TOKENOMICS: uma máquina de fazer dinheiro ou uma bolha prestes a estourar?
Quando alguém fala em token, o que você imagina? Para muita gente, é aquele chaveirinho com uma numeração randômica usado para acessar contas de banco. Porém, com o mundo cripto, essa palavra ganhou um significado muito mais amplo.
Nos primórdios, antes da febre das criptomoedas, chamávamos de token as iniciativas de digitalizar o dinheiro, de transformar o papel moeda em algo eletrônico, como era o caso do PayPal e do Digicash, empresas que surgiram nos anos 90. Foi nessa mesma época que surgiram os chaveirinhos.
Agora, com o mundo cripto materializado, token é o nome de um mecanismo criado para viabilizar a o financiamento e a participação em projetos que estão sendo desenvolvidos em plataformas como o Ethereum. Os tokens criaram uma gigantesca engrenagem capaz de gerar bilhões em financiamento para as mais diferentes ideias. Esse novo ecossistema recebeu o nome Tokenomics.
Tokens X coins
O Bitcoin usou um protocolo matemático que segue regras automáticas para criar suas coins (moedas). Essas moedas têm uma característica importante: elas são finitas. No ato da criação do Bitcoin foi determinado que seriam distribuídos somente 21 milhões de bitcoins. Nada mais.
Será que é uma quantia muito pequena? Nem tanto. Se compararmos com o dinheiro que mais conhecemos hoje, como dólar, iene e real, pode parecer pouco, mas o bitcoin tem uma diferença fundamental no seu fracionamento e é isso que faz toda diferença na sua distribuição. O dinheiro tradicional costuma ser divisível por cem, ou seja, a menor fração de 1 dólar é 1 cent e a menor fração de 1 real é 1 centavo. Já o bitcoin foi dividido por 100 milhões e a menor fração desta moeda recebeu o nome de Satoshi, uma referência a seu criador.
1 satoshi = 0,00000001 BTC
Com esse superfracionamento foi possível distribuir o bitcoin para mais pessoas e empresas. E quando (e se) a cotação do bitcoin chegar a US$ 100 milhões, um satoshi valerá 1 dólar. Seja qual for a cotação da moeda, ela serve somente para fazer transação. É uma unidade de conta, uma reserva de valor e em alguns casos pode ser ou não uma unidade de investimento
Em 2015, o russo Vitalik Buterin decidiu criar a plataforma Ethereum. Sua ideia representava uma evolução em relação às plataformas existentes como o Bitcoin, cujo objetivo era ter apenas a função moeda. Buterin queria uma DATP com código, armazenamento e mensagens.
Junto com Gavin Wood, ele publicou um yellow paper (documento extremamente técnico, mais detalhado que um white paper) sobre o projeto. O único obstáculo para a criação do Ethereum era que não havia dinheiro para começar. Sua grande sacada foi justamente a maneira que encontrou para receber investimentos. Ele iniciou o desenvolvimento do Ethereum como prova de contribuição e em troca passou a vender tokens que davam aos investidores o direito de usar a plataforma Ethereum. Quem se interessasse em utilizar a plataforma poderia comprar tokens e o dinheiro obtido com a venda financiaria o andamento do projeto.
O raciocínio de Buterin foi o seguinte: “vou fazer essa plataforma e quem quiser usar terá que pagar não só a transação, mas todo esse poder computacional que eu estou entregando”. Todas as transações deveriam ser pagas com o token Ether (ETH). O russo produziu 11.9 milhões de ETHs[MG1] . Ao mesmo tempo, estabeleceu uma unidade de valor chamada Gas, que funciona como uma espécie de pedágio para qualquer aplicação que o usuário queira rodar no Ethereum. O valor depende do poder computacional a ser utilizado, mas a cobrança é sempre em ETH.
Esse mecanismo que funcionava ao mesmo tempo como financiamento do Ethereum e remuneração de investidores foi a grande sacada de Buterin. A oferta inicial dos tokens conseguiu captar US$ 18 milhões e um ETH valia nessa época alguns centavos de dólar. Nada mal para uma empresa que só existia no papel. Poucos meses depois, em 2016, quando a plataforma Ethereum ficou pronta, o ETH já estava valendo US$ 6. Acha muito? Pois saiba que o ETH já chegou a valer US$ 1.600. Hoje, a cotação gira em torno de US$ 700. Ou seja, quem está no negócio desde o início garantiu um bom lucro.
De onde veio toda essa valorização? Todo mundo queria programar na plataforma Ethereum e sabia que precisaria pagar o pedágio (Gas). Para isso, era necessário ter ETHs. Então, houve uma corrida antecipada pelo dinheiro. Também pesou a favor da empresa o hype do blockchain, que começou justamente nesta época (2015/2016) e atraiu ainda mais gente que queria se garantir dentro do Ethereum. Criou-se assim a cultura do Tokenomics.
Qual é a diferença de criar moeda e criar token? A moeda é criada por um código, que tem uma regra e vai gerando as moedas aos poucos. O token tem um código que quando é ligado já cria todas as moedas.
Outra diferença relevante entre o mundo de Satoshi (criptomoedas) e o mundo de Buterin (tokens) é o fato de que ETHs são uma unidade de valor dentro de um ecossistema fechado para fazer operações. O ETH não é uma moeda como o BTC se propõe a ser, é um token operacional. Não é possível usar ETHs para comprar gasolina no posto, a não ser, eu crie uma DApp de posto do gasolina. Para os criadores do Bitcoin, mesmo sem aplicações do mundo cripto, o BTC poderia ser usado como forma de pagamento para produtos e serviços do mundo real.
Outra diferença fundamental do ETH em relação ao BTC está no formato de remuneração. No Bitcoin, os mineradores criam as coins após resolver o complexo quebra-cabeças em forma de código e são remunerados por isso em moedas. No início, eram pagos muitos bitcoins aos mineradores, para incentivar a criação de moedas e de um mercado de mineradores. Mas a taxa de transação para as pessoas que enviavam bitcoins umas para as outras era baixa, estimulando sua utilização. Com o passar do tempo, a regra prevista pelo Bitcoin é que o valor pago aos mineradores diminua até chegar a zero e a taxa por transação cresça.
Já o Ethereum nasceu pagando poucos ETHs aos mineradores e ao longo do tempo pagará menos ainda, mas cobra uma taxa de transação alta que, ao longo do tempo, aumenta.
Se esse novo modelo de remuneração é uma grande sacada ou somente um jeito diferente de fazer, o tempo vai dizer. Por enquanto, tem sido considerado um tiro certeiro, porque cria uma utilidade para o token.
A era dos ICOs
Outra inovação que chegou com o Ethereum foi a possibilidade de terceiros criarem tokens a partir de uma “clonagem” do ETH. Os projetos criados sobre a plataforma, como as DApps, poderiam usar um token próprio como “meio de pagamento” interno. O padrão adotado para os tokens do Ethereum foi o ERC-20, que garante a compatibilidade. Dessa forma, eu posso ter um token chamado CourtCoin, que internamente nada mais é do que um ETH apelidado com um novo nome.
Com os ETHs em circulação e com a facilidade de “clonagem” a criação de Buterin, Wood e Cia atraiu olhares (e ambição) de todos os lados.
Como o Ethereum atraiu milhões de dólares trocando tokens por investimentos, algumas pessoas identificaram naquela ideia um novo modelo de negócio. Ao criar um produto ou um serviço dentro daquele código, o financiamento poderia ser feito emitindo os tokens da nova empresa e trocando-os por ETHs. Quem acreditasse na ideia, compraria uma participação antecipada. Não demorou para surgirem empresas que imprimiam e vendiam uma quantidade enorme de tokens a partir de clonagem do ETH. É um fluxo muito parecido com o de venda de ações em bolsa de valores. Não por acaso, esse modelo de arrecadação de dinheiro recebeu o nome de ICO (Inicial Coin Offering), em referência aos IPOs, as ofertas iniciais de ações de grandes empresas na bolsa de valores. O nome mais correto para esse tipo de transação deveria ser ITO (Inicial Token Offering), uma vez que se trata da venda de tokens e não de moedas. Mas em 2015, o mercado só falava de criptomoedas e isso influenciou o batismo malfeito.
Na teoria, o primeiro ICO realizado foi da The DAO (Decentralized Autonomous Organization), uma organização pensada para ter uma operação totalmente distribuída e sem donos. A empresa criou o projeto, imprimiu 100 milhões de tokens e colocou à venda. Tendo em mente o sucesso do Ethereum, todo mundo quis comprar e a empresa captou de cara US$ 180 milhões.
Como para comprar um token do DAO era preciso trocar dólares por ETHs ou BTCs por ETHs e, depois, ETHs pelos novos tokens, a realização dos ICOs levou a uma valorização desses ativos.
Na esteira desse sucesso, novos tokens começaram a surgir. Para se ter uma ideia da enorme oferta, em janeiro de 2017 o BTC representava 92% do mercado cripto. Hoje, esse percentual é de apenas 26% e mostra que o bitcoin está dividindo espaço com outras criptomoedas, com o ETH e outros tokens derivados da plataforma Ethereum.
Esse fenômeno da captação de dinheiro via ICO fez surgir uma dúvida em relação à quantidade de tokens que deviam ser emitidos. Do ponto de vista de quem está criando o projeto, quanto mais tokens emitir, mais bilionário será possível ficar. Do ponto de vista de quem investe, quanto menos tokens, melhor. Essas são algumas das variáveis do Tokenomics.
Especulação
O lado negro desse movimento está na especulação. Como explicamos, por trás da oferta de tokens está uma promessa de entregar um produto ou um serviço que rodará no mundo cripto. Algumas iniciativas são sérias e realmente trabalham para entregar o prometido após o ICO. No entanto, há empresas que usam o ICO somente para faturar, com o único objetivo de ganhar bilhões às custas dos outros. A Securities and Exchange Comission (SEC), agência que regula o mercado financeiro nos Estados Unidos, está de antenas ligadas e ensaiando baixar normas que obriguem os ICOs a oferecerem as mesmas garantias de um IPO. O risco de estourar uma bolha parecida com a que tivemos em 2008 ou com as pontocom em 2001 é real, porque 99% dos projetos que usam o ICO para captar dinheiro são golpe. O exemplo mais surreal é o projeto chamado Scam Coin (https://twitter.com/scamcoins). Já no lançamento, a empresa alertou que se tratava de golpe e que só queria mesmo saber quanto conseguiria captar com a iniciativa. E não é que conseguiu US$ 150 mil?
A maior preocupação da SEC é que hoje, se uma pessoa ou empresa capta dinheiro com ICO e não entrega nada, não há nenhuma punição a ser aplicada. O golpista pode comprar sua Lamborghini e se hospedar num hotel cinco estrelas para o resto da vida, que nada acontecerá. É como e existissem várias Enron’s sem que nada acontecesse com os gestores. Quando começamos a analisar o fenômeno Tokenomics vemos que, enquanto o IPO acontece dentro de uma bolsa de valores que exige o cumprimento de uma série de regras, o ICO tem 1200 bolsas, as exchanges, sem nenhuma regra. É uma terra de ninguém.
Uma prática comum nesse mercado é a manipulação dos preços dos tokens. Imagine a seguinte situação: alguém cria uma empresa e emite 100 milhões de tokens que não valem nada. Guarda 40 milhões e doa 60 milhões para alguém. Em seguida, vai a uma bolsa e vende dele para ele mesmo, usando dois IDs diferentes, por um dólar. De repente, com essa operação, o conjunto todo de tokens passa a valer US$ 100 milhões. Em seguida ele vai na mesma bolsa e vende novamente para si mesmo por dois dólares. Quanto passou a ser o valor de mercado daquela empresa? US$ 200 milhões. Em seguida, a empresa vende os tokens para ela mesma por 10 dólares. Outros participantes do mercado veem e operação e… “Nossa! Esse token está subindo pra caramba, está bombando! Vou comprar!”
Nessa manobra engenhosa, a empresa que não valia nada passa a valer US$ 1 bilhão. Mas a empresa não para aí. Ela vende novamente dela para ela mesma por 100 dólares e passa a valer US$ 10 bilhões. O próximo passo é pegar uma porcentagem dos tokens e sair vendendo para todo mundo nas bolsas do mundo cripto. Se vender 50%, a empresa terá em mãos US$ 5 bilhões.
A empresa vendeu realmente alguma coisa para alguém? Não. Ela fez apenas um bounty, ou seja, uma doação. Enganou alguém? Na teoria, não. Ela simplesmente fez surgir no bolso US$ 5 bilhões com apenas um white paper, um site e uma história bonitinha.
Há empresas que prestam esse tipo de consultoria para quem quer captar dinheiro no mundo cripto. É um serviço que chega a custar US$ 500 mil e leva apenas 6 meses. Mas a SEC está de olho nesse movimento e disposta a colocar todos os enganadores na cadeia.
Esse boom dos ICOs foi capaz de captar US$ 6,4 bilhões entre janeiro e abril de 2018. É mais do que foi acumulado em 2017, quando o volume chegou a US$ 5,7 bilhões. O movimento continua crescendo numa curva exponencial. E ninguém sabe onde vai parar.
Há quem ainda tenha dúvida de que se trata de uma bolha. Eu tenho certeza de que é. 99% dos projetos são enganação e essa bolha vai estourar. A pergunta que ainda está sem resposta é quando isso irá acontecer.
Courtnay Guimarães Jr, pai, esposo, empreendedor, cientista e facilitador de aprendizado.
34 anos de experiência no mercado de ITC, com passagens por Oracle, SAP, HP, Vivo, Cargill e outras. Projetos e resultados em clientes como Itaú, Bradesco, Banco do Brasil, Banco Central, Ambev, BTG Pactual e outras.
No momento, é Cientista Chefe, CTO e sócio fundador da Idea Partners, consultoria e participações, agindo como:
· Practices Head, nas linhas de:
o Principal consultor das práticas de transformação organizacional para perenidade (corporate venture building), focado em agilidade, governança, lean e arquitetura empresarial;
o Líder da prática de blockchain, analytics management, inteligência artificial e coisas na internet;
o Líder das verticais de serviços financeiros, banking e mercado de capitais.
· CTO/Founder da OR Hub, ChainTech para a área imobiliária;
· CSO/Founder da MultiLedger, empresa de BaaS focada em DLTS;
· Advisor da Rhizom, Chaintech de marketplaces brasileira;
· Advisor da GMT Token, empresa de mineração sediada na Estônia;
Economista, pôs graduado em marketing, especializações em banking, mercado de capitais e trading de alta frequência.
Professor de gestão de inovação e complexidade, apaixonado por inteligência artificial e cryptonetworks, já treinou mais de2.000 pessoas nestas redes, nos últimos 2 anos, no Brasil e no mundo. Palestrante e evangelista, está como pesquisador do tema na USP.
p.s. Texto co-escrito e revisado por Atelier de Conteúdo.
p.s.2: O texto índice está em https://medium.com/@courtnay/the-open-booking-art-1990f3369c15