Valores ancestrais e economia

ETC | UFMA
5 min readMay 16, 2022

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Precisamos de soluções para as crises atuais, o que passa por outro projeto ético/moral que não precisa ser elaborado do zero

Larissa Baia

“Gerações”, projeto dirigido pelo artista baiano Del Nunes busca proporcionar, através da arte visual, o fortalecimento da ancestralidade, identidade, afeto e resistência entre mulheres negras.

Pierre Dardot e Christian Laval, ao apresentarem uma análise sobre o neoliberalismo em um ensaio publicado originalmente em 2009, na França, mostram como a doutrina neoliberal se constituiu para além de um paradigma econômico, mas também como uma forma de existir, ou seja, o modo como uma pessoa se comporta e se relaciona com os outros, consigo e com o mundo. Nessa perspectiva, eles evidenciam que o neoliberalismo define as normas de vida nas sociedades ocidentais e há quase um terço de século rege as políticas públicas, comandam as relações econômicas mundiais, modificando a sociedade e modelando a subjetividade. Partindo desse pensamento, os autores dizem que são as normas capitalistas neoliberais que impõem que vivamos em um universo de competição generalizada e nos obrigam a justificar desigualdades cada vez mais profundas, o que afeta inclusive a concepção do indivíduo sobre si mesmo, fazendo com que se comporte como uma empresa.

A doutrina neoliberal se constituiu para além de um paradigma econômico, mas também como uma forma de existir, ela é uma modeladora de subjetividades.

Reforçando esse pensamento, Eduardo Oliveira afirma que o sistema econômico capitalista tem como fundamento uma cosmovisão essencialista, excludente e individualista, baseada em processos de dominação. Para ele, a exclusão econômica/social é fundamental, pois justifica o estado de coisas que preserva e aumenta a injustiça social em todo o planeta, inclusive no Brasil. À vista disso, a influência da cultura ocidental, dos valores judaico-cristãos e eurocêntricos construíram uma visão que reduz o reconhecimento de outros modelos de vida que surgiram ao longo do tempo em diversos territórios do planeta. Somos reféns de dicotomias, como reforma-revolução, moderno-arcaico, progresso-tradição, e não conseguimos reconhecer e valorizar modelos socioeconômicos e políticos-culturais fabricados pela complexa tradição africana, que, não obstante, espalhou-se por todo planeta levando consigo uma cosmovisão inclusiva, imanente e alternativa, defende Oliveira. Esse pensamento parece convergir com o do Alberto Acosta, quando defende que o discurso sobre o desenvolvimento das sociedades regidas pelo modo de produção capitalista se consolidou em uma dominação dicotômica. Desse modo, a colonialidade marcou padrões de relações no contexto da colonização européia nas Américas.

A influência da cultura ocidental, dos valores judaico-cristãos e eurocêntricos construíram uma visão que reduz o reconhecimento de outros modelos de vida que surgiram ao longo do tempo em diversos territórios do planeta.

No entanto, apesar das violências características dos processos de colonização, muitos povos conseguiram sobreviver e caminhar na construção de alternativas. Nessa perspectiva, Catherine Walsh defende que é fundamental, então, descolonizar e pensar estratégias de transformação que busquem a superação e a emancipação intercultural como um projeto social, político, ético e intelectual que pode assumir a descolonialidade como estratégia, ação e meta. O afroempreendedorismo feminino e a interculturalidade entre mulheres negras pode ser um exemplo desse projeto, visto que as experiências do afroempreendedorismo feminino geram valores, crenças e modos de vidas que podem refletir sua negritude, história, ancestralidade afro e seu sentido de viver em sociedade. Para aprofundar esse debate recomendo a leitura do texto afroempreendedorismo feminino. Com base nisso, pode-se vislumbrar sistemas econômicos mais justos, menos orientados pela lógica neoliberal e que inspirem caminhos capazes de atender aos direitos humanos, sociais e da natureza.

É fundamental, então, descolonizar e pensar estratégias de transformação que busquem a superação e a emancipação intercultural como um projeto social, político, ético e intelectual que pode assumir a descolonialidade como estratégia, ação e meta.

Nathalia Grilo trouxe o resultado de sua pesquisa sobre os mercados tradicionais Iorubá, nascidos do desejo de revigorar os empreendimentos negros. Uma proposta fruto das práticas ancestrais de comércio que vêm dos ensinamentos da cosmovisão Iorubá. A pesquisadora parte da premissa de que tais mercados nascem da espiritualidade e dos ventres africanos, o que significa que toda dinâmica estrutural desse mercado advém das grandes mães e de uma dinâmica muito específica de organização da sociedade Iorubá. Grilo acentua grandes diferenças do mercado tradicional Iorubá para o capitalista ocidental. Por exemplo, a dinâmica desses mercados é regida pelos orixás, fazendo com que não se tenha como objetivo principal o lucro. Por ser um mercado que considera a espiritualidade e a transcendência, eles vão dar mais valor às negociações. Geralmente, os produtos não têm preço fixo, então as compras e as vendas são permeadas pela oralidade e pela barganha; logo, as negociações para esse povo são muito importantes, posto que é ponto de entendimento e cumplicidade, a partir do qual deve emergir um negócio justo para ambos os lados.

Vilma Piedade, ao resgatar a história do poder feminino na tradição do povo africano Iorubá, explica que a conexão com os costumes resiste, modificando-se e sobrevivendo, apesar da colonização. Desse modo, quando se fala de tradições e ancestralidade, ela não se refere ao antigo, mas ao que se mantém vivo e em movimento.

Ancestralidade é o que se mantém vivo e em movimento.

O ofício das Quitandeiras exemplifica como esses valores resistem. O estudo Empreendedorismo Feminino: mulheres negras pioneiras no Brasil traz um aspecto das mulheres negras angolanas. É identificado que, em Angola, as mulheres que exerciam o ofício de comércio eram chamadas de quitandeiras, termo utilizado para designar as negras vendeiras, que vendiam alimentos do gênero da terra. As práticas das quitandeiras, como argumenta Selma Pantoja, são exemplos de como as mulheres atuavam no comércio. Na região da África Central Ocidental, eram referência de como funcionavam as redes comerciais de gênero de primeira necessidade; registrando também como esse tipo de comércio foi trazido para as cidades coloniais brasileiras. A autora destaca, ainda, que as feiras e os mercados são registros constantes nos primeiros relatos dos primeiros europeus que tiveram contato com as terras africanas.

Diante disso, pensar a ancestralidade das mulheres negras africanas e afro-brasileiras, o protagonismo feminino nos mercados Iorubás e as práticas comerciais das Quitandeiras, trazidas para o Brasil quando foram escravizadas, cria uma herança que pode estar refletida nas práticas afroempreendedoras ao gerarem valor aos seus negócios, indicando, assim, outras formas de se relacionar com a produção, a circulação e o consumo de bens e serviços, além da construção de outros vínculos que podem ser instaurados entre quem vende e quem compra, indo muito além do simples lucro.

Acompanhem os estudos do ETC através dos encontros abertos que acontecem quinzenalmente às terças e das reflexões publicadas aqui.

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ETC | UFMA

Grupo de Pesquisa em Comunicação, Tecnologia e Economia da Universidade Federal do Maranhão (ETC/UFMA).