Talvez não seja o mesmo em todos os casos ser bom homem e bom cidadão…
Por contra a decadência
“Com efeito, talvez não seja o mesmo em todos os casos ser bom homem e bom cidadão.”
Aristóteles — Ética a Nicômaco (1131b25)
Primeiramente, darei uma breve definição aos indíviduos mencionados por Aristóteles:
De uma perspectiva aristotélica, um bom homem é o possuidor de uma disposição a aretê(excelência), age de acordo com a mediania e é intelectualmente ordenado à verdade.
Um bom cidadão seria aquele que age em conformidade com o estado, ou seja, adere às leis legisladas pelos governantes, sendo elas justas ou injustas.
Partindo dessas proposições, um bom homem nem sempre será um bom cidadão, pois, ao desobedecer uma lei injusta, o estado já não o verá como um contribuinte ao “bem comum”. Com efeito, tornar-se-á aos olhos do estado um mau cidadão, por não agir em conformidade com a lei, sendo ela justa ou injusta, como dito anteriormente.
Do mesmo modo, nem sempre um bom cidadão será um bom homem, pois, se o estado declarar como aprovada uma lei injusta, ele terá que, por conseguinte, agir de acordo com essa lei, caso queira manter-se como “bom” na perspectiva do estado.
Logo, ao consentir com a lei injusta, ele deixará de agir segundo a reta razão, com efeito, deixará de ser um bom homem.
Como exemplo, recordemos acerca de Sócrates:
“faço agora este pedido a vós, que a mim parece um pedido justo, no sentido de desconsiderardes minha maneira de falar — quer seja melhor ou pior — mas concentrardes vossa atenção simplesmente em discernir se o que digo é justo ou não, pois nisso consiste a virtude do juíz, ao passo que a do orador consiste em dizer a verdade.”
Platão — Apologia de Sócrates (18a)
É claro, como vemos na passagem acima, que Sócrates punha o amor pela sabedoria em sua mais elevada estima, ou seja, era um bom homem. Mas este mesmo foi condenado a tomar cicuta pelo estado ateniense, devido as suas investidas contra os sofistas e a cultura tradicional da época.
No fim das contas, pouco importava ao estado ateniense o bem que Sócrates fizera aos cidadãos no que se concerne ao saber, pois, se de alguma forma esse saber ameaçava o “bem comum” — como realmente o fazia — deveria ser cessado.
Dessa maneira, Sócrates deixou de ser bom cidadão aos olhos do jurí ateniense (Prova-se isso pela sua própria condenação).
Mas ele nunca deixou de ser um bom homem, e a passagem final do diálogo Fédon nos demonstra isso:
“Esse foi o fim, Equecrátes, de nosso amigo, um homem, poderíamos dizê-lo, que foi entre todos os que conhecemos, o melhor, como também o mais sábio e mais justo.”
Platão — Fédon (118a)
E de certa forma, podemos dizer que Sócrates também não deixou de ser um bom cidadão, pois ele aceitou a sua condenação, mesmo que injusta, para não ser incoerente com a defesa que fazia das leis.
Podemos notar isso numa das passagens do diálogo Críton:
“Entretanto, se partires injustiçado, foste injustiçado não por nós, as leis, mas pelos seres humanos; por outro lado, se fugires após de maneira tão infame retribuíres a injustiça com a injustiça, e o mal com o mal, descumprindo teus compromissos e acordos conosco, e causando dano aos que menos querer causar dano, nomeadamente a ti próprio, aos teus amigos, à tua pátria e a nós, nos tomaremos de ira contra ti enquanto viveres, e nossas irmãs, as leis no domínio de Hades, não te receberão com benevolência, sabedoras de que deste o máximo de ti para nos destruir.”
Platão, Críton (54c)
As leis, na passagem acima, são um personagem se dirigindo a Sócrates, alertando-o das consequências caso partisse numa possível fuga para livrar-se de sua condenação injusta. Sentença essa que não foi promulgada pelas leis per se, mas por parte dos homens que compunham o júri de Atenas.
“Então não devemos ser injustos com quem foi conosco injusto, nem causar o mal a quem quer que seja, a despeito do que possa ter feito conosco.”
Platão, Críton (49d)
Por fim, deixar-nos guiar pelas decisões arbitrárias do estado? Confiar cegamente nos legisladores que dizem ter em vista o “bem comum”?
Ou pelo contrário, devemos confiar nas potências superiores de nossas almas e agir segundo a reta razão, mesmo que isso nos leve a ferir uma lei positiva declarada pelo estado?
Quem deve ter nosso consentimento, homens falhos e fadados a contingência de seus poderes?
Ou a verdade que, sendo eterna e imutável, demonstra-nos a certeza de que estamos agindo pelo que é certo?
Fontes:
[1] Aristóteles — Ética a nicômaco;
[2]Platão — Apologia de Sócrates;
[3]Platão — Fédon;
[4]Platão — Críton;