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Culpem os livros

Um governo teocrático-miliciano que persegue coisas escritas e restringe o consumo de leitura da população. Parece ficção, mas é o novo Brasil

Erick Lopes de Almeida
5 min readFeb 12, 2020

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No meu último texto, falei dessa tal desinformação e sobre como disseminar notícias falsas, imprecisas ou enviesadas tem sido uma tática do governo atual para alienar as pessoas.

Coincidentemente, parece que está na moda dar uma de doido pra cima dos livros também. Tivemos recentemente a polêmica da Bienal, o governador que pensou que seria uma boa ideia recolher uns livros das bibliotecas escolares e ainda outro que, primeiro cai em cima os didáticos e, agora, resolve interferir em um programa de leitura em presídios.

Essa sandice toda após a mudança para esse ilustríssimo governo gospel dos bons costumes, que tem demonstrado não ter lá muito compromisso com as políticas públicas de leitura. Deixo aqui, inclusive, a excelente coluna que a professora Lilia Schwarcz publicou na época do rolo da Bienal e que ajuda a entender um pouco dessa suposta preocupação em torno do que as pessoas estão lendo, em especial as crianças, que na verdade correspondem à maior faixa de leitores no Brasil.

Mas enfim, este texto não seria um texto meu sem alguns causos, então queria compartilhar algumas das minhas experiências pessoais com os livros. O primeiro que tenho lembranças de ter lido foi O menino que aprendeu a ver, da Ruth Rocha. Na época, era bolsista numa escola católica de alto padrão da cidade, graças a uma tia que trabalhava lá como secretária. Claro, eu também era inteligentíssimo e bonitinho e simpático e as freiras viram em meus olhos que eu merecia uma oportunidade rs. Eu sempre fui muito curioso e essa tia me ensinou a ler em casa, com cartilhas de alfabetização ao estilo Caminho Suave, que tinha frases sem sentido algum como “Ivo viu a uva” e “o boi baba”. Claro que isso funciona enquanto método, mas, convenhamos, é chato e desestimulante para a maioria das crianças deste planeta. Então eu li esse livro, o do menino que aprende a ler também, mas não feito tabuada, como eu fazia com aquelas fichas, mas sim para de-co-di-fi-ca-r o mun-do!

A medida que o menino da história aprende as letras e como elas se comportam, ele se localiza melhor e ganha independência. Agora ele podia chegar onde quisesse. O pequeno Erick, então, passou a ler de um tudo que via na frente: letreiros, placas de trânsito, panfletos na rua, revistas, listas telefônicas… Relendo o livro hoje, assustei-me ao perceber como as lembranças da minha infância estão contaminadas por essa história. Fiquei realmente inspirado por aquele personagem, coisa que só foi acontecer de novo alguns anos depois, já no fundamental II do Colégio Estadual Pedro II, onde estudei até me formar.

O livro da vez era O menino do dedo verde, de Maurice Druon. Engraçada essa coincidência dos títulos… Acho que diz um pouco dos critérios de seletividade da minha memória. Enfim, esse outro menino era o que tinha o dedo verde e isso significa que ele fazia florescer tudo o que tocava. Uma história belíssima, sensível, que me inspirou de um jeito que me move até hoje. Ser bolsista é uma experiência interessante para a tomada de consciência de classe, mas foi na escola pública que eu me senti acolhido e fiz amizades que preservo até hoje. Da sala de 15 alunos para a de 40, reconheci meus privilégios, tanto na facilidade que já tinha em aprender quanto na base em minha alfabetização, e então soube que eu tinha um dedo verde, afinal. E poderia ajudar aqueles que não tinham tanta facilidade assim.

Curioso também é esse lapso em minha memória com relação aos livros… Mesmo com esforço, não consigo lembrar de muitos outros títulos que eu tenha lido na época da escola. Lia de tudo até, mas, talvez influenciado um pouco demaaais pela vibe do menino que aprendeu a ver, queria conhecer as coisas todas e, ingenuamente, dava pouca atenção aos livros com histórias. Até o ensino médio e o vestibular, quando a vida me fez ler vários livros que não lembro, alguns que odeio até hoje e também Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu.

Eu tinha 16 anos e passava pelo conflito do jovem gay dos anos dois mil. Eu sabia que gostava de meninos, já tinha ficado com um ou dois ou dez, mas rolava aquela negação. Um pouco pela igreja, outro pouco pela família e pelos amigos, ou também pelos gays conhecidos que eram zoados todo dia no colégio, pelo bairro em que eu morava, pelos privilégios que eu poderia manter… Posso afirmar que ler Caio me fez lançar um outro olhar para o universo LGBTI+. Eram textos depressivos e sofridos, mas muito sensíveis, que me despertaram raiva, orgulho e me ativaram o modo foda-se. Porque essa é a maior magia da literatura: ela não só te conta uma história, mas te apresenta uma perspectiva. Por ela vivemos uma outra vida, com guerras, doenças e as mais variadas tragédias que a vida pode distribuir aos seres humanos. Entramos em outra cabeça e sentimos emoções que talvez nunca experimentaríamos em nossa existência. E isso gera empatia.

Se por um lado a falta de informação contribui para um falseamento de sua própria realidade, a restrição ao acesso de livros restringirá, por consequência, o acesso a outras narrativas, outros pontos de vista. E aí fica difícil mesmo apoiar — ou sequer entender — causas fora de seu círculo social.

Passei a ler mais depois de adulto mesmo. E dar espaço para mais “livros com historinhas” ainda é um desafio no meio das leituras obrigatórias da vida e na fila das várias vontades que tenho ao mesmo tempo, mas tô a fim de desenvolver minha inteligência emocional. Se eu inspirar alguém por aí, digo como dica que dá pra fazer uma listinha ou mesmo começar com aqueles livros parados em casa. Na vida de muita coisa pra fazer, passamos horas lendo achismos que ninguém pediu nas redes sociais, mas sempre dizemos não termos tempo pra ler. Eu incluso. A minha muleta é que eu trabalho lendo, então me engano que preciso me dar um descanso. Pois bem, se você ler apenas 10 páginas por dia, terá lido 300 páginas no mês. É exatamente o tamanho de Com amor, Simon, de Becky Albertalli, que li recentemente e, confesso, levei mais de um mês porque foi no celular e às vezes esquecia que estava lendo ele. Dá pra começar com livros mais curtos também, com contos, como O sol na cabeça, de Geovani Martins. Esse eu ouvi, inclusive. Além do texto, que já é maravilhoso, a narração ficou sensacional. Não gostar de ler já é desculpa velha também, porque os audiobooks já estão com tudo aí.

Minha estratégia é ter sempre um livro na mochila e outro baixado no celular, em e-book ou áudio. E também ir ao médico regularmente. Nada melhor para criar uma oportunidade de leitura que uma sala de espera. Já mato várias metas de uma única vez: leio mais, fico menos nas redes sociais e ainda mantenho minha saúde em dia.

O ponto, no fim das contas, é não se acomodar em sua bolha, não estender seu entendimento de mundo para todo o resto e não aceitar a censura, por mais ruim ou desprezível que você ache que seja determinado conteúdo. Leiam, ouçam e compartilhem histórias. Todas as que você conseguir.

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Erick Lopes de Almeida

Editor de conteúdos educacionais e temporariamente Professor Assistente nos cursos de Jornalismo e Relações Públicas da Universidade Estadual de Londrina (UEL)