(des)governo e educação pública: comentários

Educação e Bem Viver
7 min readMay 10, 2019

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O projeto do (des)governo Bolsonaro contra a educação se aprofundou nos últimos dias. De cortes no ensino de Sociologia e Filosofia, passamos para um corte geral na educação pública.

A mudança aconteceu porque as universidades públicas são autarquias e têm autonomia para gestionar seu trabalho e seus recursos. Assim, o governo não poderia cortar investimentos em disciplinas sem primeiro destruir o modelo de autonomia universitária.

O próximo passo então foi decidir cortar verbas das universidades que são julgadas pelo projeto político deste governo como perigosas. Sob a ideia de que elas são “balbúrdia” e não ensino sério, foi anunciado o corte de 30% em três universidades: UnB (Universidade de Brasília), a UFF (Universidade Federal Fluminense) e a UFBA (Universidade Federal da Bahia). As três universidades, no então, figuram entre as 50 melhores da América Latina (leia mais).

Por fim, decidiu-se então simplesmente cortar 30% do orçamento geral da educação federal, atingindo todas as universidades e também o sistema federal de educação básica, como os Institutos Federais. O @outras-mamas-podcast fez seu último episódio sobre isso, escute.

O episódio é bem interessante, mas podemos aprofundar mais alguns dos assuntos que são levantados por elas.

  1. O ensino público vem sendo sucateado há anos

Desde o século XIX no Brasil há uma movimentação importante da população pedindo acesso à escola pública, mas esse acesso simplesmente nunca chegou — não como esperávamos. A universalização do ensino é muito recente na história do nosso país.

A educação pública começou por aqui no final do século XVIII, mas era totalmente focada nas elites. Com toda a movimentação popular e mudanças nos desejos do governo (que desejavam uma população ao menos rudimentarmente alfabetizada e falante da língua nacional para a confecção da sensação da nação brasileira) e do mercado (uma vez que é mais fácil se comunicar com a massa trabalhadora através de avisos escritos do que ensinar a cada pessoa individualmente “isso é quente, não encoste”), o acesso à escola foi se ampliando ao longo dos séculos.

Durante a ditadura civil-militar, quase metade da população brasileira simplesmente não tinha acesso à escola, e mais de um terço não era alfabetizada. (os gráficos à seguir são desta matéria)

O governo Dilma fez diversos cortes, e o governo Lula também deixou de fazer uma quantidade enorme de mudanças que desejávamos que tivessem sido priorizadas. Mas não faz sentido dizer que o ensino estava sendo sucateado — pelo contrário, estava crescendo de maneira brutal.

Durante a gestão Haddad, o orçamento do MEC saiu de R$25,2 bilhões e passou a ser de R$90,56 bilhões. Partiu de 4,5 a 6,4% do PIB, com a meta de chegar em 10%. Foram construídas 18 novas universidades federais (de 68 no total hoje), 173 campus universitários (quase duplicando o número de matrículas, de 505 mil para 932 mil) e centenas de campi de institutos federais.

Os índices de aprendizagem da Prova Brasil, de acordo com o INEP, também apenas aumentaram no período. Veja nos gráficos abaixo, do qedu.

Evolução da aprendizagem do MATEMÁTICA do 5º ano
Evolução da aprendizagem do MATEMÁTICA do 9º ano
Evolução da aprendizagem do PORTUGUÊS do 5º ano
Evolução da aprendizagem do PORTUGUÊS do 9º ano

Foi suficiente? Nem de perto. Queríamos mais? Queríamos. Queríamos diferente? Queríamos. Gostamos do PT? Não gostamos. Mas não dá para dizer que o ensino vem sendo sucateado há anos.

2. O investimento em Ensino Superior é maior

Esse aqui é fácil: o Brasil gasta muito menos com Ensino Superior do que com Educação Básica em números absolutos. Mas gasta mais por aluno. Os gráficos abaixo são do IPEA, de 2013. Em ambos, gasto menos do que a média da OCDE.

Aí entra uma discussão bem difícil sobre o gasto por aluno. Eu sou professora de educação básica, e é claro que eu queria que tudo fosse diferente. Mas veja só, o Ensino Superior tem pesquisa. Imagine o gasto com um aluno que faz pesquisa em células tronco para descobrir a cura do câncer. Agora imagine o gasto de uma criança em fase de alfabetização.

Não me entenda mal — acho que deveríamos gastar muito mais por cabeça no Ensino Básico. Professores melhor remunerados, escolas mais preparadas, materiais melhores. Mais pesquisa, mais formação. Mas também acho que mais gente deveria acessar o Ensino Superior, e vejo com uma certa naturalidade que alguns gastos do Ensino Superior são mesmo superiores ao da Educação Básica.

Gasto por aluno
Gasto total

3. A escola privada é melhor

O conceito de melhor e pior na educação é bastante complexo. E mesmo que todos concordemos que “bom” = “maior IDEB”, temos que levar em consideração o modo como se faz o IDEB e os desafios das escolas.

A escola deve considerar o capital cultural (Bourdieu) que o aluno já traz (adquirido em sua família) e complementá-lo. Ao invés disso, o que ocorre é a escola valorizar o tipo de conhecimento que já tem o aluno de classes mais altas, e padronizar a escolarização a partir dele.

Assim, a estrutura da escola é construída para o sucesso do aluno de classes mais altas. O aluno de classes mais baixas não tem dificuldade de aprender os conteúdos ensinados, mas precisa de um processo diferente de aprendizado, de um percurso curricular diferente para compreendê-los, dado que traz conhecimentos prévios diferentes. Essa trajetória não é oferecida, impedindo que o aluno esteja na zona proximal dos conhecimentos oferecidos.

Além de trabalhar com a parcela da sociedade que tem mais capital cultural valorizado pela escola, a escola privada também tem, frequentemente, mais orçamento. Ainda que exista uma parte das escolas particulares totalmente predatória, que aposta no senso comum de que particular > público e explora as classes inferiores, estão contando para a média aquele outro extremo, das escolas das elites, que cobram mensalidade de 7 mil reais para um aluno de 1º ano do Ensino Fundamental. A quantidade de recursos que essa escola tem já é brutal, e o absoluto silenciamento de qualquer questão da criança também: paga-se muito caro para que se torne essa criança uma máquina de fazer prova, ignorando suas demandas pessoais.

4. Um dos problemas da escola pública é que sempre tem greve

O único material que o professor (e qualquer trabalhador) tem para fazer pressão por mudança é sua força de trabalho. Não é novidade que as condições de trabalho do professor da rede pública são péssimas: pouca estrutura, salários baixos, muita pressão, pouca formação e nenhum acompanhamento.

A escola pública não é ruim PORQUE ela tem greve, e sim os professores fazem greve para MELHORAR a escola pública. Enquanto olharmos para a greve como o problema, não faremos as mudanças necessárias para a valorização da escola pública, do professor, dos conhecimentos populares.

5. O problema do voucher é que continua sobrando para a população as mais baratas e piores escolas

Tem, é claro, um lado de verdade em: a pior escola será a mais precarizada e a que receberá menor investimento. Mas aqui também devemos andar um degrau para trás e entender porque existiriam essas tais escolas precárias e sem investimento.

Oras bolas: porque educação não pode ser uma questão de mercado, e sim de formação humana. A “escola ruim” existe por falta de investimento (de dinheiro, mas também de esforços) e de regulamentação.

Se a educação é prioritária, NÃO EXISTE a versão escola ruim. Mas se é uma questão de absoluta liberdade de mercado com foco apenas no lucro, se não é priorizada a formação humana, é claro que sobrarão sempre para o povo as pseudoformações.

6. Humanas não dá dinheiro

Dá dinheiro o que é valorizado pela sociedade. Temos uma sociedade que acha que um professor estadual vale 3x menos do que qualquer médico, e 10x menos do que qualquer juiz. Que acha que um publicitário vale 2x mais do que um filósofo.

Não existe uma regra universal da economia que diz “uma pessoa que trabalha com as humanidades valerá sempre, em qualquer sociedade, menos do que qualquer outro trabalhador”. É uma questão de política e prioridades.

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Educação e Bem Viver

Educadora e mestre em educação. Ecossocialista e defensora do bem viver.