É COISA DE PRETO
Como o afroempreendedorismo pode contribuir para a emancipação e a resistência de pessoas negras ?
“Sou o sonho lindo e vivo dos meus ancestrais, compro da minha cor pra me lembrar que eu posso mais”.
Em Ostentação da Cultura, os rappers Djonga e Tássia Reis, através de uma parceria entre a Feira Preta e o Mercado Livre, enaltecem a cultura negra e celebram o afroempreendedorismo. Estima-se que, segundo dados da PNAD Contínua de 2022, 51% dos empreendedores brasileiros são negros. Juntos, eles movimentam cerca de R$ 1,73 trilhão anualmente na economia do país. Estes números tão expressivos nos levam a buscar compreender o contexto histórico do surgimento desse fenômeno, quais as dificuldades e conquistas.
RAÍZES
Silvio Almeida, atual Ministro da Igualdade Racial, em seu livro Racismo Estrutural, afirma “que a sociedade contemporânea não pode ser compreendida sem os conceitos de raça e de racismo”. Sob essa perspectiva, precisamos relembrar que a escravidão no Brasil destituiu a humanidade de milhões de negros arrancados do continente africano. E que após a abolição, não ocorreu um devido processo de reparação. Hoje, passados mais de 130 anos do fim da escravidão, o país ainda tem que lidar com o fantasma da discriminação racial entranhada nas relações sociais, que tenta impor à população negra uma eterna posição de subalternidade e marginalização.
Por isso, quando analisamos a presença de pessoas negras dentro do mercado formal de trabalho, percebemos que as máximas continuam as mesmas. É a parcela da população mais presente em subempregos, na informalidade e longe de cargos de diretoria ou chefia. Alimentados pelas concepções escravocratas que atribuíram aos negros a ideia de baixa intelectulidade, má aparência e deram-lhe funções braçais, servis exaustivas.
A gênese do afroempreendedorismo ocorre durante o período colonial, quando os negros tiveram que lançar mão do empreendedorismo para sobreviver, resistir. Destaca-se aqui, a forte ligação dessa prática com as mulheres negras. No texto Afroempreendedorismo feminino, escrito por Larissa Baia, ela menciona como o pioneirismo dessas mulheres foi fundamental para criar outras possibilidades de se organizar durante e pós escravidão.
No caso específico das mulheres negras, elas eram consideradas objetos de seus senhores e seus trabalhos explorados até a morte. Trabalhavam nos afazeres domésticos, nas zonas rurais e nos centros urbanos, sendo também responsáveis pelo comércio de doces, bolos, frutos, queijos, hortaliças, além de levar a correspondência de um lugar para outro. Enquanto realizavam esses serviços, os lucros eram repassados para seus “senhores”, até o fim da escravidão. Com a abolição e a falta de oportunidade, Alessandra Benedito diz que as mulheres negras utilizaram essas habilidades para seu sustento, tornando-se as primeiras empreendedoras do Brasil.
Foram organizadas múltiplas formas de resistência durante a escravidão, mas esse cenário só começa a ser tensionando de maneira mais contudente, a partir da década de 1970, com o surgimento de movimentos sociais que pautaram a descentralização de direitos básicos para os negros. Dessa forma, foi-se cultivando um terreno fértil para valorização da autoestima, do cuidado, do afeto, pautando o debate da inserção efetiva do negro na sociedade. O Movimento Negro Unificado, que em 2023 completa 45 anos, foi um dois primeiros a estruturar a luta antirracista. Desde o início sua agenda discutia o combate à violência policial, o mito da democracia racial, pautava oportunidades de emprego dignas para os negros e a inserção das pessoas pretas nas universidades através das cotas raciais. Essas primeiras incursões foram essenciais para apresentar uma outra possibilidade de ser, viver e ocupar espaços antes negados.
O afroempreendedorismo ganha força com a criação de instituições com o objetivo de constituir uma rede de apoio para os afroempreendedores. Entre 1988 e 1991, foram criadas as três primeiras instituições voltadas especificamente para o empreendedorismo negro: o Centro de Assessoramento e Coordenação Empresarial (CACE), o Centro de Estudos e Assessoramento de Empresários e Empreendedores Afro- brasileiros (CEM) e o Círculo Olympio Marques (COLYMAR). Em 1995, mais duas outras associações chegaram para fortalecer a causa: a Associação Nacional dos Coletivos de Empresários (ANCEABRA) e os Coletivos de Empresários e Empreendedores Afro-brasileiros (CEABRAs), o primeiro criado em São Paulo e depois em outros estados do Brasil. A tarefa principal dessas organizações era oferecer orientações jurídicas, administrativas, promover seminários, feiras, capacitações e treinamento para afroempreendedores.
Atualmente o Brasil já soma mais de 14 milhões de empreendedores negros com negócios ativos.
MAS AFINAL, O QUE É O AFROEMPREENDEDORISMO?
Não existe uma definição consensual do que seja afroempreendedorismo, por isso, não estranhe se ouvir termos como empreendedorismo preto, empreendedorismo negro ou empreendedorismo afro-brasileiro. Todos partem de um mesmo princípio: pessoas pretas que estão empreendendo.
O livro “O lado negro do empreendedorismo: afroempreendedorismo e Black Money’’, escrito pela professora Maria Angélica dos Santos, joga luz na discussão, no esforço de tornar o conceito mais tangível. Ela utiliza as expressões afroempreendedorismo lato sensu (sentido amplo) e afroempreendedorismo stricto sensu (sentido estrito).
- Afroempreendedorismo lato sensu: pode ser entendido como a atividade comercial desenvolvida por uma pessoa negra (pretos e pardos de acordo com o IBGE), mas que não necessariamente tem como objetivo contribuir com o fortalecimento do debate acerca das questões raciais, aqui deve-se “comemorar”, a ideia de um corpo negro superar as desigualdades socioeconômicas e adentrar o ecossistema empreendedor;
- Afroempreendedorismo stricto sensu: desenvolvido por uma pessoa negra (pretos e pardos de acordo com o IBGE) e que pretende através de produtos e serviços contribuir com a luta antirracista, potencializar a valorização da cultura afro-brasileira, auxiliar no fortalecimento identitário e incentivar o afroconsumo.
Como já citado anteriormente, o afroempreendedorismo nasce num contexto sócio-histórico de necessidade, na perspectiva de “empreender para sobreviver”. Dentro de uma lógica capitalista, o empreendedorismo negro pauta a presença de pessoas negras dentro das dinâmicas econômicas, gera lucro e autonomia financeira, e é uma alternativa para aqueles que estão excluídos do mercado de trabalho formal. Mas tão importante quanto isso, é o movimento de promover uma fissura no mercado produtor e consumidor hegemônico, que passa a ouvir as necessidades físicas, estéticas e emocionais da população negra.
Seguindo com as ideias de Maria Angélica dos Santos, ela destaca três pilares que configuram, no seu entendimento, a prática afroempreendedora:
Unidade Racial: tendo em vista que a população afrobrasileira foi lesada de maneira coletiva, a ascensão social e econômica, de modo individual, pode ser mais lenta. O afroempreendedorismo, para além de se tratar de negros empreendendo, conforma um movimento político, de soerguimento racial e de rompimento com práticas coloniais. Portanto, é necessário que ocorra a criação de vínculos sociais gerando a união de forças e possibilitando a circulação de riquezas entre negros, reduzindo as chances de miserabilidade e pobreza.
Valorização da Ancestralidade: na cosmovisão africana vigora um provérbio adinkra intitulado “sankofa”, sua representação é feita por um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando no seu bico uma pedra. A pedra simboliza o passado, demonstrando que o pássaro voa para frente, para o futuro, sem esquecer do passado. É através da consciência histórica que perpassa pelo respeito à cultura , religião e práticas ancestrais, que o afroempreendedorismo conseguirá alcançar o viés transformador que carrega em sua essência como elemento nuclear. O conhecimento e apego à história ancestral é importante para posicionar o afroempreendedor onde se encontram suas raízes. Estar em sintonia com a ancestralidade, contribui para a construção da autoestima, da identidade e para a compreensão de que existe uma história para além da escravidão.
Desracialização da Cadeia Produtiva: parte da ideia de existir uma ética produtiva que fundamenta a prática do afroempreendedorismo. As atividades devem ser desenvolvidas baseadas em modelos antirracistas, inclusivos, não discriminatórios.
DESAFIOS
Iniciar um negócio do zero é um baita desafio. Adicione aí, falta de recursos, investimentos, desconfiança por parte do mercado, bancos que negam créditos e um ingrediente especial: a cor da pele. Não dá para concretizar um sonho com dois reais no bolso. Um dos entraves para os empreendedores negros darem o pontapé inicial e manteram seus negócios é o capital. Eles até recorrem a financiamentos por vias legais como bancos, contudo, a resposta por vezes é negativa. A pesquisa “O impacto da pandemia do coronavírus nos pequenos negócios” de 2021, realizada pelo Sebrae e Fundação Getúlio Vargas, mostra que cerca de 51% dos afroempreendedores solicitam acesso a crédito, porém, cerca de 47% têm o pedido negado. Quando comparado aos empreendedores brancos, cerca 49% buscam financiamento, e apenas 34% dos pedidos são recusados.
É perceptível que o afroempreendedorismo é atravessado por diversos obstáculos. Adriana Barbosa, idealizadora da Feira Preta, o maior evento de cultura negra da América Latina, e CEO do AfroHUB, em entrevista ao Instituto Claro, menciona que, para se consolidar enquanto prática comercial, o afroempreendedorismo precisou romper com uma velha lógica que enxergava a cultura negra como uma contracultura, uma cultura alternativa, passando a ser tornar cultura de massa, do mainstream. Ou seja, era preciso reforçar no imaginário social que as pessoas pretas necessitavam de produtos e serviços específicos para seu tom de pele e textura do cabelo ou que as obras televisivas, literárias e produções audiovisuais deviam contar sobre a história do povo preto, gerando processos de identificação e por consequência de consumo.
E não pense que as dificuldades acabam por aí. Se iniciar é difícil, manter um negócio funcionando requer uma coalizão de forças, que nem sempre andam juntas. A pesquisa “Afroempreendedorismo Brasil” de 2021, desenvolvido pela RD Station, Inventivos e o Movimento Black Money, revela que 48,6% dos afro empreendimentos ainda não têm faturamento. É necessário ter o mínimo conhecimento de mercado, de precificação, de estratégias de venda/negociação, de como atrair a clientela através das ferramentas de comunicação. Um estudo realizado pelo Google e a Box1824 em 2022, levantou dados qualitativos e quantitativos (com apoio da Offerwise) sobre a trajetória empreendedora de pessoas negras e brancas. Como resultado, foi elencado “muros” que necessitam ser superados para chegar ao nível de um negócio maduro. Destaca-se aqui, dois deles: o muro do desconhecimento e o muro da superação. Ambos apontam que o iniciar de um empreendedor negro, via de regra, acontece sem conhecimento técnico específico, muitas decisões são tomadas na emoção, sem muito repertório, fato que pode comprometer a saúde financeira do negócio já nos primeiros meses. Manter a cadeia produtiva funcionando requer especialização, ferramentas adequadas, entendimento de gestão de negócios. Pode ser que em algum momento esses fatores virem uma bola de neve e o sentimento de frustração tome conta. Pessoas negras tendem a se manter frustradas por mais tempo do que os brancos ao longo dos dois primeiros anos do negócio.
O QUE ESTÁ SENDO CONSTRUÍDO PARA APOIAR O AFROEMPREENDEDOR?
De início, a resposta é até animadora. Mapeei diversas ações, em termos de políticas públicas, que visam apoiar os afroempreendedores. No entanto, são leis que embora estejam sancionadas, sua efetividade deixa a desejar.
Em 2003, foi instituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, no inciso V, que trata sobre ações, tem uma alínea que menciona rapidamente o afroempreendedorismo — Incentivo à capacitação e créditos especiais para apoio ao empreendedor negro. No entanto, não são dadas especificações sobre a execução, deixando sua aplicação como fator secundário.
Em 2020, o Ex-Senador Telmário Mota, propôs o projeto de lei N° 2538, que tinha como objetivo criar uma política nacional de apoio ao afroempreendedorismo. Nele estão contidos direcionamentos mais explícitos de como efetivar a lei. O projeto compreendia os afroempreendimentos como uma ferramenta para erradicação da pobreza e ascensão social, dentre suas proposições, estava criar a “Rede Nacional de Micro e Pequenos Afroempreendedores”, para possibilitar a troca de experiências, intercâmbios e desenvolvimento de negócios solidários, fortalecer o empreendedorismo nas comunidades quilombolas e tradicionais, criar um linha especial de crédito destinada ao fomento, apoio e incentivo, formar e capacitar afroempreendedores e articular parcerias com iniciativas nacionais, locais e regionais, como feiras de negócios e outras. Aquele que poderia ser um acalento aos empreendedores negros, pasmem, foi arquivado e não virou lei, deixando para trás mais um mecanismo com potencial de transformação e impulsionamento de negócios liderados por pessoas negras.
A nível regional podemos destacar estados que já sancionaram legislações e reúnem experiências exitosas relacionadas ao afroempreendedorismo. Um dos primeiros estados a darem atenção ao empreendedorismo negro foi a Bahia, que em 2014 atráves Lei nº 13.208 promulgou Política Estadual de Fomento ao Empreendedorismo de Negros, Negras e Mulheres — PENM. No ano seguinte, foi a vez de São Paulo instituir o “Projeto São Paulo Afroempreendedor”, no mesmo ano, o Distrito Federal criou o “Programa Afroempreendedor”, e o Espírito Santo em dezembro de 2022 aprovou a Política Estadual de Fomento ao Empreendedorismo de Negros. Espalhadas por todo o Brasil, essas experiências mostram não só a força do afroempreendedorismo, mas também da necessidade de articular legislações que amparem esses negócios.
No Maranhão, um primeiro passo já foi dado, para quem sabe, no futuro, termos uma política abrangente e eficaz que ampare diretamente o afroempreendedorismo. Em 2021, a deputada estadual Ana do Gás, apresentou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei 400/2021, que mais tarde se tornaria a Lei n° 11.580/2021. A lei inclui no calendário de eventos do Maranhão a Feira MA Preta, a ser realizada anualmente em novembro, mês da Consciência Negra. O objetivo da feira é divulgar o empreendedorismo negro, com destaque para a criatividade e inventividade nas áreas de moda, música, gastronomia, audiovisual, design e tecnologia, entre outras. Há de se comemorar, é lógico, mas também é a oportunidade de questionar o que ainda falta para a criação de uma política estadual de apoio ao afroempreendedorismo.
Se você chegou até aqui, eu tenho certeza que que vai adorar a possibilidade de continuarmos esse debate. Será no dia 08 de outubro a partir das 18h30. Para participar basta se inscrever através do formulário.
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Nós esperamos por você, até a próxima!