Falácias sobre indígenas que a gente já cansou de ouvir

Anahata
5 min readJan 17, 2019

“O primeiro povo a ser atacado é o primeiro a lutar.” — Aconteceu em 1500, está acontecendo em 2019. O ano mal começou, e no primeiro dia o presidente já cumpriu a promessa de esvaziar ainda mais a FUNAI da sua função, levando a cabo a declaração de que em seu mandato “não haveria 1cm de terra demarcada para indígenas”.

Isso não poderia ficar sem resposta. Indígenas de todos os cantos do país já se articulam contra esse ataque a seus direitos, e como não poderia deixar de ser, uma maneira de chamar a atenção para o problema foi usar a internet para isso.

Em dois dias, um grupo de jovens nativos mobilizou as tags “Direitos indígenas são inegociáveis” e “Visibilidade indígena”, publicando conteúdos para conscientizar as pessoas da importância dessa luta para indígenas e não-indígenas igualmente.

Para a surpresa de ninguém, começaram a surgir os seguintes comentários, em diferentes graus de ignorância e agressividade:

Índio de celular? Índio tuitando, onde já se viu?

Eles precisam é de integração com o resto da sociedade!

O governo vai salvá-los!

O governo vai fazê-los produzir!

Quantas vezes já não ouvimos esse senso comum por aí? Antes de entrarmos na questão central de toda a mobilização, vamos dar um passo para trás; rebater falácias é importante para dialogar e engajar pessoas na luta indígena.

“Índio com celular/carro/calça jeans deixou de ser índio”

Vamos começar abandonando do nosso vocabulário a palavra “índio”. Essa palavra foi usada pelos colonizadores quando chegaram aqui e imaginaram estar na Índia. Todos já sabemos que eles estavam enganados, portanto não faz sentido levar essa palavra para frente. “Indígena” ou “nativo” devem ser usadas, especialmente por não-indígenas, para se referir a esse grupo de pessoas.

Depois, esse é um argumento colonialista de deslegitimação. Desde o início da colonização, indígenas foram forçados a um sem-número de coisas — escravização, usar vestimentas que não faziam parte da sua cultura, falar a língua dos colonizadores, rezar para um deus católico. Tudo foi (e ainda é) instrumentalizado para despir nativos de sua própria cultura e assim justificar que, ao deixar de ser quem eles eram, eles também haviam perdido o direito fundamental à sua terra.

Dizer que uma pessoa indígena deixa de ter a sua identidade por conta de um adereço ou objeto, cujo uso é socialmente obrigatório no nosso contexto capitalista ocidental, é uma extensão desse raciocínio. É ignorar que as pessoas precisam se adaptar ao contexto para se manterem vivas.

Por acaso uma pessoa branca deixa de ser vista como tal pela sociedade, se for para a floresta? Por acaso alguém nascido no Brasil deixa de ser brasileiro por comer sushi ou hambúrguer? Não, porque ao ter acesso a outras culturas, o indivíduo não tem sua própria cultura automaticamente anulada.

“Indígenas precisam de integração com a sociedade / O governo vai salvá-los”

Vídeo do Instituto Socioambiental (ISA)

Em que sentido estamos usando a palavra “integração”?

Se significa “tornar parte”, não precisamos de nenhuma mudança. Indígenas têm contribuição e já fazem parte da sociedade brasileira. Isso inclusive pode ser notado através de tudo o que herdamos de povos nativos, como o consumo de determinados alimentos, hábitos corriqueiros, influências na nossa língua portuguesa e o conhecimento/uso de algumas plantas.

No entanto, o discurso vigente, filhote da ditadura militar, é de que “integração” significa tirar indígenas de suas terras e trazê-los para o meio urbano, aumentando a população periférica das cidades e inflando a base da pirâmide de mão-de-obra barata.

O que se perde de vista é que, segundo a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da OIT (Organização Internacional do Trabalho, da ONU), promulgada pelo Brasil em 2004, os aldeados têm o direito de viver em suas terras, “da sua maneira diferenciada”.

A Convenção dá autonomia a nativos de controlarem suas próprias instituições, controlarem seu desenvolvimento econômico, seu modos de vida e cultura, pois contribuem para a “diversidade cultural, e para a harmonia social e ecológica da humanidade.”

Dizer que tais populações precisam ser “salvas” da vida isolada é achar que elas não sabem escolher para si a melhor forma de se organizarem. Além disso, joga para cima de indígenas o ônus pelo acesso restrito à saúde, educação e segurança, quando a responsabilidade é do governo de fazer com que esses cidadãos brasileiros também gozem de seus direitos. Afinal, ainda que os agrupamentos funcionem como nações, por terem costumes e crenças próprias e protegidas por dispositivos legais, indígenas não deixam de ser cidadãos do Brasil.

“Indígena é preguiçoso: as reservas são 15% do território e não produzem”

Colheita de mandioca dos terenas. M. Ceratti (Banco Mundial)

As reservas são 13% do território nacional. E é verdade que elas não produzem da maneira que estamos acostumados. A lógica indígena é guiada pelos ciclos da naturezam, e não pela exploração descontrolada e ininterrupta com a qual as pessoas não-indígenas e de contexto urbano estão acostumadas. Mas isso não significa que não haja produção.

Um exemplo é o sistema agrícola dos povos do Alto Rio Negro, que consiste do uso cíclico da terra, e foi reconhecido como Patrimônio Cultural Brasileiro. Já os Terena, resgataram a técnica tradicional murundum e plantaram mandioca em 100 hectares, com adubos orgânicos, e sem desmatar.

Além disso, as terras indígenas são as principais mantenedoras das florestas nativas, com o menor índice de desmatamento na Amazônia Legal. Enquanto o índice de desmatamento das TIs fica entre 1% e 2%, as terras privadas desmatam 54%.

É no mínimo interessante que a conta da “crise”, e de como o Brasil precisa “se desenvolver mais”, chegue para os povos nativos primeiro: a concentração de terras privadas cresceu 2,5% em 2015. Segundo o Incra, entre 2010 e 2014, seis milhões de hectares passaram para as mãos dos grandes proprietários. No Censo Agropecuário de 2017, isso se confirma — as terras de produtores individuais diminuíram em terra e área, enquanto as de Sociedades Anônimas (S/As) e Responsabilidade Limitada (LTDA) aumentaram.

Alguma chance desses números terem diminuído, de lá pra cá?

Curiosamente, o índice de produtividade das terras privadas não é atualizado desde os anos 80 (e com a escassez de recursos do IBGE, as chances de se atulizarem se tornam ainda mais ínfimas), mesmo havendo quatro censos agropecuários de lá para cá. E apesar dos dados defasados, estima-se que 175 milhões de hectares não cumprem critérios de função social da terra (ou seja, não atendem ao bem-estar de uma coletividade).

Por que essas terras, cujas donas são S/As e LTDAs, não são obrigadas a produzir mais?

Por que a cobrança da sociedade é de que indígenas explorem, quando latifundiários, que possuem terras já destinadas a esse objetivo, possuem dívidas do “IPTU rural” que chegam quase a R$ 30 bilhões? Por que não se aumenta o imposto cobrado por latifundiários?

Se prestarmos atenção, vamos perceber que os povos nativos não são inimigos. Indígenas só querem preservar a terra e as florestas, o que é benéfico para todos nós, e para as gerações que estão por vir.

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Anahata

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