Mané jogou 90 minutos, marcou 2 gols, deu 85 toques na bola, acertou 50 dos 61 passes que tentou (82%), acertou as duas bolas longas que tentou e deu incríveis 5 passes chave. Além de suas qualidades admiráveis na armação e organização do jogo, Mané também é um especialista em interpretar o jogo e abrir espaços para seus companheiros.

Van Dijk avança com a bola e Mané percebe o movimento do zagueiro.
Mané deixa sua posição, recua para receber o passe e arrasta um defensor do Leeds. Esse movimento cria um buraco nas costas da defesa adversária que Van Dijk pode explorar.
Van Dijk ocupa o espaço criado pelo movimento de Mané.
Outro lance: Salah tem a bola na faixa central do campo.
Novamente, Mané sai da posição de camisa 9 e recua, atraindo a marcação de um defensor. Isso abre um espaço nas costas desse defensor que Thiago pode aproveitar.
Graças ao espaço que Mané criou, Thiago pode atacar a entrada da área a partir de um lançamento de Arnold.

Fluidez no campo de ataque

Um trio de meio-campistas altamente inventivo, um “camisa 10” na lateral-direita, uma bala de canhão na lateral-esquerda e um trio de ataque móvel, ágil e criativo. Tudo isso nas mãos de um dos melhores treinadores do mundo, e que faz questão que seus jogadores tenham liberdade e se sintam confortáveis dentro de campo: é a receita para o sucesso do Liverpool nas últimas temporadas.

Klopp dava a seus jogadores total liberdade para sair jogando e para avançar em campo; logo, não seria justamente no terço final, onde a inventividade e o improviso dos jogadores é mais importante, que o alemão abriria mão desses conceitos. Com o Liverpool postado no campo de ataque e preparado para atacar a área, os jogadores tinham ainda mais liberdade. Desmarques, ultrapassagens, movimentações, trocas de posição e assimetria marcavam um Liverpool que buscava vantagens sobre a linha defensiva adversária com muita mobilidade. Não havia posição marcada ou uma estrutura pré-definida a ser seguida: Fabinho podia aparecer na entrada da área, Curtis Jones podia atacar ambas as pontas, Salah e Díaz trocavam de lado e encostavam por dentro, Arnold ficava onde bem entendesse e Mané parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo.

O Liverpool no campo de ataque: Salah fica bem aberto para abrir espaços por dentro para a infiltração de Arnold. Robertson sai do flanco esquerdo para se aproximar da jogada, enquanto Curtis Jones aproveita o espaço deixado pelo lateral. Mané ataca a área com Arnold, e Díaz vem de trás. Matip tem liberdade para carregar a bola até o ataque, enquanto Fabinho fica na base da jogada.
Outro lance: Arnold e Curtis Jones ficam bem abertos, Matip e Thiago se posicionam na base da jogada e os 3 atacantes ficam bem próximos. Mané e Luis Díaz trocaram de posição.

Vou usar esse trecho do texto para tecer uma leve crítica ao termo “caos organizado” e seus variantes. Durante muitos anos, o mundo do futebol achava que organização, tática e treinamento se resumiam à defesa, enquanto o ataque era apenas fruto da intuição e do entrosamento dos jogadores ofensivos. Essa noção só foi se quebrar quando Guardiola e seu Barcelona encantaram o mundo: os Blaugranas tinham um ataque tão complexo que forçou muitos a abandonar a ideia de que não havia tática e organização no ataque e a começar a estudar os padrões e a estrutura do Barcelona de Guardiola. No entanto, esse processo de analisar organizações ofensivas e tratá-las como algo pensado e planejado está apenas começando e, por isso, muitos acabam considerando apenas os ataques posicionais como algo de fato treinado e “mecanizado”. Assim, ataques funcionais como o de Klopp acabam ganhando o rótulo de bagunçados e sempre são chamados do mesmo jeito: caos organizado.

Se referir à esse tipo de ataque como caos, bagunça, improviso e afins serve apenas para diminuir o trabalho do treinador e homogeneizar o futebol mundial, pois isso cria uma noção de que o único ataque realmente planejado, estudado e treinado é aquele que usa uma estrutura posicional. Klopp é a resposta definitiva a esse pensamento: ele entende as características de seus jogadores e monta seu time para deixá-los o mais confortável possível dentro de campo, com bastante liberdade; porém, a partir disso, o alemão começa a instituir seus “procedimentos combinados” com seu elenco. Klopp parte de um princípio que dê liberdade aos jogadores e potencialize suas características, mas que usa isso como base para criar um ataque altamente coordenado e planejado, com padrões muito complexos e movimentos sincronizados, que tem a receita para destruir todas as defesas da Europa. Caso contrário, o ataque do Liverpool seria apenas um enorme “bate-cabeça”. Por isso Klopp é uma referência em organização ofensiva: sem tirar a liberdade de seus jogadores, ele é capaz de criar uma estrutura de ataque complexa, planejada e muito bem treinada.

A resposta de Klopp: intensidade com a bola, ataque funcional, movimentação e fluidez

Mesmo sendo o dono da posse de bola e podendo ditar o ritmo a partir dela, Klopp não perdeu de vista sua principal característica como treinador: a intensidade. No entanto, o Liverpool foi além de ser intenso ao pressionar, contra-pressionar e contra-atacar, e começou a imprimir essa intensidade a partir da posse de bola. Klopp é adepto do futebol de “um toque”: enquanto seu rival Guardiola construiu uma escola onde seus jogadores, para dominar o espaço e jogar com calma, precisam dar dois ou mais toques na bola para controlá-la melhor e ter mais tempo para pensar e agir, Klopp prefere que seus jogadores deem poucos toques. Isso permite que seu Liverpool rode a bola com muita rapidez, desnorteando a defesa adversária que não consegue acompanhar o toco y me voy do time de Merseyside: um jogador recebe a bola, passa rapidamente e logo se desloca, pronto para receber em outra posição. Isso imprime uma sensação de intensidade ao Liverpool mesmo mantendo a posse por 60% do tempo, pois a bola nunca fica parada.

Klopp consegue isso através de seu ataque funcional. Juntando muitos jogadores em um espaço reduzido no campo (normalmente pela faixa direita), o Liverpool cria uma rede de linhas de passe muito complexa, onde o jogador que recebe a bola sempre tem inúmeras opções muito próximas. Além disso, essa aglomeração acaba dando ainda mais liberdade para desmarques, trocas de posição e inúmeras movimentações dos jogadores. Como visto aqui, ninguém tem posição marcada e não há uma estrutura pré-definida a ser seguida. Para Klopp, os movimentos dos jogadores devem ser coordenados a partir de suas funções, sem prendê-los a posições pré-definidas. É o ataque funcional no mundo moderno, nada de caos organizado. Assim, o alemão imprime em seu time um modelo fluido de ataque, onde as funções dos jogadores são a parte mais importante. O dever de Klopp, como dito antes, é tornar o futebol menos aleatório através de seus “procedimentos combinados” e da coordenação dos movimentos dos jogadores. No entanto, a base desses mecanismos deve ser sempre as características, virtudes e funções de cada integrante do elenco do Liverpool. Se Arnold fica mais confortável atuando mais por dentro, Mané é melhor aproveitado na faixa central do ataque e Thiago deve sempre estar próximo da bola, por exemplo, Klopp começará a coordenar os movimentos desses jogadores a partir disso: Arnold terá liberdade para ficar por dentro, Mané será o falso 9 e Thiago será o armador na base da jogada. Em “Guardiola Confidencial”, Klopp foi reverenciado pelo autor Martí Perarnau como o senhor dos espaços; alguns anos depois, Jürgen com seu ataque funcional também seria o senhor da bola.

2. A resposta de Joachim Löw

Joachim Löw conquistou a Copa do Mundo de 2014 pela Alemanha, além de levar a Nationalmannschaft à semifinal da Copa de 2010, à final da Euro 2008 e à semifinal das Euros 2012 e 2016. Foto: Reprodução/Twitter DFB.

Depois de Joachim Löw ser semifinalista na Copa de 2010 e campeão da Copa de 2014, o novo dilema do futebol alemão começou a preocupar o treinador. Além disso, a Nationalmannschaft teria que se preparar para a Copa de 2018 sem 2 de suas grandes referências: o meia Bastian Schweinsteiger e o capitão Phillip Lahm, ambos aposentados da Seleção.

Justiça seja feita, a Alemanha de Löw já era um time mais acostumado a usar a posse de bola ainda na Copa de 2014. Jogi talvez seja o mais influenciado por Pep Guardiola de todos os três treinadores analisados aqui, e já mostrava essa influência no Mundial do Brasil. Löw chegou a deixar Khedira e Schweinsteiger no banco para escalar Lahm no meio de campo, marca registrada do Bayern de Guardiola, além de usar bastante a posse de bola nos jogos contra Gana e Argélia, por exemplo. No entanto, ao longo do torneio, a Alemanha se mostrou um time bastante flexível e, principalmente na infame semifinal contra o Brasil, exibiu um típico futebol de intensidade, pressão e contra-ataque.

Foi no ciclo para a Copa de 2018 onde saber usar a posse tornou-se essencial. Na maioria dos jogos, a Alemanha teria que ficar 60%, 70% e até 80% do tempo com a bola, encarando times fechados, ávidos por um contra-ataque. Por isso, Löw não podia se dar ao luxo de jogar de qualquer jeito e perder muitas bolas, pois isso acabaria dando ao adversário uma chance de contragolpear uma Alemanha que jogava com uma defesa alta e exposta. Assim, a Nationalmannschaft precisava saber como ocupar o campo de ataque, desmontar os sistemas defensivos adversários com a posse de bola e, assim, dominar os jogos. Para exemplificar melhor, vamos olhar a fundo o jogo entre Alemanha e Irlanda do Norte, na fase de grupos da Euro 2016.

Escalação da Alemanha para o jogo contra a Irlanda do Norte, válido pela Euro 2016.

Saída de bola e a base dos conceitos de Löw

A Alemanha tinha excelentes passadores desde sua primeira linha: Neuer já surgiu como um goleiro seguro com os pés e só cresceu no quesito ao ser treinado por Pep Guardiola. O mesmo vale para Hummels e Boateng, dois zagueiros refinados tecnicamente, com uma excelente qualidade de passe e muita tranquilidade para sair jogando mesmo sob pressão. Na dupla de volantes, ainda mais qualidade: Khedira sempre foi mais conhecido por sua força e vigor físico, importantíssimos na hora de pressionar e de atacar, mas de forma alguma comprometia com a posse de bola. Kroos, no entanto, era o melhor nisso: surgiu como um meia aberto, explodiu no Bayern como um meia-atacante, começou a jogar mais recuado com Guardiola e construiu sua carreira no Real Madrid como um volante passador. Kroos era um jogador que cada vez mais se sentia confortável em receber a bola em posições mais recuadas, diretamente dos zagueiros, e organizar o time desde trás com sua visão de jogo e passes invejáveis.

Com isso, Löw começava a construir a saída de bola da Alemanha. A Nationalmannschaft também tinha outros excelentes passadores, como Kimmich na lateral e Özil no meio de campo, mas Löw preferia não envolvê-los nessa fase do jogo. Como dito antes, de todos os três treinadores, Jogi foi o mais influenciado por Pep Guardiola e seus conceitos posicionais: na Copa de 2014, depois de apenas 1 ano do catalão na baviera, Löw já promovera diversos ajustes na Alemanha para aproximá-la do novo Bayern de Munique. A Euro 2016 foi disputada logo após Guardiola encerrar sua passagem pelo futebol alemão, e o Jogo de Posição estava mais impresso que nunca pelo país. Löw abraçou esse processo e montou uma Alemanha extremamente posicional, começando já pela saída de bola.

A ideia do ataque posicional é dominar os espaços do campo e atacar a partir deles (por isso, Guardiola prefere chamá-lo de ataque por zona). No entanto, para dominar os espaços, o time precisa se espalhar em campo e ocupar vários “quadrados” imaginários: quando um jogador deixa seu quadrado, aquele espaço não está mais ocupado e, por isso, o jeito de atacar do time fica comprometido. Desse modo, todos os jogadores de linha devem respeitar as posições demarcadas pelo treinador.

A principal diferença entre Löw e Guardiola é a faixa do campo que eles querem controlar. Guardiola acredita que o meio de campo é a zona que deve receber maior atenção e, por isso, a preenchia: seu Bayern de Munique contava com 2 zagueiros, um volante, 2 laterais, 2 meias e às vezes um falso 9 nas posições centrais para dominar o meio de campo. Löw, por sua vez, se preocupa muito mais em preencher a linha de atacantes para ocupar a defesa adversária e criar superioridade no terço final, não no meio de campo. Por isso, Löw prefere abrir mão de passadores como Kimmich e Özil na saída de bola: para o treinador, é muito mais importante que eles fiquem no ataque e ocupem a linha defensiva do adversário do que se envolverem na saída de bola e comprometer a superioridade numérica dos atacantes.

Por isso, Löw contava com apenas 4 jogadores de linha realmente envolvidos na saída de bola, apostando muito mais na qualidade deles do que na quantidade. Jogi armava-os em uma estrutura de 2+2, com a dupla de zaga logo atrás dos 2 volantes. No entanto, isso poderia variar, esporadicamente, para um 3+1: como Kroos gosta de receber a bola em regiões bem recuadas do campo, o meio-campista do Real Madrid poderia baixar para se juntar aos zagueiros, formando um trio de “defensores” com Khedira à frente. Assim, a Alemanha se separava em 2 blocos: os 4 da saída de bola e 6 atacantes.

Neuer inicia a saída de bola e Alemanha rapidamente estrutura seu 2+2 para sair jogando. Observe como os outros jogadores alemães na imagem estão se distanciando da saída de bola, indo para suas posições no campo de ataque.
Alemanha em seu 2+2. Observe, mais uma vez, que os demais jogadores alemães se afastam da zona da saída de bola, indo em direção ao ataque.
Kroos baixa entre os zagueiros, formando um 3+1 na saída de bola. Os outros jogadores observam de longe, sem interferir, respeitando suas posições.

O 2–2–5–1 posicional com a bola

O 2–2–5–1 da Alemanha de Löw.

Ao avançar em campo, a Alemanha exibia ainda mais seu ataque posicional “à moda Löw”, que espalhava seus jogadores em campo e preenchia a linha de atacantes para obter superioridade a partir dela: para isso, a Nationalmannschaft se estruturava em uma espécie de 2–2–5–1. O 2+2 da saída de bola se mantinha: Hummels e Boateng ficavam mais recuados e se revezavam para, de vez em quando, avançar com a bola e procurar passes mais verticais. Kroos e Khedira compunham uma dupla de volantes que sempre procuravam ficar na base da jogada. Os perfis distintos dos dois meio-campistas indicavam suas diferentes funções dentro de campo: Khedira atuava como um infiltrador, e frequentemente abandonava a linha de volantes para se juntar aos atacantes e pisar na área. Kroos, por sua vez, continuava como o principal distribuidor e normalmente ficava mais pelo lado esquerdo, sua faixa de campo preferida. Por isso, Kroos tocou muito mais na bola e deu muito mais passes, enquanto Khedira atuava em uma área um pouco mais adiantada.

Dados de Kroos e Khedira indicam suas diferentes funções para a Alemanha de Löw. Kroos deu o dobro de toques na bola e passes, mesmo jogando apenas 20 minutos a mais. Além disso, compare o mapa de calor: o de Kroos está mais preenchido, indicando mais participação, e está concentrado à esquerda, perto do círculo central. Khedira, por sua vez, tem um mapa menos preenchido, mas que indica uma atuação mais ofensiva: ele pegava a bola perto da meia-lua adversária, e pisou bastante na área.

Os laterais Kimmich e Hector atuavam como autênticos pontas. Kimmich acabaria desenvolvendo uma carreira de muito sucesso como um jogador de faixa central ao se tornar um excelente volante alguns anos depois, mas durante esse período Löw o usou, assim como Hector, como ponta. Os dois atuavam extremamente avançados e abertos, dando amplitude máxima ao time e abrindo bastante o campo. Por atuarem como pontas quando a Alemanha tinha a bola, a função de Kimmich e Hector era fixar os laterais da Irlanda do Norte e espaçar o máximo possível a defesa adversária.

Mapas de calor de Kimmich e Hector na partida contra a Irlanda do Norte. Observe como eles ficavam bem abertos e avançados, com o mapa bem mais preenchido no terço final do campo.

As posições de Kimmich e Hector procuravam espaçar a linha de defesa da Irlanda do Norte para abrir espaços por dentro. Na faixa central, Löw escalou 4 atacantes: Özil, Götze, Müller e Mario Gómez, que se beneficiariam dos espaços criados por lá.

Começando pelo final, Mario Gómez era um “camisa 9” clássico. O centroavante era pouco participativo na construção das jogadas e não se movimentava muito, atuando bem enfiado na área. Sua função era chamar a atenção da dupla de zaga da Irlanda do Norte e, por atuar como uma referência, fixá-los para abrir ainda mais espaços por dentro. Ele ficava logo a frente de Thomas Müller, que atuava como segundo atacante. Partindo de trás de Mario Gómez, Müller não era o segundo atacante armador que ficou tão popular no Brasil e na Espanha, por exemplo: o jogador do Bayern era bem menos participativo e mais incisivo, com bastante poder de fogo e presença de área. Müller costumava sair da posição de segundo atacante para atacar o lado direito do ataque, aproveitando o espaço criado por Mario, que fixava os zagueiros, e Kimmich, que fixava o lateral. Assim, muitas vezes a Alemanha contava com uma dupla de ataque, quando Müller praticamente se alinhava a Gómez.

Mapa de calor de Mario Gómez e Thomas Müller. O centroavante tem um mapa muito pouco preenchido, 100% concentrado nas regiões centrais com uma leve tendência à esquerda. Müller, por sua vez, atuava bem mais solto no ataque, normalmente pelo lado direito, e tinha a liberdade de atacar a área junto de Gómez.

Por fim, a Alemanha tinha duas potências criativas em Götze e Özil. Com Khedira e Kroos como volantes e Mario Gómez e Müller como atacantes, alguém tinha de preencher o espaço entre as linhas, além de ter mais capacidade de armação e articulação em uma faixa mais avançada do campo. Para isso, Löw contava com Götze e Özil. Mario Götze era o meia-atacante pela esquerda, e se posicionava no espaço entre zagueiro-direito e lateral-direito da Irlanda do Norte. Ele tinha bastante liberdade para se movimentar por lá, mas não saía muito daquela faixa de campo e talvez se portasse mais como atacante do que meia: ele circulava bastante pelas faixas centrais do campo, mas não fez um grande jogo e foi mais decisivo em uma posição mais avançada do que como um típico armador. Özil, por sua vez, ainda estava em seus melhores momentos e tinha feito uma bela temporada 15/16: jogou 45 jogos pelo Arsenal, marcando 8 gols e distribuindo 20 assistências. Enquanto Kroos era o organizador do time partindo da linha dos volantes, Özil era o playmaker que atuava mais avançado, armando o ataque. Ele era quem mais tinha liberdade e, apesar de partir do lado direito do campo, circulava pela faixa central livremente. O meia se beneficiava muito disso e foi o melhor jogador da Alemanha, criando um volume ofensivo absurdo e gerando uma chance de gol atrás da outra.

Mapa de calor de Mario Götze e Mesut Özil na partida contra a Irlanda do Norte. O de Götze é menos preenchido, mais focado no lado esquerdo e com mais presença na área. O de Özil indica sua liberdade em campo, circulando por todos os lados do ataque e atuando mais como meia do que como atacante.

A partir dessa estrutura, Löw tentaria buscar superioridade e criar problemas para a Irlanda do Norte. Exceto por Özil e Kroos, todos os jogadores tinham posições bem demarcadas para preencher, e a Alemanha apresentava poucas aproximações ou assimetrias em seu ataque. A partir de seus laterais, a Nationalmannschaft abria o campo para criar espaços por dentro, permitindo que seus atacantes circulassem por lá. Além disso, o time contava com uma dupla de volantes que se complementava, sempre presente na base da jogada. O plano de Löw estava pronto, restava “apenas” executá-lo.

Posicionamento médio dos jogadores da Alemanha mostra exatamente o 2–2–5–1 (ou 2–2–6) de Joachim Löw. Kroos mais à esquerda e Khedira centralizado, Kimmich e Hector bem abertos, Müller como atacante pela direita, Götze como atacante pela esquerda, Mario Gómez como centroavante e Özil como o “camisa 10”.
Alemanha em seu 2–2–5–1: Boateng e Hummels como zagueiros e Kroos e Khedira na base da jogada. Kimmich e Hector abrem bastante o campo, e os 3 meias atuam por dentro. Mario Gómez fixa os zagueiros.
Mais uma vez, o 2–2–5–1 da Alemanha (Hummels e Hector não aparecem na imagem). Observe Müller por trás de Gómez e Özil e Götze nas entrelinhas, com Kimmich e Hector abertos: forma-se uma linha de 5 atacantes por trás de Gómez.
A Alemanha apresentava muitas trocas de posição, mas elas aconteciam dentro da lógica posicional do ataque de Löw. Assim, os jogadores eram livres para se movimentarem e trocarem de posição, mas a estrutura devia ser mantida. Aqui, Hector cortou para dentro e se posicionou na faixa mais central; por isso, Götze saiu do centro para ir para o lado, preenchendo o espaço deixado por Hector e mantendo a estrutura em 2–2–5–1.
Outro exemplo de troca de posição que não altera a estrutura do ataque: Özil caiu por dentro e está por trás de Mario Gómez. Por isso, Müller foi para a direita. Em seguida, Kimmich foi para o centro e Müller, para a ponta: o 2–2–5–1 permanece, mas as peças se movimentam dentro dele.

O quadrado no meio de campo

Os encaixes de marcação de Löw teria que manipular para obter superioridade no meio de campo.

A escolha de Löw de esvaziar o meio de campo para preencher a linha de atacantes é 100% intencional e veremos suas vantagens em breve. No entanto, isso deixa uma fragilidade clara: o meio de campo está vazio. Kroos e Khedira são excelentes volantes, mas ainda não criaram a capacidade de multiplicação. Assim, os dois frequentemente se encontravam isolados e seriam alvos fáceis para o adversário, que conseguiria superioridade numérica no setor com certa facilidade (especialmente a Irlanda do Norte, que marcava em 4–1–4–1).

Para superar isso, Löw teve uma ideia que trazia muitos riscos, mas também poderia dar à Alemanha muitas recompensas se bem executada. A partir de seu ataque posicional, Löw tinha total controle dos espaços no campo de ataque e poderia manipular o 4–1–4–1 norte-irlandês como quisesse. As vantagens começavam com Mario Gómez, que fixava ambos os zagueiros da Irlanda do Norte; assim, Müller teria que ser marcado pelo primeiro volante. No entanto, como o jogador do Bayern avançava bastante e normalmente se juntava a Gómez, o primeiro volante acabava sendo arrastado para fora da zona de meio de campo, criando o primeiro espaço. Em um encaixe natural, os pontas da Irlanda do Norte acompanhariam Özil e Götze, os meias mais avançados que se posicionavam nos “meio-espaços” (zona do campo entre a faixa central e as laterais), enquanto os meias norte-irlandeses avançavam a marcação nos volantes Kroos e Khedira.

Esse encaixe de marcação escolhido pelo treinador da Irlanda do Norte acabou criando um buraco entre as linhas de marcação do time: os pontas tentavam acompanhar os meias alemães, mas não eram marcadores natos e tinham dificuldade de cobrir as movimentações e trocas de posição entre Götze e Özil. Assim, como os meio-campistas avançavam para marcar os volantes alemães, as entrelinhas norte-irlandesas ficavam vazias.

Pontas norte-irlandeses (em azul) acompanham Özil e Götze, enquanto Kroos e Khedira atraem a marcação dos meio-campistas da Irlanda do Norte (em amarelo). Isso acaba criando um enorme espaço entrelinhas (hachurado) para Özil e Götze explorarem; assim, a Alemanha forma um quadrado no meio de campo para bater a Irlanda do Norte.
Observe como a Alemanha manipula os espaços para criar superioridade no meio de campo. Primeiro, Götze sai do meio e vai para a lateral, atraindo a marcação de um dos pontas norte-irlandeses com ele. Hector vai para dentro mas fica mais avançado, prendendo o lateral (em preto). Em seguida, Kroos recebe a bola no meio de campo, atraindo a marcação de um dos meio-campistas. Isso cria um enorme espaço (hachurado) entre as linhas, que Özil pode explorar.
O ponta que marcava Özil não consegue acompanhá-lo, e o meia recebe com muita liberdade entre as linhas. Os meio-campistas que marcaram Khedira e Kroos precisam preencher muito campo para voltar, e o ponta que marcava Götze se vê obrigado a sair para marcar Özil. No entanto, Götze fica livre, já que o lateral por aquele setor precisa marcar Hector; assim, o meia fica livre para atacar a ponta.

Özil, a chave: criando triangulações pelas laterais

A liberdade de Özil era a chave da superioridade alemã nos lados do campo.

Encontrado o mecanismo para obter superioridade no meio de campo, Löw agora precisava encontrá-la nas laterais. O treinador já sabia exatamente a estratégia para isso: ao invés de usar os lados do campo com pontas que simplesmente receberiam bolar longas em velocidade para levar a bola à linha de fundo e cruzar, ele preferiu apostar em uma estratégia muito usada por Guardiola: as triangulações.

Ao chegar no Bayern de Munique, Guardiola se deparou com uma liga de estilo muito vertical, radicalmente diferente do estilo do Campeonato Espanhol. Por isso, o catalão percebeu que, além de construir superioridade no meio de campo, teria que dar uma atenção especial às laterais também para aproveitar a verticalidade de seus pontas. Assim, Guardiola criava triângulos nos lados do campo a partir de uma estrutura bem definida: o lateral ficava na base, o meia ficava por dentro e o ponta, bem colado à linha lateral. Assim, esses três jogadores se aproximariam para criar linhas de passe, interagir bastante e criar superioridade. Além disso, Guardiola incentivava que eles trocassem bastante de posição, com o meia baixando para ocupar o lugar do lateral, o lateral abrindo para ocupar o lugar do ponta, o ponta cortando para dentro para ocupar o lugar do meia e assim por diante: desse modo, o triângulo “girava”, confundindo a marcação adversária e criando espaços.

Os triângulos que Guardiola montava pelos lados do campo para obter superioridade.

Löw olhou com muito carinho para a ideia de Guardiola e resolveu adaptá-la à seus conceitos. Jogi, então, abraçou as triangulações tão comuns em ataques posicionais, mas precisou criar uma forma própria para aplicá-las em seu esquema.

Guardiola costumava escalar o Bayern de Munique em uma estrutura que partia de um 4–3–3: assim, o catalão tinha 3 jogadores no meio de campo. Além disso, os laterais fechavam para atacar por dentro, enquanto os pontas ficavam por fora. Isso naturalmente criaria um triângulo onde o lateral ficava na base, o meia ficava por dentro e o ponta ficava bem aberto.

A Alemanha, por sua vez, partia de um 4–2–3–1. A primeira mudança nos triângulos foi que Löw inverteu a área de atuação de pontas e laterais: os “pontas” da Alemanha eram, na verdade, meias (Müller e Götze) e, por isso, Löw preferiu colocá-los por dentro, posição mais confortável para eles, e deixou os lados do campo para os laterais. No entanto, havia um problema maior: Guardiola jogava com três meio-campistas; isso significava que mesmo com os meias se aproximando dos lados do campo, a faixa central não ficaria esvaziada, pois o volante ainda estaria por lá. A Alemanha, em seu 4–2–3–1, tinha apenas 2 jogadores no meio de campo; se ambos se aproximassem dos lados do campo, a faixa central ficaria vazia. Frente a isso, Löw fez uma mudança relevante no processo de formação desses triângulos. Kroos e Khedira, os volantes, não sairiam do meio, e as triangulações surgiriam a partir da liberdade dada a Özil.

Como visto antes, Özil era a peça que mais fora agraciada com liberdade dentro do esquema posicional de Löw. O meia partia de uma posição mais à direita, mas tinha total liberdade para circular pelo ataque e organizar o time do lugar que quisesse; por isso, normalmente Özil estava sempre perto da bola. Löw aproveitou as movimentações de seu principal meia para criar as triangulações. Ao contrário de Guardiola, que tinha um triângulo pronto em cada lado do campo, Jogi deixava apenas duas peças mais posicionadas: o ponta e o lateral. Assim, quando a bola chegava a um lado do campo, Özil se aproximava, ocupava o lugar vago e formava o triângulo. Essa estrutura beneficiava tanto Özil, que poderia se mover livremente e estar sempre perto da bola, quanto os volantes, que podiam se aproximar da jogada sem comprometer as posições mais centrais.

Bola chega no lado direito: Kimmich está aberto e Müller realizou seu clássico movimento, saindo de trás de Mario Götze para se posicionar mais à direita. Assim, Özil se aproxima da jogada e forma o triângulo. O movimento de Özil permite que Kroos fique próximo da bola, na base da jogada, sem comprometer sua posição de volante.
Outro lance, com a jogada acontecendo pelo lado esquerdo. Hector está bem aberto e Götze mais por dentro. Özil se aproxima da jogada e forma o triângulo, se posicionando na base. Mais uma vez, Kroos pode se aproximar sem comprometer o meio de campo.

Atacando a linha defensiva adversária: a importância de ter 6 atacantes

O 2–2–6 (ou 2–2–4–2) que a Alemanha usava para atacar a linha defensiva da Irlanda do Norte.

Joachim Löw abria mão de um maior conforto no meio de campo para obter vantagens nessa fase do jogo: ocupar o campo de ataque. Quando a Alemanha se posicionava no terço final e se preparava para atacar a área, o time aproveitava sua linha de atacantes preenchida para sobrecarregar a linha de defesa da Irlanda do Norte e criar chances assim.

O 2–2–5–1 que a Alemanha usava para avançar em campo acabava se tornando uma mistura de 2–2–4–2 e 2–2–6 à medida que os jogadores chegavam mais perto da área adversária: Müller abandonava de vez a posição de segundo atacante e ficava à direita de Mario Gómez. O espaço à esquerda do centroavante era ocupado por Götze, que saía da linha dos meias para se tornar um atacante. Os lados do campo eram ocupados por Kimmich e Hector como de costume, e Özil circulava por trás dos atacantes, ocupando quaisquer espaços que estivessem livres. Além disso, Khedira também era uma importante contribuição ofensiva, saltando da dupla de volantes para atacar a área como um infiltrador, agindo como um sétimo elemento ofensivo.

Assim, a Alemanha sobrecarregava a linha de defesa da Irlanda do Norte, que precisava se desdobrar para marcar tantos jogadores de ataque. A linha de 4 defensores era totalmente ocupada por Mario Gómez, que fixava os zagueiros, e por Kimmich e Hector, que atraíam a atenção dos laterais. A linha de meio de campo lidava com uma dúvida: ou ela marcava os atacantes alemães e abria espaço para Kroos e Khedira desequilibrarem com seus ótimos passes longos ou ela saltava para pressionar os volantes e abria um espaço entre as linhas para Özil, Müller e Götze circularem.

Com tantos jogadores atacando simultaneamente a defesa norte-irlandesa, a Alemanha se beneficiava muito de seus grandes passadores. Kimmich e Hector produziam cruzamentos a partir das faixas laterais do campo, Kroos é uma ameaça única nos lançamentos longos e Özil, recebendo na entrada da área, tem uma habilidade inigualável de quebrar linhas de marcação através do passe. Desse modo, Löw conseguia fazer com que qualquer um desses produzisse um passe perigoso, enquanto outros 5, 6 ou 7 jogadores aproveitavam os espaços para infiltrar na defesa norte-irlandesa e causar um caos na área.

2–2–4–2 da Alemanha no campo de ataque. Volantes na base da jogada, 2 jogadores abrindo o campo, 2 meias e 2 atacantes.
Nesse lance, fica evidente a vantagem de uma linha de ataque preenchida. Özil trocou de posição com Khedira, que ataca a entrada da área. O volante atrai a marcação de um jogador norte-irlandês, deixando Götze livre de marcação. Mario Gómez fixa os dois zagueiros e o lateral presta atenção em Kimmich, com a bola, abrindo espaço para Müller atacar a área. Hector avança pelo lado oposto e não tem marcação, já que o lateral fica dividido entre marcá-lo e liberar espaço para Götze ou marcar Götze e liberar espaço para Hector.
Outro lance: aqui, a Alemanha ataca a Irlanda do Norte com 7 jogadores (os 6 atacantes de sempre + Khedira). Observe a dificuldade que a linha defensiva norte-irlandesa (em amarelo) tem para marcar tantos jogadores: Müller, Götze e Khedira atacam o espaço entre defesa e meio de campo, e concentram a marcação da Irlanda do Norte por lá. Em decorrência disso, Özil, Hector e Kimmich estão completamente livres.
A bola é invertida para o lado esquerdo, e a linha defensiva tem que se desdobrar para chegar até lá. O lateral chega antes, criando um buraco entre ele e o zagueiro. Além disso, o volante da Irlanda do Norte (em azul) salta para marcar Özil (que recebe a bola). Esses dois movimentos (da linha defensiva e do volante) criam um espaço enorme na entrada da área para Götze atacar.
Götze recebe a bola por lá e invade a área, liberando um espaço na entrada da área que Özil pode ocupar. Além disso, Götze atrai a marcação de um dos zagueiros norte-irlandeses, abrindo um buraco na zaga da Irlanda do Norte que Mario Gómez pode aproveitar.
Mario Gómez recebe por ali e Götze ataca o lado esquerdo da área para, possivelmente, receber a bola de volta. Essa movimentação atrai o bloco da Irlanda do Norte, que tenta fechar os espaços de Götze e Mario Gómez. Isso resulta em duas coisas: o lado esquerdo fica vazio, pronto para ser atacado por Hector. Além disso, o centro da área também se esvazia, e pode ser atacado por Müller e Özil. A Alemanha sempre causava a impressão de cobertor curto na Irlanda do Norte que, mesmo se desdobrando na marcação, acabava deixando alguém livre.

A resposta de Löw: controle dos espaços, ataque posicional e linha ofensiva preenchida

O ciclo da Alemanha para a Copa do Mundo de 2018 foi praticamente irretocável, embora o final tenha sido trágico. Joachim Löw levou a Nationalmannschaft para as semifinais da Euro 2016 e, após ser derrotada para a França no torneio, engatou um período de invencibilidade que durou até março de 2018. A eliminação na fase de grupos no Mundial da Rússia pode poluir a análise do ciclo, mas a Alemanha foi, sem dúvidas, um dos melhores times do mundo entre 2014 e 2018.

A complexidade tática do time de Löw cresceu exponencialmente. A Alemanha já tinha tido seus momentos de mais posse de bola na Copa de 2014, é verdade, mas acabou se dando bem melhor quando voltava a um futebol mais intenso, de pressão alta e contra-ataque letal. Desde então, Löw percebeu que não havia para onde correr e criou um time extremamente capaz de dominar a bola, avançar em campo com calma e acelerar no momento certo. A Alemanha não era mais o time que só sabia pressionar e contra-atacar, era um time extremamente complexo que controlava o ritmo do jogo e forçava seu adversário a segui-lo, seja ele mais lento na hora de progredir em campo ou mais rápido na hora de atacar a área. Joachim Löw montou um belíssimo ataque posicional, que tinha controle de todos os espaços do campo e total domínio da posse, mas que não perdeu a característica ofensiva dos anos anteriores e continuava sendo plenamente capaz de bombardear a área adversária, mas agora com muito mais repertório.

3. A resposta de Hansi Flick

Em sua passagem pelo Bayern de Munique, Hansi Flick conquistou o “sextete” ao vencer todos os 6 títulos possíveis de uma única temporada. Foto: Reprodução/Twitter Bayern de Munique.

Se Jürgen Klopp foi o treinador que mais sofreu com o dilema, Hansi Flick foi definitivamente aquele que teve que encará-lo mais rápido. Depois de sair do Hoffenheim em 2005, Flick ficou quase 15 anos sem ser o treinador principal de um time, quando em novembro de 2019 caiu em seu colo a “simples” missão de comandar o Bayern de Munique.

Para entender esse processo precisamos voltar um pouco no tempo. A temporada 17/18 do Bayern de Munique foi uma montanha russa de emoções: Carlo Ancelotti não conseguiu construir um bom trabalho no clube bávaro e, depois de perder o vestiário, foi demitido ainda em setembro. Willy Sagnol, auxiliar técnico, assumiu o time como interino até que a diretoria do clube conseguisse convencer Jupp Heynckes a sair da aposentadoria e voltar a treinar o Bayern até o final da temporada.

Para a temporada 18/19, o Bayern fez uma escolha estranha e optou pelo croata Niko Kovač para comandar o time pelos próximos três anos. O treinador estava à frente da Seleção Croata na Copa do Mundo de 2014 e, depois de um bom trabalho à frente do Eintracht Frankfurt, ele foi contratado pelo Bayern, mesmo que seu estilo de jogo não fosse exatamente o mais compatível com o clube.

A temporada instável do Bayern de Niko Kovač em 18/19 era apenas uma amostra da crise que explodiria em 19/20. Com futebol e resultados ruins, o croata foi demitido em novembro de 2019 depois de perder por 5 a 1 para o Eintracht Frankfurt, deixando o Bayern em um decepcionante quarto lugar na Bundesliga. Kovač não se ajudava; quando questionado sobre por que seu time não conseguia jogar um futebol de pressão e alta intensidade como os de Heynckes e Guardiola, ele afirmou que “precisaria dos jogadores certos para isso, pois não se pode dirigir a 200km/h em um carro que só alcança 100km/h”. Kovač perdera o vestiário totalmente, e a goleada para o Eintracht Frankfurt apenas confirmou uma demissão que já era inevitável. Em seguida, seu auxiliar Hansi Flick assumiu como interino.

O alemão faria com que a infame frase de Kovač envelhecesse muito mal. Hansi Flick, ao assumir, transformou o Bayern de Munique em um dos melhores times do mundo: em maio de 2020, o Flick tinha conquistado uma média de 2,5 pontos por jogo (contra 1,8 de Kovač), marcava 3,13 gols por jogo (contra 2,5 de Kovač) e tomava apenas 0,63 gols por jogo (contra 1,6 de Kovač). No entanto, a transformação mais importante foi justamente onde o croata afirmava não poder fazer nada. Flick transformou o Bayern no melhor time em pressionar alto no campo e sufocar seu adversário: um dado que indica muito bem isso é o “passes por ação defensiva” (PPAD, que indica quantos passes seu adversário consegue dar antes de uma ação defensiva do seu time, como um desarme — assim, quantos mais passes seu time permite, menos efetiva é a pressão): o Bayern foi de 11,5 PPAD sob Kovač para 8,5 sob Flick. Além disso, o alemão também aumentou o número de chutes após uma recuperação a menos de 40m do gol adversário (de 1,2 para 1,44). Flick revivia os melhores momentos do Bayern de Jupp Heynckes, um perfeito exemplo de “rolo compressor”: um time que pressionava a todo momento e, ao recuperar a bola, atropelava seu adversário em uma transição ofensiva.

A volta de Müller ao time, o crescimento de Alphonso Davies (ponta de origem) na lateral-esquerda e a explosão de Gnabry, Coman e Perišić indicavam um Bayern extremamente vertical, que acelerava sempre que podia e não se importava se o jogo virasse uma “trocação” desenfreada, pois seu poder de fogo era praticamente inigualável. No entanto, Flick estava no comando do grande Bayern de Munique e não podia se dar ao luxo de jogar apenas em transições; o clube bávaro teria que ficar com a bola e arrumar um jeito abrir as defesas fechadas, já que na maioria dos jogos o Bayern ficaria com a bola por, pelo menos, 60% do tempo. Frente a isso, Flick foi rápido em identificar o problema e construir uma organização ofensiva praticamente imparável, perfeito para enfrentar oponentes como o Schalke 04.

Escalação do Bayern para o jogo contra o Schalke, válido pela Bundesliga 20/21.

Saída de bola

Assim como a Alemanha de Löw, o Bayern de Flick começava suas jogadas separando seu time em 2 blocos: os 4 jogadores da saída de bola e os 6 jogadores de ataque. Assim, para sair jogando, o clube bávaro contava com 4 jogadores bem próximos da bola: os dois zagueiros (Süle e Boateng) e os dois volantes (Kimmich e Goretzka). A estrutura mais comum que o Bayern usava para sair jogando era o 2+2, com os zagueiros logo atrás dos volantes. Porém, o time também variava para um 3+1, quando um dos volantes baixava entre os zagueiros para formar uma linha de 3 à frente de Neuer. Normalmente os laterais (Pavard e Lucas Hernández) participavam do bloco dos atacantes e, por isso, não se aproximavam tanto da saída de bola, ficando mais avançados, abertos e distantes dos 4 jogadores que iniciavam as jogadas.

No entanto, Flick era bem menos rígido que Löw nessa fase do jogo e, embora não mostrasse a mesma flexibilidade de Klopp, permitia alguns ajustes e movimentações extras a seus jogadores no momento da saída de bola. A variação mais comum era o recuo de Pavard: zagueiro de origem, o francês fica bem confortável atuando mais recuado e frequentemente formava uma linha de 3 com os zagueiros na hora de sair jogando.

Saída de bola do Bayern de Munique: 4 jogadores mais próximos da jogada (2 zagueiros e 2 volantes) com os laterais abertos e avançados.
Mais uma vez: estrutura em 2+2 bem próxima da bola e laterais avançados e abertos.
Variação para estrutura em 3+1, com Kimmich entre os zagueiros e Goretzka a frente. Novamente, laterais bem abertos e avançados.
Estrutura em 3+1, agora com Goretzka entre os zagueiros e Kimmich mais a frente.
Variação da estrutura em 3+1 com Pavard formando o trio de zagueiros e Kimmich mais avançado.

Avançando em campo com a linha de atacantes preenchida

Para fazer seu Bayern de Munique avançar em campo, Flick também se inspirava em um dos conceitos da Alemanha de Löw, mas promovendo seus ajustes. Assim como na Nationalmannshcaft de Jogi, Flick fazia seu time avançar em uma estrutura posicional que preenchia a linha de atacantes.

No entanto, as semelhanças paravam aí. Na Alemanha de Löw, apenas Özil tinha alguma liberdade, enquanto os outros jogadores seguiam a rígida estrutura em 2–2–5–1, formando uma verdadeira linha de 5 atacantes por trás de Mario Gómez. Havia uma clara distinção dos blocos dos jogadores: 2 zagueiros, 2 volantes, 5 atacantes e 1 centroavante, todos bem alinhados dentro de suas respectivas linhas para alargar bastante a defesa adversária. Flick promove uma abordagem bem diferente, mostrando seu lado mais flexível.

A primeira grande diferença é que o Bayern não junta seus atacantes em uma única e extensa linha, pois prefere ter jogadores em diferentes faixas do ataque. A ideia de Flick é fundamentalmente diferente da ideia de Löw: enquanto Jogi quer preencher sua linha de atacantes para sobrecarregar a defesa adversária e criar problemas a partir disso, Flick prefere que seus jogadores não sigam uma estrutura tão rígida e possam se deslocar mais, pois ele quer que seus atacantes se posicionem em diferentes faixas do campo. O objetivo do Bayern de Munique é aproveitar que o time tem muitos jogadores à frente da linha da bola para ocupar vários espaços além da linha defensiva, como as entrelinhas e o círculo central. Para isso, Flick dá muita liberdade aos jogadores interiores, como Sané, Gnabry, Müller, Kimmich e Goretzka. Eles têm a liberdade de circular mais pelo ataque e ocupar quaisquer espaços vazios, não apenas aqueles na linha de defesa do adversário.

A outra diferença é a compactação. Enquanto Löw gosta de espaçar bastante seus jogadores para alargar a defesa adversária, Flick prefere deixá-los mais próximos. Seus jogadores mais abertos (normalmente Pavard e Lucas Hernández) não ficam colados à linha lateral, mas no limite do bloco defensivo adversário. Por dentro, os jogadores ficam bem próximos e compactados, para facilitar as movimentações e trocas de posição que permitem que o Bayern ocupe várias faixas do campo. Além disso, essa compactação cria mais linhas de passe curto, que acaba permitindo que os bávaros possam circular a bola com mais rapidez.

O Bayern construía seu ataque posicional com a estrutura da saída de bola: 4 jogadores na base da jogada, normalmente atrás da linha da bola (em alturas diferentes, claro), e 6 jogadores de ataque, na frente da linha da bola. A partir disso, havia muita movimentação. Pavard e Lucas Hernández, os laterais, eram os jogadores com a posição mais fixa: raramente saíam muito dos lados do campo. Na base da jogada, Kimmich e Goretzka também eram mais fixos, mas apresentavam diferentes movimentações e características. Kimmich é, provavelmente, o jogador mais criativo do Bayern de Munique: o volante é um típico “motorzinho”, que dita o ritmo da partida, faz a saída de bola e arma o time desde trás. Por isso, Flick se assegura de que Kimmich esteja próximo da bola, na base da jogada, sempre na condição ideal de distribuir o jogo e orientar a posse de bola do time com sua visão e seus passes. Goretzka apresenta características radicalmente diferentes e, por isso, é um excelente complemento a Kimmich: ele não é um armador tão qualificado quanto seu companheiro, mas compensa ao apresentar um vigor físico assustador (essencial na hora de pressionar), muita segurança defensiva e presença no campo de ataque, além de ter um excelente passe longo. Por isso, Flick o utiliza como um tradicional box-to-box (área-a-área), um estilo de meio-campista que preenche o campo todo, atuando desde faixas mais recuadas até a área adversária. Assim, Goretzka pode tanto fazer a saída de bola com os zagueiros (como visto antes) quanto se juntar aos atacantes.

Mapas de calor de Kimmich e Goretzka. Kimmich tem um mapa mais preenchido, e estava presente em mais áreas do campo. Goretzka também começava a jogada mais recuado, mas avançava de forma diferente: ele não avançava para armar o time como Kimmich, mas para servir de infiltrador e pisar na área, como um meia box-to-box. Por isso, seu mapa fica menos preenchido no campo de ataque: ele tocava muito menos na bola por lá que Kimmich, que era o armador.

Na linha ofensiva, a flexibilidade de Flick começa a ficar evidente. Os três meias do Bayern de Munique (Gnabry, Müller e Sané) têm total liberdade para trocar de posição e circular pelas mais diversas faixas do campo, mais por dentro ou mais por fora. Müller começava como o meia central do 4–2–3–1 do Bayern, mas tendia a cair mais pela direita (mais sobre isso na próxima seção) e atacar a última linha do Schalke 04, atuando ao lado de Lewandowksi como um segundo atacante (em um movimento muito semelhante ao que ele fazia na Seleção Alemã com Mario Gómez). Os meias abertos, Gnabry e Sané, atuavam como pontas. Bem espetados e adiantados, eles eram extremamente importantes em dar verticalidade ao time ao usar a velocidade e os dribles. Para potencializá-los, Flick não os prendia às laterais do campo e permitia que eles circulassem por faixas mais centrais, recebendo a bola em situações de mais perigo. Além disso, o treinador dava total liberdade para eles trocarem de posição. Era difícil determinar a posição de Gnabry e Sané no jogo, pois eles trocavam de lado frequentemente para variar as formas de atacar a defesa do Schalke. Quando Gnabry (destro) ficava na direita e Sané (canhoto) ficava na esquerda, eles eram muito acionados para levar a bola para a linha de fundo. Ao inverter a posição para jogar com o pé trocado, eles preferiam cortar para dentro para um chute ou um cruzamento partindo de uma região mais interna. Por fim, Lewandowski era um centroavante bem móvel, que não se limitava a fixar os zagueiros e ficava bem confortável em circular pelo ataque.

Os três meias do Bayern: mapas bem preenchidos indicam muita movimentação e trocas de posição entre eles, que se apresentavam em quaisquer áreas do campo.
Bayern avança em um 2–1–5–2. Kimmich fica bem próximo da dupla de zaga. A frente dele, uma linha de 5 atacantes, com 2 ainda mais avançados. Com essa estrutura, o Bayern preenche várias faixas de campo: ao invés de empilhar atacantes na linha de defesa adversária, Flick prefere recuar alguns para deixá-los mais próximos de Kimmich e prontos para atacar o espaço entre as linhas.
Bayern agora avança em um 3–1–6. Goretzka, atacante no lance anterior, agora e junta ao trio de zaga. Kimmich continua como volante e os atacantes formam uma linha de 6. Repare como Pavard recua para ficar mais próximo de Kimmich e Müller abre o campo: o 3–1–6 se transforma em um tipo de 3–2–5.
Bayern avança em uma estrutura posicional, mas espalha seus jogadores em várias faixas de campo, sem formar uma grande linha. Goretzka e Kimmich na base da jogada, Gnabry, Müller e Sané mais por dentro, Lucas Hernández e Pavard bem abertos e Lewandowski mais a frente. É uma espécie de 2–2–6, mas sem alinhar tantos jogadores; Flick prefere ocupar mais faixas do campo com seus atacantes do que buscar vantagens apenas na linha de defesa adversária.

Ataque funcional para ocupar o campo do adversário

O ataque funcional do Bayern de Munique de Hansi Flick.

O Bayern de Flick tinha várias semelhanças com a Alemanha de Löw ao sair jogando e avançar em campo, mas elas paravam por aí. Ao chegar no campo de ataque, o Bayern largava de vez os conceitos posicionais e partia para um ataque funcional clássico, enquanto a Nationalmannschaft de Jogi continuava fiel ao posicional.

Aqui, o Bayern de Flick deixa de lembrar a Alemanha de Löw e começa a parecer o Liverpool de Klopp. Para ocupar o campo do Schalke 04, ter total domínio da posse de bola e criar situações de gol, o Bayern buscava aglomerar seus jogadores em um lado do campo (normalmente o direito) para criar mais linhas de passe, facilitar a interação entre eles e causar caos na defesa do Schalke ao concentrar tantas movimentações em um espaço tão pequeno; assim, o Bayern formava seu “lado forte”. O lado esquerdo, naturalmente, era o “lado fraco”, pronto para ser atacado por um lateral ou ponta através de uma inversão.

Para isso, Flick organizava seu time priorizando as características de seus jogadores de ataque. Seus laterais, Pavard e Lucas Hernández, tinham posicionamentos parecidos, mas funções radicalmente diferentes. Pavard era o lateral do “lado forte” e costumava ficar bem aberto, colado à linha lateral, revezando com o ponta pelo setor para ficar por fora ou atacar por dentro. Do outro lado, Lucas Hernández era o lateral do “lado fraco”: sua posição mais aberta não servia para ser uma recorrente opção de passe pelo lado do campo, como Pavard, mas sim para ser o jogador acionado em uma inversão, atacando um esvaziado flanco esquerdo.

Mapas de calor de Pavard e Lucas Hernández: ambos bem abertos e avançados, mas também com bastante participação por dentro.
Toques na bola de Pavard no jogo contra o Schalke. Observe como todos partem do lado direito, mas também acontecem em regiões mais internas.
Toques na bola de Lucas Hernández no jogo contra o Schalke. Observe como Lucas é acionado mais aberto e em faixas de campo mais avançadas que Pavard por ser o lateral do “lado fraco”.

Goretzka e Kimmich começavam na base da jogada, mas com movimentações diferentes. Kimmich, como dito antes, buscava ficar próximo da bola para sempre participar das jogadas (foi o segundo jogador que mais tocou na bola, atrás apenas de Süle) e desequilibrar a partir de sua visão de jogo e de seus excelentes passes. Goretzka ficava em seu frenético “vai-e-vem”: como o box-to-box do time, o alemão participava do jogo próximo aos zagueiros para logo depois estar junto dos atacantes, pronto para atacar a área.

Sané e Gnabry buscavam não se afastar muito das jogadas, não importa a posição que ocupassem: o ponta no lado direito (o lado forte) buscava sempre se envolver nas jogadas e centralizar mais, liberando a lateral do campo para Pavard. O ponta que estivesse no lado esquerdo (o lado fraco) ficava razoavelmente próximo da zona da bola, mas sem se aproximar tanto: sua principal função era atacar o lado esvaziado através de uma inversão, mas se necessário podia abandonar a posição para se aproximar dos outros jogadores.

Müller e Lewandowski aproveitavam o entrosamento que 7 anos como companheiros de time os presenteou para atuar como uma dupla de ataque letal. O polonês era o camisa 9 do time, mas não se restringia a ficar enfiado na área prendendo os zagueiros: a maior ameaça que Lewandowski apresenta, claro, é dentro da área, onde ele pode fornecer a um time mais de 40 gols em uma única temporada (marcou 48 pelo Bayern em 20/21), mas ele não deixa a desejar quando precisa atuar fora dela. Müller aproveitava as movimentações de seu companheiro para surgir de trás de Lewandowski para pisar na área e ser uma ameaça única como segundo atacante; além disso, o alemão também era essencial para armar o ataque do time a partir de uma posição mais avançada do que a de Kimmich.

Os mapas de calor dos jogadores de meio para frente do Bayern indicam o ataque funcional do time: observe como quase todos os mapas possuem uma tendência ao lado direito do ataque, principalmente Sané, Müller, Lewandowski, Kimmich e Gnabry.

Desse modo, o Bayern construía um ataque funcional que concentrava 6 ou 7 jogadores bem próximos da jogada, onde 1 ou 2 jogadores ficavam mais afastados, prontos para atacar o lado fraco a partir de uma inversão. Era um estilo um pouco diferente do ataque funcional do Liverpool de Klopp, que buscava a superioridade na faixa central do campo; o Bayern buscava juntar seus jogadores apenas no terço final, e as aproximações eram uma maneira de potencializar seus atacantes. Assim, o ataque funcional do Bayern tinha como primeiro objetivo gerar vantagens na linha defensiva do Schalke 04, não tanto no meio de campo.

Posicionamento médio dos jogadores do Bayern de Munique no jogo contra o Schalke expressa bem o ataque funcional do time: os volantes na base da jogada, os laterais bem abertos (com Pavard ligeiramente mais por dentro) e os 4 atacantes muito compactados na faixa central, pendendo para o lado direito. Observe as zonas de atuação de Lewandowski, Gnabry e Sané: são praticamente idênticas.
Bayern, já no campo ofensivo, organiza seu ataque posicional juntando 6 jogadores pelo lado direito. Sané fica por fora do bloco da jogada, mas na faixa central. Lucas Hernández fica bem aberto na ponta esquerda.
Bayern agora tem 7 jogadores pelo lado direito: Süle avançou para compor a base da jogada com Goretzka e Kimmich. Sané fica bem próximo de Müller e Gnabry. Lewandowski e Lucas Hernández, que não aparecem na imagem, ficam por fora do bloco da jogada.
Observe como o Bayern transforma sua estrutura ofensiva à medida que avança em campo: aqui, o time começa a ganhar metros a partir de seu ataque posicional: Goretzka se junta aos atacantes e Pavard corre para atacar a ponta. Lewandowski e Sané trocaram de posição.
À medida que a jogada avança, o Bayern começa a se aproximar pelo lado direito, abandonando a estrutura posicional.
Bayern no campo de ataque com sua estrutura funcional: 7 jogadores estão na faixa direita do campo, e apenas Lucas Hernández fica mais afastado. Sané e Gnabry por dentro como atacantes, Goretzka e Müller nas entrelinhas, Lewandowski aberto e Pavard e Kimmich na base da jogada: as intensas movimentações do Bayern de Flick.
Bayern explorando o lado fraco: 6 jogadores ficam no lado direito do campo de ataque. Gnabry, Pavard e Müller ficam mais abertos, com Kimmich na base da jogada e Goretzka e Lewandowski atacando a área.
Kimmich recebe a bola na base da jogada e percebe que a compactação do time no lado direito esvaziou o lado esquerdo, permitindo uma inversão de jogo.
Lucas Hernández é acionado em uma inversão, atacando o esvaziado flanco esquerdo. Isso atrai a atenção da defesa do Schalke 04, que acaba abrindo espaços pelo lado direito, onde 5 jogadores do Bayern atacam a área.

Como usar as entrelinhas, parte 1: acelerando a partir da saída de bola

Faça chuva ou faça sol, algumas coisas parecem ser inegociáveis para Hansi Flick. Uma delas, certamente, é a verticalidade de seus times ao ter a bola. O cenário pode ser uma transição rápida ao recuperar a bola no campo de ataque ou uma posse mais longa que tem pela frente um adversário bem postado defensivamente, não importa. Flick quer verticalidade.

Como explicado antes, o Bayern nem sempre tem pela frente um cenário que o permite ter transições ofensivas velozes a todo momento, obrigando o clube bávaro a ter mais calma com a posse. Nesses cenários, Flick precisa se adaptar, mas se recusa a abrir mão de seus princípios e busca maneiras de impor verticalidade e intensidade no jogo mesmo tendo mais posse de bola. Para isso, Flick olhou com muito carinho para uma zona específica do campo: as entrelinhas. Lá, ele podia encontrar o espaço necessário para ameaçar seu adversário e desorganizá-lo para, assim, atacá-lo com velocidade. Para isso, Flick explorava as entrelinhas de duas maneiras; a primeira era a partir da saída de bola.

Quando o Bayern tinha pela frente um oponente que se propunha a pressionar um pouco mais ao invés de simplesmente se trancar em seu campo de defesa, o time media muito bem o ritmo. Saía jogando com calma para atrair a pressão do adversário, sem se desesperar nas situações de maior risco. Isso acabava abrindo espaços na defesa do oponente que, ao avançar a marcação, fatalmente deixaria buracos às costas de seu meio de campo ou de sua defesa. Quando o Bayern conseguia superar a primeira linha de marcação e encontrava esses espaços, era o momento de disparar em velocidade contra uma defesa desorganizada.

Bayern sai jogando em seu 3+1 com Pavard de terceiro zagueiro e Goretzka a frente dos 3 defensores. Observe que isso permite que Kimmich ocupe uma faixa de campo mais avançada.
Pavard recebe a bola pela direita, atraindo a marcação do jogador do Schalke marcado em azul. Isso deixa Kimmich livre entre as linhas.
Pavard passa para Gnabry, que de primeira passa para Kimmich. O volante recebe com espaço nas entrelinhas: é hora de verticalizar o jogo.
Kimmich gira e encontra a defesa do Schalke em situação de 3 contra 3.
Em menos de 10 segundo, o Bayern saiu de seu campo de defesa e chegou à área adversária, atacando-a com 5 jogadores contra apenas 4 defensores.
Outro lance: Bayern sai jogando em seu 3+1, atraindo a marcação de 6 jogadores do Schalke. Observe o espaço que isso gera nas costas do meio de campo do oponente do Bayern, onde Müller está.
Kimmich dá um belo passe para Müller, que recebe nas costas do meio de campo do Schalke.
Müller recebe com espaço, o que significa que é hora de acelerar: 4 jogadores do Bayern disparam em velocidade contra os 4 defensores do Schalke. Mais uma vez, o clube bávaro cruza o campo em poucos segundos.

Como usar as entrelinhas, parte 2: acelerando a partir do campo de ataque

Além de acelerar a partir da saída de bola, o Bayern também sabia o momento certo de verticalizar suas jogadas quando o time estava bem posicionado no campo de ataque, usando a mesma lógica de explorar o espaço entre as linhas.

Com o time postado em seu ataque funcional e todos os jogadores aglomerados, Flick aproveitava a mobilidade e inventividade de seus atacantes para criar espaços na defesa do Schalke a partir dos desmarques. A partir daí, a lógica era mesma de antes: calma ao circular a bola para encontrar o jogador certo no lugar certo. A partir daí, era hora da famosa velocidade implacável do Bayern.

Bayern no campo ofensivo com seu ataque funcional. Schalke, em tese, tem a marcação encaixada, mas apresenta dificuldades em marcar tantos jogadores do Bayern no mesmo setor. Observe o jogador do Schalke marcado em azul.
Kimmich recebe a bola e o jogador do Schalke salta para marcá-lo. Isso acaba gerando espaços para Sané, às suas costas.
Sané recebe entre as linhas do Schalke e 4 jogadores do Bayern já saem em disparada para atacar a defesa adversária em velocidade.

Atacando a área — desorganizando a defesa com 6 atacantes

Ao atacar a área adversária, o Bayern volta a lembrar a Alemanha de Löw ao usar 6 atacantes para ocupar a linha defensiva do oponente. A vantagem de ter tantos jogadores ofensivos é clara: não importa o quanto a defesa adversária se desdobre, ao enfrentar 6 atacantes, alguém sempre terá espaço. É a partir dessa ideia que o Bayern manipula seu oponente para abrir espaços dentro e fora da área.

Contra tantos atacantes, o natural é que o adversário recue dentro de sua própria área com o máximo de defensores possível, buscando minimizar a superioridade numérica do Bayern no setor. É aqui que o “cobertor curto” começa: se o adversário recua muitos jogadores, fatalmente acabará abrindo espaços na intermediária de ataque, onde o Bayern normalmente posiciona seus volantes. Assim, Kimmich e Goretzka acabam tendo muita liberdade na origem da jogada para lançar os atacantes do Bayern nas costas da defesa adversária, aproveitando a velocidade de Gnabry e Sané e a presença de área de Müller e Lewandowski.

Bayern ataca a área do Schalke com 6 jogadores: Gnabry e Lucas Hernández por fora e Lewandowski, Müller, Pavard e Kimmich por dentro. Isso atrai os defensores do Schalke para dentro da área, abrindo espaço para Goretzka na intermediária ofensiva.
Goretzka lança Gnabry pelo lado direito, forçando a defesa do Schalke a correr para lá. Isso acaba abrindo buracos por dentro, onde o Bayern concentra jogadores.
Gnabry entra na área, que é invadida por outros 5 jogadores do Bayern simultaneamente.

O “cobertor curto” continua pelos lados do campo: com 6 atacantes, o Bayern sempre posiciona dois jogadores bem abertos, alargando a linha defensiva. Isso cria a seguinte dúvida nos adversários: marcar os jogadores abertos e criar espaços por dentro ou marcar os jogadores por dentro e criar espaços pelos lados? Normalmente, os oponentes do Bayern preferem marcar os jogadores que ficam mais por dentro, o que acaba dando muito espaço para os jogadores abertos. Assim, eles recebem as bolas com muita liberdade para cruzar, obrigando os adversários a moverem seu bloco de marcação para aquele setor para minimizar essa liberdade. No entanto, isso acaba criando espaços no lado oposto, normalmente no centro da área, onde o Bayern mais concentra jogadores.

O Bayern também cria espaços pelos lados do campo. Aqui, Pavard recebe com liberdade para cruzar enquanto 5 jogadores invadem a área.
Kimmich, Gnabry e Pavard atraem a marcação do Schalke pelo lado direito, mais isso acaba desorganizando a defesa no centro da área; assim, Pavard cruza e Lewandowski, Sané e Müller são marcados por apenas um jogador do Schalke.

A resposta de Hansi Flick: mescla posicional-funcional e intensidade com a posse de bola

A carreira de Hansi Flick foi, de longe, a mais meteórica dos três treinadores. O alemão ficou distante dos holofotes de ser um treinador por quase 15 anos e, quando voltou a eles, foi justamente pelo Bayern de Munique, o maior clube do futebol alemão. Ele caiu de paraquedas na Bavária e teve que lidar com uma enorme crise esportiva, estando sob o atento olhar de todo o futebol mundial.

Flick não apenas resolveu a crise como construiu um dos melhores times da história do Bayern de Munique. Ele comandou o clube bávaro em 86 jogos, venceu 70 deles, empatou 8 e perdeu outros 8. Sob seu comando, o Bayern marcou incríveis 260 gols, sofreu 91 e conquistou 7 troféus, 6 deles em apenas uma temporada. Flick resgatou o estilo “rolo compressor” que marcou época na Bavária nos melhores tempos de Jupp Heynckes, mas também construiu um ataque mortífero quando tem a bola por mais tempo. Mesclando um ataque posicional para avançar em campo com um ataque funcional ao ocupá-lo, Hansi Flick logo se transformou em uma das referências em organização ofensiva e formas de atacar. Ele conseguiu um jeito de não abrir mão da verticalidade de seus times e construiu um Bayern de Munique que tinha a mesma intensidade ao manter a bola por maiores períodos de tempo do que quando contra-atacava com o campo aberto.

Conclusão: Klopp, Löw e Flick mostram o caminho

À medida que o futebol alemão mostrava necessidade de se desenvolver, Klopp, Löw e Flick encararam e resolveram o problema de jeitos diferentes, seja com um ataque funcional, um futebol posicional ou o equilíbrio entre ambos. Cada um seguiu o que acreditava e, assim, os três conseguiram dominar a posse de bola à sua maneira e chegar ao topo em seus respectivos contextos. A ofensividade que Ralf Rangnick imprimiu no futebol alemão é intocável e, por isso, nenhum dos três treinadores usam conceitos como se defender com a bola, algo tão comum e difundido no futebol espanhol, por exemplo. Klopp, Löw e Flick mantiveram-se fiéis à ofensividade que tornava seus times tão encantadores para construir suas estruturas de posse de bola, o que os deixou ainda mais em evidência quando o assunto é atacar.

Todo jovem alemão que deseja ser treinador precisa aprender a usar a posse de bola (isso pode dar uma bela parte 2). Para isso, a nova geração de treinadores que começou a dar as caras na Alemanha nos anos 2010 tinha 3 inspirações claras, mas muitos caminhos a seguir. Qual seria o próximo passo: cadenciar mais o jogo ou ir com tudo na intensidade? Os três zagueiros voltariam a ser figura carimbada no futebol alemão? Os novos treinadores iam se dividir entre posicionais e funcionais ou encontrariam um meio-termo? Como lidar com o problema de uma linha defensiva exposta por empilhar tantos jogadores à frente da linha da bola? Essas questões começaram a pipocar nos últimos 5 anos pela Alemanha, e todos os treinadores (não só a nova geração, mas Klopp, Flick e Löw também) teriam que surgir com respostas a elas.

O futebol nunca vai parar de oferecer perguntas às mentes que nele trabalham. No entanto, uma delas já pode se considerar respondida. Como o futebol alemão deve controlar a posse de bola? Klopp, Löw e Flick mostram o caminho.

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