Explicando os regimes cambiais existentes — Parte I

Fabrício
16 min readOct 15, 2019

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Pretendo discorrer sobre o câmbio fixo e sua viabilidade. A segunda parte estará disponível futuramente.

Para um maior aprofundamento no tema que será abordado, recomendo a leitura de Currency Boards for Eastern Europe.

O que é a taxa de câmbio?

A taxa de câmbio, ao lado da taxa de juros, é um dos principais preços de toda a economia. A taxa de câmbio é o preço da moeda de um país em termos de todas as outras moedas do mundo.

Grosso modo, a taxa de câmbio representa, em tempo real, a razão entre os preços gerais vigentes em dois países distintos.

Sendo assim, se um país, por exemplo, tem uma taxa de câmbio que se mantém inalterada em relação ao franco suíço, isso significa que sua moeda se mantém tão forte quanto o franco suíço. Significa que sua moeda mantém o mesmo poder de compra do franco suíço. Obviamente, é impossível este país vivenciar uma hiperinflação (a menos, é claro, que o franco suíço entre em processo de hiperinflação).

É exatamente por isso que todos os planos de estabilização econômica — países que estão vivenciando um processo de hiperinflação e querem retornar à normalidade — necessariamente passam por alterações no regime cambial adotado.

Ainda mais importante: no atual mundo globalizado em que vivemos, a taxa de câmbio é muito mais efetiva em determinar a inflação de preços do que as taxas de juros. A taxa de câmbio afeta praticamente todos os preços da economia, desde alimentos e remédios até móveis (que são fabricados com commodities transacionadas em dólar), utensílios domésticos (desde panelas de aço a aparelhos eletroeletrônicos), gasolina (o petróleo é cotado em dólar) e eletroeletrônicos, passando por pequenas empresas que utilizam produtos importados (uma simples firma que utiliza computadores e precisa continuamente comprar peças de reposição) até grandes indústrias que necessitam de importar máquinas e matérias-primas de várias partes do mundo.

Igualmente, a taxa de câmbio é crucial para o crescimento de uma economia. Uma taxa de câmbio estável pode gerar um prolongado período de crescimento econômico, ao passo que uma taxa de câmbio instável é capaz de reverter qualquer processo de crescimento.

Existem três tipos de regimes cambiais: taxa de câmbio flutuante, taxa de câmbio fixa e taxa de câmbio atrelada. Cada uma dessas taxas possui características diferentes e gera resultados distintos.

Como foi dito, o foco deste artigo será a taxa de câmbio fixo. Então, vamos aos esclarecimentos sobre este regime cambial.

A taxa de câmbio fixo

Sob um arranjo de taxa de câmbio fixa, a taxa de câmbio, obviamente, tem de ser estritamente imutável ao longo do tempo.

É comum confundir taxa de câmbio fixa com taxa de câmbio atrelada. Na taxa de câmbio atrelada, que foi a que vigorou no Brasil durante os anos de 1995 a 1998, a taxa de câmbio varia diariamente, só que dentro de bandas estritamente determinadas pelo Banco Central. Tal arranjo, que será estudado mais abaixo, é inerentemente instável, ao contrário da taxa de câmbio fixa.

Um arranjo de taxa de câmbio fixa dificilmente pode ser implantado por um Banco Central, pois a função clássica de um Banco Central é estipular juros e manipular a base monetária.

Um arranjo de câmbio fixo só pode funcionar bem por meio de um Currency Board.

Elucidando o Currency Board

Um Currency Board — que pode ser traduzido como Agência de Conversão ou Caixa de Conversão — já vigorou no Brasil no período de 1906 a 1920 (mais detalhes sobre isso abaixo). Trata-se de um dos arranjos monetários mais antigos e tradicionais do mundo, perdendo apenas para o padrão-ouro. Aliás, era comum que o país que adotasse o padrão-ouro o fizesse por meio de um Currency Board (como ocorreu com o Brasil no período supracitado).

O Currency Board nada mais é do que, como o próprio nome em português deixa claro, uma agência de conversão de moeda, cuja única função é converter a moeda nacional em uma moeda estrangeira específica (chamada de moeda-âncora), e vice-versa, a uma taxa de câmbio fixa e imutável.

O Currency Board é meramente uma agência de conversão, e funciona literalmente como se fosse uma casa de câmbio. Ele não faz política monetária, ele não regula bancos, ele não controla juros, ele não cria moeda para comprar títulos do governo ou papeis de empresas nacionais. Ele só cria cédulas e moedas metálicas quando recebe em contrapartida a moeda-âncora.

Nesse arranjo, juros, base monetária e crédito variam estritamente ao sabor do mercado. Não há nenhuma política monetária. A política monetária fica no piloto automático.

O princípio de operação de um Currency Board é bastante simples e, quando obedecido ortodoxamente, muito eficaz. O Currency Board é o arranjo que se implanta quando se quer adotar uma genuína “âncora cambial”, o que faz com que a moeda de um país se torne um mero substituto de uma moeda estrangeira. A única função de um Currency Board é trocar moeda nacional (que ele próprio emite) por moeda estrangeira, e vice versa, a uma taxa fixa.

Caso um país adote o dólar como moeda-âncora, o Currency Board tem a função de trocar, sem custo e sem demora, a moeda nacional pelo dólar à taxa de câmbio fixada.

Para funcionar assim, o Currency Board, por definição, tem de manter reservas internacionais em um volume que seja igual ou maior do que a base monetária da moeda nacional.

Sob este arranjo, quando um empreendedor exporta produtos, ele recebe como pagamento uma moeda estrangeira — no caso, o dólar. Ato contínuo, o Currency Board emite moeda nacional a uma taxa de câmbio fixa em relação ao dólar (aumentando a base monetária) e envia o montante para o banco deste exportador (e o banco, obviamente, acrescentará os dígitos eletrônicos na conta desse exportador). Os dólares ficam com o Currency Board.

Inversamente, quando um empreendedor importa produtos, a moeda nacional é trocada por dólares a uma taxa fixa no Currency Board: o Currency Board fica com a moeda nacional (o banco envia as cédulas para o Currency Board, contraindo a base monetária) e o Currency Board envia os dólares (na forma de dígitos eletrônicos) para a conta do exportador estrangeiro.

Note que, sob um Currency Board, a variação da base monetária é completamente passiva. Ela aumenta e diminui estritamente de acordo com a entrada e saída de moeda estrangeira. O Currency Board não faz política monetária. Ele não pode criar moeda nacional e injetá-la na economia em troca de um ativo qualquer. Ele só pode emitir moeda nacional se receber um valor equivalente em moeda estrangeira.

Sob este regime de câmbio estritamente fixo e de política monetária totalmente passiva, quando há um superávit no balanço de pagamentos, a base monetária se expande e os bancos ficam com mais reservas. Isso gera uma redução nos juros e, consequentemente, uma expansão no crédito e uma elevação nos preços. Ato contínuo, as importações aumentam e tende a haver uma saída de capital especulativo do país (por causa da redução dos juros), o que gera uma saída de reservas do país. Essa saída de reservas reduz a base monetária (mas não necessariamente a oferta monetária, pois os bancos continuam operando normalmente com reservas fracionárias). Os juros sobem, isso atrai capital estrangeiro (e a economia se desacelera) e o balanço de pagamentos volta ao equilíbrio.

Esse arranjo funciona exatamente como funcionaria um padrão-ouro, com uma moeda estrangeira fazendo o papel do ouro. (Com o tempo, o balanço de pagamentos tende ao equilíbrio, de forma que tais flutuações econômicas sejam mínimas.)

Ou seja, em vez de haver um Banco Central manipulando juros e base monetária com o intuito (impossível) de fazer uma “sintonia fina” na economia, em um arranjo de Currency Board juros, base monetária e crédito são determinados pelas forças de mercado.

As características de um Currency Board

O Currency Board é um empreendimento de baixíssimo custo, o qual pode (aliás, deve) ser feito pela iniciativa privada, sem nenhuma participação do estado.

Um Currency Board investe apenas em ativos de alta liquidez no país da moeda-âncora. Ele não adquire nenhum ativo do país em que opera — pois, para fazer isso, ele teria de criar reais para comprar ativos, mas ele só pode criar reais se receber em contra-partida a moeda-âncora.

No balancete do Currency Board, os passivos são as cédulas e moedas metálicas que ele emite, e os ativos são aplicações de alta liquidez feitas na moeda-âncora.

Por exemplo, um Currency Board que utiliza o dólar como moeda-âncora, teria em seus ativos aplicações em título do governo americano ou empréstimos no mercado interbancário americano ou mesmo no mercado interbancário de Londres. Um Currency Board que utiliza o ouro como moeda-âncora teria em seus ativos empréstimos no mercado de ouro de Londres e Zurique.

E os passivos seriam exclusivamente os reais que ele emitiria a cada recebimento de dólar ou ouro. Seu custo real seria apenas o de trocar cédulas gastas e rasgadas por cédulas novas.

Ou seja, é um empreendimento de baixíssimo custo e não retira um único centavo dos pagadores de impostos.

Para garantir que o Currency Board seja imune aos governos dos países em desenvolvimento, recomenda-se que ele tenha sua sede na Suíça, estando sujeito às leis suíças e a uma auditoria suíça (com filiais nas principais capitais do Brasil, é claro). O governo do país em desenvolvimento nada poderia fazer contra ele (como, por exemplo, obrigá-lo a criar moeda para financiar seus déficits). Caso fizesse algo, seria uma agressão internacional, pois estaria atacando uma instituição suíça.

Como implantar um Currency Board

Por si só, o processo de implantação de um Currency Board é extremamente simples e rápido, podendo ser feito em um dia. O único desafio é estipular qual será a taxa de câmbio. Para isso, deve-se adotar o seguinte procedimento:

a) Anuncia-se para o mundo todo que na data X — por exemplo, dia 1 de dezembro daqui a dois meses — o país adotará um Currency Board estritamente ortodoxo, com suas leis estabelecidas na Suíça, e à taxa de câmbio vigente no dia último dia útil anterior. (Foi exatamente assim que foi feito com o Plano Real).

b) Após o anúncio, libera-se absolutamente todo o mercado de câmbio. Não deve haver nenhuma restrição à entrada e à saída de capitais. Nenhum imposto, nenhum IOF, nenhum tipo de controle de capital. O objetivo é ter um mercado cambial plenamente livre, justamente para que ele informe o real valor da sua moeda.

c) Dois meses é tempo mais do que suficiente (na verdade, não precisa de mais do que um) para se estabelecer uma “verdade cambial”.

d) Caso o plano seja crível, e os investidores e especuladores estrangeiros realmente acreditem na seriedade da proposta, a tendência é que o câmbio se aprecie até a data da adoção do câmbio fixo (medida essa essencial para a atual situação brasileira). Vale ressaltar que investidores e especuladores estrangeiros ganham com uma moeda que está se apreciando, de modo que eles próprios irão se encarregar de fazer essa apreciação.

e) Ou seja, paradoxalmente, para se adotar um câmbio fixo, é necessário deixá-lo flutuar livremente por algum tempo.

f) A taxa de câmbio é muito influenciada pela confiança no governo e nas políticas futuras, e o simples anúncio da implantação de Currency Board sério e ortodoxo já faria o câmbio se valorizar fortemente. Em meados de 1998, quando a Indonésia vivenciava uma grande turbulência em decorrência de uma crise econômica e das tentativas do governo americano de depor o ditador Suharto — o que fez com que a taxa de câmbio disparasse, colocando o país à beira de uma hiperinflação — , um simples boato de que o país estava estudando implantar um Currency Board fez com que a rúpia se valorizasse 16% em um único dia.

g) Detalhes sobre o processo de dissolução do Banco Central, bem como o cancelamento dos títulos do Tesouro que estão em sua posse (o que reduziria a dívida pública em aproximadamente R$ 1 trilhão) estão fora do escopo deste artigo. Basta dizer que os atuais prédios do Banco Central (sede em Brasília e suas sucursais nas outras nove capitais) podem ser integralmente transferidos à empresa que gerenciará o Currency Board, bem como a totalidade de suas reservas internacionais (as quais também podem ser convertidas gradualmente em ouro). As cédulas e moedas metálicas de reais existentes se tornam um passivo do Currency Board. Pode-se também colocar na cláusula de contrato que os lucros do Currency Board obtidos com esse excesso de reservas internacionais — que superam em muito a base monetária — podem ser revertidos para o Tesouro com a condição de que este utilize o dinheiro para amortizar a dívida.

As possibilidades dentro de um Currency Board

Imagine que a moeda-âncora seja o dólar. Como funcionaria o Currency Board?

a) Um exportador vende soja e recebe US$ 1.000 — na prática, ele se torna proprietário de uma conta no exterior no valor de US$ 1.000;

b) Ele agora tem três opções: 1) ele pode manter os US$ 1.000 nessa conta estrangeira durante o período de tempo que ele quiser; 2) ele pode vender esses US$ 1.000 para qualquer banco; 3) ele pode entregar esses US$ 1.000 para o Currency Board e receber reais em troca (o CB irá enviar as cédulas para o banco desse exportador).

c) Caso opte pela opção 2, o banco ficará com os US$ 1.000, e criará reais na conta do exportador. Ato contínuo, o banco pode optar por ficar com os US$ 1.000 aplicados lá fora ou trocá-los por reais no Currency Board, ganhando cédulas de reais.

d) Caso opte pela opção 3, o Currency Board simplesmente enviará as cédulas de reais para o banco do exportador e este acrescentará dígitos eletrônicos na conta bancária do exportador.

Agora imagine que a moeda-âncora seja o ouro. Nesse caso, vale enfatizar que a taxa de câmbio fixa é aquela entre reais e ouro. A taxa de câmbio entre real e dólar é flutuante e varia de acordo com o câmbio entre dólar e ouro. Como funcionaria? Da mesma maneira:

a’) Um exportador vende soja e recebe US$ 1.000 (na prática, ele se torna proprietário de uma conta no exterior no valor de US$ 1.000);

b’) Ele agora tem três opções: 1) ele pode manter os US$ 1.000 nessa conta durante o período de tempo que ele quiser; 2) ele pode vendê-los para qualquer banco no Brasil em troca de reais à cotação do dia; 3) ele pode vendê-los por ouro e então trocar por reais no Currency Board.

c’) Caso opte pela opção 2, o banco ficará com os US$ 1.000, e criará reais na conta do exportador à taxa de câmbio do dia. Ato contínuo, o banco pode optar por ficar com os US$ 1.000 aplicados lá fora ou trocá-los por ouro, revender o ouro ao Currency Board e ganhar reservas em reais (a taxa de câmbio entre ouro e reais é fixa).

d’) Caso opte pela opção 3, o Currency Board simplesmente enviará as cédulas de reais para o banco do exportador e este acrescentará dígitos eletrônicos na conta bancária do exportador.

Mas é no processo de importação que o Currency Board se revela essencial. Com um Currency Board, nunca há risco de não se poder importar.

No processo de importação tradicional, o importador tem de conseguir alguém disposto a vender moeda estrangeira em troca da moeda nacional. Caso ninguém esteja disposto a isso (como está acontecendo na Venezuela neste momento; e em menor grau na Argentina), simplesmente não há importação.

Já com um Currency Board, a moeda nacional se torna automaticamente conversível. Não há risco de ela não ser aceita e de ela não conseguir comprar bens estrangeiros.

Com um Currency Board, basta o importador vender seus reais para o CB. Ele conseguirá dólares (ou ouro) em troca e então poderá trocar esses dólares (ou ouro) por qualquer moeda estrangeira que queira, podendo então fazer sua importação.

As vantagens de um câmbio fixo

1) Uma das grandes atratividades de um Currency Board é que, como dito logo acima, ele gera conversibilidade imediata para a moeda nacional.

Conversibilidade, em termos bem práticos, é quando um pipoqueiro tem liberdade para trocar reais por dólares (ou outra moeda estrangeira) em qualquer banco. Conversibilidade é quando você tem liberdade para converter reais em libras e aplicar no mercado interbancário de Londres. Atualmente, apenas fundos de investimento que operam volumosas quantias têm essa autorização.

Aqui no Brasil, você não pode chegar a um banco ou a uma casa de câmbio e trocar reais por moeda estrangeira na quantia que quiser. No máximo, você consegue trocar uns R$ 3.000 por alguns dólares em uma casa de câmbio, mas pagando o valor do dólar turismo, IOF e outras taxas. Acima de determinado valor, o governo exige que você se justifique, mostrando uma passagem aérea. Isso não é conversibilidade.

Já sob um Currency Board, uma moeda estraçalhada se transforma em uma moeda confiável, conversível e demandada. Do dia para a noite. Por isso que os países da ex-URSS que adotaram esse sistema (Estônia, Letônia, Lituânia e, em menor escala, Bulgária) prosperaram.

2) Um Currency Board gera estabilidade de longo prazo para os investimentos (os investidores sabem exatamente qual será o valor da moeda nos anos vindouros), acaba com as especulações e retira completamente das autoridades políticas do país a capacidade de fazer política monetária — e, consequentemente, de desvalorizar a moeda, o que afeta sensivelmente a taxa de retorno dos investidores estrangeiros.

O Currency Board gera confiança imediata na moeda doméstica justamente porque ele mantém reservas internacionais em um volume igual ou maior que a base monetária da moeda nacional (no caso do Brasil, que aproximadamente US$ 370 bilhões em reservas, há dólares de sobra). Em teoria, quando a operação do Currency Board é obedecida ortodoxamente, ataques especulativos não geram resultados — afinal, seria impossível exaurir as reservas internacionais (a base monetária teria de ser toda mandada pra fora, algo impossível).

Essa é a principal atratividade do sistema: ele gera segurança aos investidores estrangeiros, que deixam de temer uma súbita desvalorização da moeda nacional, o que causaria enorme prejuízo para eles quando fossem repatriar seus lucros.

3) Além de estabilizar a moeda, um Currency Board impõe forçosamente uma disciplina às políticas fiscais do governo.

Por exemplo, mesmo sendo um país notoriamente formado por políticos corruptos, o governo da Bulgária, cujo Banco Central opera de acordo com princípios de Currency Board, reduziu sua dívida de 80% do PIB para apenas 30% do PIB. O governo da Bulgária é um dos menos endividados da Europa.

Já o governo da Estônia, outro país que adotou um Currency Board (ancorado ao marco alemão), é um dos menos endividados do mundo. Antes da crise financeira mundial, a dívida do governo era de meros 4% do PIB.

E o motivo é óbvio: dado que um Currency Board não pode manipular juros e base monetária, todo e qualquer déficit orçamentário do governo gera aumento de juros: afinal, o governo tem de tomar empréstimos para se financiar, e dado que não há um Banco Central para dar dinheiro ao bancos e aumentar as reservas bancárias, os empréstimos contraídos pelo governo reduzem a oferta de crédito para o setor privado, gerando um imediato aumento dos juros. Consequentemente, o governo tem de manter seu orçamento equilibrado, caso contrário asfixiará a economia.

4) Um Currency Board também impõe forçosamente uma disciplina ao sistema bancário.

Havendo um Banco Central, que sempre atuou como o “emprestador de última instância”, este sempre estará pronto para socorrer todo e qualquer banco que apresente dificuldades. A função precípua de um Banco Central é, ao contrário do que dizem os manuais de macroeconomia, proteger o cartel dos bancos, evitando que eles passem por qualquer tipo de dificuldade.

Já em um arranjo de Currency Board, se um banco emprestar muito e se tornar muito alavancado, ele precisará de mais reservas bancárias. Como o Currency Board não pode simplesmente imprimir dinheiro para capitalizar este banco, nem emprestar dinheiro para ele, e nem comprar ativos dele (como faz o Banco Central), tal banco tem três opções:

a) Recorre ao mercado interbancário — onde os juros agora são livres e não são manipulados por um Banco Central — para pedir reservas emprestadas para outro banco;

b) Eleva os juros que ele paga para seus correntistas (como forma de atrair novos depósitos, e também de dissuadir que seus correntistas saquem dinheiro);

c) Atrai dólares de investidores estrangeiros (os quais, estes sim, podem ser levados ao Currency Board e convertidos em moeda nacional).

Agora, caso todos os bancos estejam alavancados — o que seria raro em um cenário no qual não há um emprestador de última instância, mas que pode acontecer — , sobram apenas as opções b e c.

Ou seja, em um cenário de Currency Board, os bancos têm necessariamente de ser mais prudentes, e podem inclusive remunerar melhor seus correntistas, pois não há tabelamento de juros (como há em um cenário com Banco Central).

O história brasileira com o Currency Board

O Brasil operou um Currency Board no início de 1906 a 1920, durante um de nossos efêmeros experimentos com o padrão-ouro.

As fotos abaixo mostram duas cédulas emitidas pela Caixa de Conversão que operava no Brasil à época:

Na parte inferior da cédula está escrito que “A Caixa de Conversão pagará ao portador, à vista, no Rio de Janeiro, a importância deste bilhete em ouro.”

Eis outra cédula:

Segundo Gustavo Franco, que não é muito fã nem de Currency Boards nem de padrão-ouro:

De uma maneira geral, de 1906 até as vésperas da Primeira Guerra, o país viveu em ritmo de abundância cambial e de crédito. O programa de valorização e a Caixa de Conversão resultaram em maior disponibilidade de divisas, inclusive para a importação de equipamentos pela indústria, e os embarques de café aumentavam sem prejudicar os preços.

De 1911 a 1913, o valor dos embarques de café foi o dobro do observado nos três anos anteriores e o triplo do valor dos anos desfavoráveis, de 1902 e 1904. Até 1908, os preços do café efetivamente não recuam, e a partir de 1909 aumentam significativamente.

[…]

A trajetória da economia nos anos que se seguem é de vigorosa expansão.

Já uma fonte de esquerda também admite que foi justamente durante esse período que o país vivenciou um grande período de prosperidade:

No terreno econômico pode-se observar a eclosão de um espírito que se não era novo, se mantivera na sombra ou em plano secundário no Império: a ânsia de enriquecimento, de prosperidade material que na Monarquia não era tido como um ideal legítimo e plenamente reconhecido.

O novo regime fez despontar o homem de negócios, isto é, o indivíduo inteiramente voltado para o objetivo de enriquecer. A transformação foi tão brusca que classes e indivíduos dos mais representativos da Monarquia, antes ocupados unicamente com política e funções similares, que no máximo se preocupavam com suas propriedades rurais, se tornaram ativos especuladores e negocistas, com o total consentimento de todos.

As atividades brasileiras foram estimuladas por finanças internacionais mais multiformes e ativas que as inversões esporádicas de capital que antes se fazia, mas que passaram a ter participação efetiva, constante e crescente em diversos setores que ofereciam oportunidades de bons negócios. A produção cafeeira, a grande atividade econômica do país, foi naturalmente atingida e em torno dela se travou uma luta internacional, boa parte dos fundos necessários ao estabelecimento das plantações e custeio da produção foi proveniente dos bancos ingleses e franceses, ou então de casas exportadoras estrangeiras ou financiadas com capitais estrangeiros.

O Brasil tornou-se neste momento um dos grandes produtores mundiais de matérias-primas e gêneros tropicais e ao café foi acrescentada na lista dos grandes produtos exportáveis, a borracha, que chegou quase a emparelhar-se a ele, o cacau, o mate, o fumo. A produção de gêneros de consumo interno, no entanto, diminuiu e se tornou cada vez mais insuficiente para as necessidades do país obrigando a importar do estrangeiro a maior parte até dos mais vulgares artigos de alimentação. As exportações maciças compensavam estas grandes e indispensáveis importações levando os saldos comerciais a patamares apreciáveis.

Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e a abolição da Caixa de Conversão, houve vários desarranjos, e a inflação de preços, até então imperceptível, passou a crescer 8% ao ano.

Foi aí que a coisa saiu do controle.

Este artigo continua aqui.

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