É COISA DE PRETO

ETC | UFMA
10 min readOct 31, 2023

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Como o afroempreendedorismo pode contribuir para a emancipação e a resistência de pessoas negras ?

Italo Silva

Captura de tela do clipe Ostentação da Cultura interpretado por Tássia Reis e Djonga disponível no Youtube

“Sou o sonho lindo e vivo dos meus ancestrais, compro da minha cor pra me lembrar que eu posso mais”.

Em Ostentação da Cultura, os rappers Djonga e Tássia Reis, através de uma parceria entre a Feira Preta e o Mercado Livre, enaltecem a cultura negra e celebram o afroempreendedorismo. Estima-se que, segundo dados da PNAD Contínua de 2022, 51% dos empreendedores brasileiros são negros. Juntos, eles movimentam cerca de R$ 1,73 trilhão anualmente na economia do país. Estes números tão expressivos nos levam a buscar compreender o contexto histórico do surgimento desse fenômeno, quais as dificuldades e conquistas.

RAÍZES

Silvio Almeida, atual Ministro da Igualdade Racial, em seu livro Racismo Estrutural, afirma “que a sociedade contemporânea não pode ser compreendida sem os conceitos de raça e de racismo”. Sob essa perspectiva, precisamos relembrar que a escravidão no Brasil destituiu a humanidade de milhões de negros arrancados do continente africano. E que após a abolição, não ocorreu um devido processo de reparação. Hoje, passados mais de 130 anos do fim da escravidão, o país ainda tem que lidar com o fantasma da discriminação racial entranhada nas relações sociais, que tenta impor à população negra uma eterna posição de subalternidade e marginalização.

Por isso, quando analisamos a presença de pessoas negras dentro do mercado formal de trabalho, percebemos que as máximas continuam as mesmas. É a parcela da população mais presente em subempregos, na informalidade e longe de cargos de diretoria ou chefia. Alimentados pelas concepções escravocratas que atribuíram aos negros a ideia de baixa intelectulidade, má aparência e deram-lhe funções braçais, servis exaustivas.

A gênese do afroempreendedorismo ocorre durante o período colonial, quando os negros tiveram que lançar mão do empreendedorismo para sobreviver, resistir. Destaca-se aqui, a forte ligação dessa prática com as mulheres negras. No texto Afroempreendedorismo feminino, escrito por Larissa Baia, ela menciona como o pioneirismo dessas mulheres foi fundamental para criar outras possibilidades de se organizar durante e pós escravidão.

No caso específico das mulheres negras, elas eram consideradas objetos de seus senhores e seus trabalhos explorados até a morte. Trabalhavam nos afazeres domésticos, nas zonas rurais e nos centros urbanos, sendo também responsáveis pelo comércio de doces, bolos, frutos, queijos, hortaliças, além de levar a correspondência de um lugar para outro. Enquanto realizavam esses serviços, os lucros eram repassados para seus “senhores”, até o fim da escravidão. Com a abolição e a falta de oportunidade, Alessandra Benedito diz que as mulheres negras utilizaram essas habilidades para seu sustento, tornando-se as primeiras empreendedoras do Brasil.

A obra de Jean-Baptiste Debret, retrata negras cozinheiras vendedoras de angu. A pintura revela que mulheres negras já empreendiam no período colonial, no pós abolição, essas habilidades culinárias foram essenciais para garantir o sustento e a sobrevivência de inúmeras mulheres negras.

Foram organizadas múltiplas formas de resistência durante a escravidão, mas esse cenário só começa a ser tensionando de maneira mais contudente, a partir da década de 1970, com o surgimento de movimentos sociais que pautaram a descentralização de direitos básicos para os negros. Dessa forma, foi-se cultivando um terreno fértil para valorização da autoestima, do cuidado, do afeto, pautando o debate da inserção efetiva do negro na sociedade. O Movimento Negro Unificado, que em 2023 completa 45 anos, foi um dois primeiros a estruturar a luta antirracista. Desde o início sua agenda discutia o combate à violência policial, o mito da democracia racial, pautava oportunidades de emprego dignas para os negros e a inserção das pessoas pretas nas universidades através das cotas raciais. Essas primeiras incursões foram essenciais para apresentar uma outra possibilidade de ser, viver e ocupar espaços antes negados.

O afroempreendedorismo ganha força com a criação de instituições com o objetivo de constituir uma rede de apoio para os afroempreendedores. Entre 1988 e 1991, foram criadas as três primeiras instituições voltadas especificamente para o empreendedorismo negro: o Centro de Assessoramento e Coordenação Empresarial (CACE), o Centro de Estudos e Assessoramento de Empresários e Empreendedores Afro- brasileiros (CEM) e o Círculo Olympio Marques (COLYMAR). Em 1995, mais duas outras associações chegaram para fortalecer a causa: a Associação Nacional dos Coletivos de Empresários (ANCEABRA) e os Coletivos de Empresários e Empreendedores Afro-brasileiros (CEABRAs), o primeiro criado em São Paulo e depois em outros estados do Brasil. A tarefa principal dessas organizações era oferecer orientações jurídicas, administrativas, promover seminários, feiras, capacitações e treinamento para afroempreendedores.

Atualmente o Brasil já soma mais de 14 milhões de empreendedores negros com negócios ativos.

MAS AFINAL, O QUE É O AFROEMPREENDEDORISMO?

Não existe uma definição consensual do que seja afroempreendedorismo, por isso, não estranhe se ouvir termos como empreendedorismo preto, empreendedorismo negro ou empreendedorismo afro-brasileiro. Todos partem de um mesmo princípio: pessoas pretas que estão empreendendo.

O livro “O lado negro do empreendedorismo: afroempreendedorismo e Black Money’’, escrito pela professora Maria Angélica dos Santos, joga luz na discussão, no esforço de tornar o conceito mais tangível. Ela utiliza as expressões afroempreendedorismo lato sensu (sentido amplo) e afroempreendedorismo stricto sensu (sentido estrito).

  1. Afroempreendedorismo lato sensu: pode ser entendido como a atividade comercial desenvolvida por uma pessoa negra (pretos e pardos de acordo com o IBGE), mas que não necessariamente tem como objetivo contribuir com o fortalecimento do debate acerca das questões raciais, aqui deve-se “comemorar”, a ideia de um corpo negro superar as desigualdades socioeconômicas e adentrar o ecossistema empreendedor;
  2. Afroempreendedorismo stricto sensu: desenvolvido por uma pessoa negra (pretos e pardos de acordo com o IBGE) e que pretende através de produtos e serviços contribuir com a luta antirracista, potencializar a valorização da cultura afro-brasileira, auxiliar no fortalecimento identitário e incentivar o afroconsumo.

Como já citado anteriormente, o afroempreendedorismo nasce num contexto sócio-histórico de necessidade, na perspectiva de “empreender para sobreviver”. Dentro de uma lógica capitalista, o empreendedorismo negro pauta a presença de pessoas negras dentro das dinâmicas econômicas, gera lucro e autonomia financeira, e é uma alternativa para aqueles que estão excluídos do mercado de trabalho formal. Mas tão importante quanto isso, é o movimento de promover uma fissura no mercado produtor e consumidor hegemônico, que passa a ouvir as necessidades físicas, estéticas e emocionais da população negra.

Seguindo com as ideias de Maria Angélica dos Santos, ela destaca três pilares que configuram, no seu entendimento, a prática afroempreendedora:

Unidade Racial: tendo em vista que a população afrobrasileira foi lesada de maneira coletiva, a ascensão social e econômica, de modo individual, pode ser mais lenta. O afroempreendedorismo, para além de se tratar de negros empreendendo, conforma um movimento político, de soerguimento racial e de rompimento com práticas coloniais. Portanto, é necessário que ocorra a criação de vínculos sociais gerando a união de forças e possibilitando a circulação de riquezas entre negros, reduzindo as chances de miserabilidade e pobreza.

Valorização da Ancestralidade: na cosmovisão africana vigora um provérbio adinkra intitulado “sankofa”, sua representação é feita por um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando no seu bico uma pedra. A pedra simboliza o passado, demonstrando que o pássaro voa para frente, para o futuro, sem esquecer do passado. É através da consciência histórica que perpassa pelo respeito à cultura , religião e práticas ancestrais, que o afroempreendedorismo conseguirá alcançar o viés transformador que carrega em sua essência como elemento nuclear. O conhecimento e apego à história ancestral é importante para posicionar o afroempreendedor onde se encontram suas raízes. Estar em sintonia com a ancestralidade, contribui para a construção da autoestima, da identidade e para a compreensão de que existe uma história para além da escravidão.

Desracialização da Cadeia Produtiva: parte da ideia de existir uma ética produtiva que fundamenta a prática do afroempreendedorismo. As atividades devem ser desenvolvidas baseadas em modelos antirracistas, inclusivos, não discriminatórios.

DESAFIOS

Iniciar um negócio do zero é um baita desafio. Adicione aí, falta de recursos, investimentos, desconfiança por parte do mercado, bancos que negam créditos e um ingrediente especial: a cor da pele. Não dá para concretizar um sonho com dois reais no bolso. Um dos entraves para os empreendedores negros darem o pontapé inicial e manteram seus negócios é o capital. Eles até recorrem a financiamentos por vias legais como bancos, contudo, a resposta por vezes é negativa. A pesquisa “O impacto da pandemia do coronavírus nos pequenos negócios” de 2021, realizada pelo Sebrae e Fundação Getúlio Vargas, mostra que cerca de 51% dos afroempreendedores solicitam acesso a crédito, porém, cerca de 47% têm o pedido negado. Quando comparado aos empreendedores brancos, cerca 49% buscam financiamento, e apenas 34% dos pedidos são recusados.

É perceptível que o afroempreendedorismo é atravessado por diversos obstáculos. Adriana Barbosa, idealizadora da Feira Preta, o maior evento de cultura negra da América Latina, e CEO do AfroHUB, em entrevista ao Instituto Claro, menciona que, para se consolidar enquanto prática comercial, o afroempreendedorismo precisou romper com uma velha lógica que enxergava a cultura negra como uma contracultura, uma cultura alternativa, passando a ser tornar cultura de massa, do mainstream. Ou seja, era preciso reforçar no imaginário social que as pessoas pretas necessitavam de produtos e serviços específicos para seu tom de pele e textura do cabelo ou que as obras televisivas, literárias e produções audiovisuais deviam contar sobre a história do povo preto, gerando processos de identificação e por consequência de consumo.

E não pense que as dificuldades acabam por aí. Se iniciar é difícil, manter um negócio funcionando requer uma coalizão de forças, que nem sempre andam juntas. A pesquisa “Afroempreendedorismo Brasil” de 2021, desenvolvido pela RD Station, Inventivos e o Movimento Black Money, revela que 48,6% dos afro empreendimentos ainda não têm faturamento. É necessário ter o mínimo conhecimento de mercado, de precificação, de estratégias de venda/negociação, de como atrair a clientela através das ferramentas de comunicação. Um estudo realizado pelo Google e a Box1824 em 2022, levantou dados qualitativos e quantitativos (com apoio da Offerwise) sobre a trajetória empreendedora de pessoas negras e brancas. Como resultado, foi elencado “muros” que necessitam ser superados para chegar ao nível de um negócio maduro. Destaca-se aqui, dois deles: o muro do desconhecimento e o muro da superação. Ambos apontam que o iniciar de um empreendedor negro, via de regra, acontece sem conhecimento técnico específico, muitas decisões são tomadas na emoção, sem muito repertório, fato que pode comprometer a saúde financeira do negócio já nos primeiros meses. Manter a cadeia produtiva funcionando requer especialização, ferramentas adequadas, entendimento de gestão de negócios. Pode ser que em algum momento esses fatores virem uma bola de neve e o sentimento de frustração tome conta. Pessoas negras tendem a se manter frustradas por mais tempo do que os brancos ao longo dos dois primeiros anos do negócio.

O QUE ESTÁ SENDO CONSTRUÍDO PARA APOIAR O AFROEMPREENDEDOR?

De início, a resposta é até animadora. Mapeei diversas ações, em termos de políticas públicas, que visam apoiar os afroempreendedores. No entanto, são leis que embora estejam sancionadas, sua efetividade deixa a desejar.

Em 2003, foi instituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, no inciso V, que trata sobre ações, tem uma alínea que menciona rapidamente o afroempreendedorismo — Incentivo à capacitação e créditos especiais para apoio ao empreendedor negro. No entanto, não são dadas especificações sobre a execução, deixando sua aplicação como fator secundário.

Em 2020, o Ex-Senador Telmário Mota, propôs o projeto de lei N° 2538, que tinha como objetivo criar uma política nacional de apoio ao afroempreendedorismo. Nele estão contidos direcionamentos mais explícitos de como efetivar a lei. O projeto compreendia os afroempreendimentos como uma ferramenta para erradicação da pobreza e ascensão social, dentre suas proposições, estava criar a “Rede Nacional de Micro e Pequenos Afroempreendedores”, para possibilitar a troca de experiências, intercâmbios e desenvolvimento de negócios solidários, fortalecer o empreendedorismo nas comunidades quilombolas e tradicionais, criar um linha especial de crédito destinada ao fomento, apoio e incentivo, formar e capacitar afroempreendedores e articular parcerias com iniciativas nacionais, locais e regionais, como feiras de negócios e outras. Aquele que poderia ser um acalento aos empreendedores negros, pasmem, foi arquivado e não virou lei, deixando para trás mais um mecanismo com potencial de transformação e impulsionamento de negócios liderados por pessoas negras.

A nível regional podemos destacar estados que já sancionaram legislações e reúnem experiências exitosas relacionadas ao afroempreendedorismo. Um dos primeiros estados a darem atenção ao empreendedorismo negro foi a Bahia, que em 2014 atráves Lei nº 13.208 promulgou Política Estadual de Fomento ao Empreendedorismo de Negros, Negras e Mulheres — PENM. No ano seguinte, foi a vez de São Paulo instituir o “Projeto São Paulo Afroempreendedor”, no mesmo ano, o Distrito Federal criou o “Programa Afroempreendedor”, e o Espírito Santo em dezembro de 2022 aprovou a Política Estadual de Fomento ao Empreendedorismo de Negros. Espalhadas por todo o Brasil, essas experiências mostram não só a força do afroempreendedorismo, mas também da necessidade de articular legislações que amparem esses negócios.

Ações realizadas na Feira Preta MA que desde 2021 reúne diversos afroempreendedores do estado. A programação perpassa por exposições, apresentações culturais, rodas de literatura, debates e oficinas.

No Maranhão, um primeiro passo já foi dado, para quem sabe, no futuro, termos uma política abrangente e eficaz que ampare diretamente o afroempreendedorismo. Em 2021, a deputada estadual Ana do Gás, apresentou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei 400/2021, que mais tarde se tornaria a Lei n° 11.580/2021. A lei inclui no calendário de eventos do Maranhão a Feira MA Preta, a ser realizada anualmente em novembro, mês da Consciência Negra. O objetivo da feira é divulgar o empreendedorismo negro, com destaque para a criatividade e inventividade nas áreas de moda, música, gastronomia, audiovisual, design e tecnologia, entre outras. Há de se comemorar, é lógico, mas também é a oportunidade de questionar o que ainda falta para a criação de uma política estadual de apoio ao afroempreendedorismo.

Se você chegou até aqui, eu tenho certeza que que vai adorar a possibilidade de continuarmos esse debate. Será no dia 08 de outubro a partir das 18h30. Para participar basta se inscrever através do formulário.

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Nós esperamos por você, até a próxima!

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ETC | UFMA

Grupo de Pesquisa em Comunicação, Tecnologia e Economia da Universidade Federal do Maranhão (ETC/UFMA).