Explicando os regimes cambiais existentes — Parte II

Fabrício
10 min readOct 15, 2019

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A primeira parte do artigo está disponível aqui.

Desta vez, o foco do artigo será apresentar a taxa de câmbio flutuante e o câmbio atrelado. Em seguida, irei discorreu sobre qual regime seria mais adequado para o Brasil.

A taxa de câmbio flutuante

A taxa de câmbio flutuante é a taxa vigente na maioria dos países do mundo (majoritariamente em sua versão de “flutuação suja”). Mesmo os países que utilizam o euro possuem uma taxa de câmbio flutuante em relação a todos os outros países que não utilizam o euro.

Nesse regime cambial, o Banco Central estipula apenas a política monetária, ou seja, ele controla a taxa básica de juros e a base monetária. O Banco Central não possui nenhuma política cambial explícita.

A taxa de câmbio varia diariamente ao sabor da oferta de moeda estrangeira, da demanda de estrangeiros pela moeda nacional e, principalmente, da percepção dos investidores estrangeiros e dos especuladores quanto à situação econômica e política do país.

Nesse arranjo, a taxa de câmbio é um preço formado instantaneamente pela interação voluntária de bilhões de agentes econômicos ao redor do mundo. Se esses bilhões de agentes econômicos acreditam que a inflação de preços em um determinado país será baixa ou que sua situação política e economia é boa, sua moeda irá se valorizar em relação às outras. Se eles acreditam que a inflação está alta ou que ela será alta, ou que a situação política e econômica do país está ruim, sua moeda irá se desvalorizar em relação às outras.

Sob um arranjo de taxa de câmbio flutuante, não há crises no balanço de pagamentos e, em tese, um país não precisa deter reservas internacionais. Caso haja uma fuga de capitais estrangeiros — causada, por exemplo, por uma deterioração da economia ou da situação política do país — , a taxa de câmbio imediatamente se desvaloriza e isso, em teoria, tende a estancar importações, estimular exportações e baratear investimentos em portfólio (por exemplo, compra de ações, de debêntures e títulos do governo) para estrangeiros, fazendo com que o capital estrangeiro retorne.

Isso tudo apenas na teoria.

A prática, no entanto, mostra que taxas de câmbio flutuante não funcionam bem para países ainda em desenvolvimento que possuem um longo histórico de instabilidade monetária ou política, e cujo Banco Central não é visto como confiável. Nestes países, a qualquer sinal de novas instabilidades, a taxa de câmbio não flutua; ela afunda.

E junto com a taxa de câmbio vão a inflação de preços e a queda no padrão de vida dos cidadãos.

Nem mesmo exportações são estimuladas, pois a inflação de preços resultante da disparada cambial afeta severamente os custos do setor industrial, que tem também de importar vários insumos e maquinários de qualidade. Consequentemente, não apenas os preços dos produtos fabricados sobem (pois os custos de produção subiram), como também a qualidade se deteriora (por agora utilizarem menos insumos importados), o que não ajuda a aumentar as exportações.

E, além de nem sempre estimular exportações, a desvalorização da taxa de câmbio também não traz nenhuma garantia de que os investidores estrangeiros trarão de volta seus capitais para o país com o intuito de adquirir ações e papeis agora mais baratos em moeda estrangeira. Caso a instabilidade política e econômica seja grande, simplesmente não haverá motivos para eles se arriscarem tanto e investir dinheiro no país.

Consequentemente, a taxa de câmbio irá se desvalorizar ainda mais.

Essa nova desvalorização deixará investidores estrangeiros ainda mais arredios, pois ela afeta totalmente qualquer chance de algum retorno positivo em suas eventuais aplicações no país.

Essa perspectiva de perda real de dinheiro para os investidores estrangeiros tende a reforçar ainda mais o ritmo da desvalorização da taxa de câmbio. No extremo, um país pode entrar em hiperinflação em decorrência das contínuas desvalorizações cambiais geradas por instabilidades políticas e econômicas, como aconteceu com a Indonésia em 1998.

Em um regime de câmbio flutuante, instabilidades políticas e econômicas são imediatamente transferidas para a taxa de câmbio, intensificando ainda mais os desarranjos da economia.

Para piorar, nesse cenário de desvalorização cambial, a única maneira de o Banco Central manter a inflação de preços relativamente tolerável é gerando uma brutal recessão (por meio de juros crescentes) que eleve acentuadamente o desemprego, reduza salários e acabe com a demanda.

Apenas com recessão, desemprego e queda na renda podem os preços se manter relativamente estáveis em um cenário de rápida desvalorização cambial. Apenas essa conjunção de fatores pode impedir um grande repasse cambial aos preços.

Obviamente, nesse cenário, as empresas e os empreendedores ficam asfixiados. Eles pagam cada vez mais caro pelas importações, mas não podem repassar esses custos para os preços. Consequentemente, eles vão se tornando cada vez mais descapitalizados, o que afeta sua capacidade de investimento e de contratação de mão-de-obra.

Em suma, uma taxa de câmbio flutuante funciona bem para economias já desenvolvidas e estáveis, e pode também funcionar bem para países ainda em desenvolvimento que usufruem grande estabilidade política.

Mas seu histórico para países em desenvolvimento e que não usufruem estabilidades políticas e econômicas não é dos melhores.

A taxa de câmbio atrelada

Uma taxa de câmbio atrelada é aquela que tenta ser fixa e flutuante ao mesmo tempo — e obviamente não consegue ser nenhuma das duas.

Na prática, uma taxa de câmbio atrelada ocorre quando o Banco Central faz intervenções diárias no mercado cambial para manter a moeda nacional flutuando dentre de bandas arbitrariamente determinadas pelo próprio Banco Central.

Ao contrário do que é dito até hoje com muita frequência, o Plano Real nunca se baseou um uma “âncora cambial” ou em um “câmbio fixo”. Desde que o real foi introduzido no dia 1º de julho de 1994, o câmbio nunca foi fixo, nem sequer por um dia. O Brasil adotou o regime de “câmbio atrelado ao dólar”. Neste sistema, o Banco Central faz intervenções diárias no mercado de câmbio (comprando ou vendendo dólares) com o intuito de manter a cotação do dólar próxima a um valor por ele estipulado.

Veja a evolução da taxa de câmbio de julho de 1994 até dezembro de 1998, último mês antes da alteração do regime cambial.

Gráfico 1: evolução da taxa de câmbio durante a primeira fase do real, julho de 1994 a dezembro de 1998

O principal problema em se utilizar um câmbio atrelado é que há uma contradição entre a política monetária e a política cambial. Com uma taxa de câmbio fixa — no caso, um Currency Board — , não há política monetária; as variações no balanço de pagamento determinam as variações da base monetária da economia. Com uma taxa de câmbio flutuante, não há política cambial; o Banco Central se preocupa apenas em fazer política monetária.

Já com um câmbio atrelado, o Banco Central tenta fazer as duas coisas ao mesmo tempo: determinar uma política monetária e uma política cambial, sendo que ambas são mutuamente excludentes, impossíveis de serem efetuadas simultaneamente.

Inevitavelmente, a política cambial acaba entrando em choque com a política monetária, e os ataques especulativos são a consequência inevitável.

Quando se trabalha com um câmbio atrelado, o Banco Central tem de, diariamente, fazer intervenções no mercado de câmbio para fazer com que o dólar fique próximo à cotação determinada pelo Banco Central. Sendo assim, quando ocorre uma entrada “excessiva” de dólares no país, há uma tendência de apreciação do câmbio. Para evitar isso, o Banco Central compra estes dólares criando reais, o que gera um aumento da base monetária. Ato contínuo, para evitar este súbito aumento da base monetária, o Banco Central vende títulos públicos para retirar da economia os reais que ele próprio acabou de criar quando fez a conversão de dólares para real (esse processo é tecnicamente chamado de “esterilização”).

Já quando ocorre uma saída de dólares, o fenômeno inverso é observado: há uma tendência de depreciação do câmbio devido à maior procura por dólares. Para evitar isso, o Banco Central vende dólares para satisfazer esse aumento da demanda por dólares. Essa venda de dólares pelo Banco Central gera uma redução da base monetária. Para evitar essa redução, algo que tende a gerar uma recessão, o Banco Central cria reais e compra títulos públicos em posse dos bancos.

Ou seja, neste arranjo, ao contrário de um Currency Board, há um total descasamento entre a variação da base monetária e a variação das reservas internacionais. Quando há uma saída de capitais, as reservas tendem a cair — pois o Banco Central faz de tudo para segurar o câmbio — ao passo que a base monetária tende a subir (pois o Banco Central também faz política monetária).

Sendo assim, para evitar que as reservas caiam muito além da base monetária, o Banco Central tem de manter juros bastante altos para continuamente atrair dólares

Observe que este comportamento ativo do Banco Central é totalmente distinto do comportamento de um Currency Board, que permite que a base monetária varie automaticamente de acordo com o saldo do balanço de pagamentos.

E é exatamente por isso que a opção por um regime de câmbio atrelado custa caro: como o regime não inspira confiança nos investidores internacionais — pois uma desvalorização pode ocorrer a qualquer momento — e dada a contínua necessidade de estar sempre atraindo dólares para manter as reservas internacionais em níveis minimamente confortáveis para manter o câmbio dentro do intervalo especificado pelo Banco Central, as taxas de juros têm de ser bastante elevadas.

Esse foi o modelo escolhido pelo Brasil, e esses foram os juros colhidos. O gráfico abaixo mostra a evolução da SELIC de agosto de 1994 até o março de 1999.

Gráfico 2: evolução dos juros do mercado interbancário brasileiro (taxa SELIC), de agosto de 1994 a março de 1999

O que vale ser ressaltado é que esta postura do Banco Central — de ficar vendendo e comprando dólares para manter o câmbio dentro de um intervalo especificado e de ficar arbitrando juros para atrair dólares para fechar o balanço de pagamentos — gera um descasamento entre a quantidade de dólares nas reservas internacionais e a base monetária do país: haverá um momento em que a quantidade de dólares nas reservas internacionais será bem menor do que a base monetária.

Quando isto ocorre, é apenas uma questão de tempo para que os especuladores descubram esta contradição entre política cambial e política monetária e forcem uma desvalorização da moeda — ou a imposição de controle de capitais.

Este tipo de ataque especulativo varreu a América Latina e o sudeste asiático ao longo da década de 1990. A crise do México em 1994, a crise asiática em 1997 e 1998 (Tailândia, Taiwan, Indonésia, Malásia, Filipinas — apenas Hong Kong e seu Currency Board escaparam), o colapso do rublo em 1998 e a crise da Argentina em dezembro de 2001 (cujo pseudo-Currency Board havia sido praticamente abolido em junho daquele ano) — todas ocorreram de acordo com este mecanismo.

Com efeito, até mesmo o ataque perpetrado por George Soros à libra esterlina em 1992 se deu por causa deste arranjo, uma vez que o Banco Central da Inglaterra vinha mantendo a libra atrelada ao marco alemão.

Por outro lado, no caso do arranjo brasileiro, houve um fator positivo: o comportamento da inflação de preços. Com uma taxa de câmbio estável (em uma época em que o dólar era mundialmente forte) e com o Banco Central tendo de manter a expansão monetária contida e a taxa de juros alta para evitar uma súbita desvalorização do real perante o dólar, a inflação de preços apresentou um continuado declínio.

Gráfico 3: evolução da inflação de preços acumulada em 12 meses durante a primeira fase do real, junho de 1995 a dezembro de 1998

Conclusão: qual o melhor regime para o Brasil?

Um câmbio flutuante funciona muito bem para países de economia desenvolvida e com grande estabilidade política. Mas seu histórico para países que têm de lidar com governos bagunçados e imprevisíveis não é animador. Nesse arranjo, o câmbio não flutua; ele afunda.

Um câmbio atrelado é utilizado quando o Banco Central quer controlar a inflação majoritariamente por meio do câmbio, mas sem abrir mão de fazer política monetária. Tal arranjo é totalmente instável e sujeito a ataques especulativos. Todos os países em desenvolvimento que adotaram esse arranjo — embora tenham sido bem sucedidos em controlar a inflação de preços — quedaram vítimas de ataques especulativos, e o arranjo se esfacelou.

Já um câmbio fixo não funciona quando há um Banco Central no comando e este está sujeito a pressões políticas, como ilustra bem o caso argentino.

A opção mais vantajosa — e de longe — para um país em desenvolvimento e com um governo bagunçado seria a adoção de um Currency Board privado com sede na Suíça, seguindo os passos delineados no artigo. No mínimo, a moeda voltaria a inspirar confiança, e a inflação de preços e as taxas de juros cairiam a níveis próximos dos vigentes no país da moeda-âncora.

No caso específico do Brasil, a opção pelo Currency Board é ainda mais premente.

Em uma situação parecida com a vivenciada em 2015 — de descontrole fiscal, taxa de câmbio instável e inflação de preços perto de 10% — , novas elevações graduais na taxa básica de juros não apenas não gerarão efeitos sobre a inflação de preços (majoritariamente causada pela forte desvalorização cambial e pelos reajustes de preços administrados pelo governo), como também podem até acabar estimulando ainda mais a carestia.

O grande problema é que um aumento de juros tende a gerar um ciclo vicioso: a subida dos juros encarece o serviço da dívida (como há emissões quase que diárias de títulos, quanto maiores os juros, maior o serviço da dívida a ser paga sobre esses novos títulos emitidos); consequentemente, o Tesouro tem de se endividar (lançar mais títulos) apenas para pagar o serviço da dívida; consequentemente, a dívida do governo aumenta; consequentemente, a relação dívida/PIB, já alta, se deteriora ainda mais; consequentemente, o risco-país aumenta e o grau de investimento da Moody’s e da Fitch ficam ainda mais em risco. E tudo isso gera ainda mais desvalorização cambial, o que pressiona ainda mais inflação de preços.

Conclusão: elevar juros tendo uma política fiscal frouxa e trabalhando com câmbio flutuante é quase um suicídio. Daí a premência de um Currency Board. Um Currency Board resolve três problemas de uma só vez: câmbio, juros e inflação de preços. E, de quebra, ainda pode aumentar a confiança dos investidores estrangeiros, estimulando-os a trazer para cá o seu capital produtivo, algo de que o país tão desesperadoramente precisa.

Liberar a circulação de moedas estrangeiras em paralelo à moeda nacional — que agora estaria ancorada ao dólar ou ao ouro por meio do Currency Board — melhoraria ainda mais a situação. Essa liberação de moedas estrangeiras facilitaria enormemente os investimentos estrangeiros.

Não há recuperação e crescimento econômico sem investimentos. E como no Brasil o investimento geralmente está em queda livre e as empresas estão ou arredias ou descapitalizadas, por causa do cenário de destruição criado pelo governo, a salvação terá de vir do investimento estrangeiro. E isso passa pelo regime cambial.

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