Ponta de Areia, 10

10. Nadando No Mar de Eucaliptos

Felipe Areas
9 min readNov 16, 2023

Ponta de Areia, 9 (capítulo anterior) //

10. Nadando no Mar de Eucaliptos

Acordo cansado e tomo um café da manhã com meus anfitriões. Não sei se dormi pouco ou muito, e sinto alguma desorientação mental; o corpo está bem

Pego a estrada com o anseio de quem, apesar de já ter se cansado de ouvir “você tem que ir a Itaúnas”, sabe que os clichês hão de ter razão de sê-lo. -chegar lá hoje é um desejo factível. A paisagem logo volta a ser um labirinto de eucaliptos, idêntico ao em que havia passado ontem. Nos poucos encontros com pessoas pelo caminho, me certifico de estar na direção certa e são muitas bifurcações para muitos lados; carrego a sensação de estar na direção errada o tempo todo.

Depois de um entroncamento onde ambos os lados tinham cara de via “principal”, vejo a estrada afunilar até um ponto sem saída. Lembro, que os nativos tinham falado algo sobre um atalho por dentro de uma propriedade que seria de boa, então, avisto um portão e decido ir até ele. Noto uma casa velha ao lado e decido gritar aquele gentil “ôôôôô de casa!?”, na esperança de informações e um refil para minha garrafa de água, já quase vazia. Insisto em chamar por alguém -há sinais de gente por ali-, mas sou supreendido com latidos. Os cães logo aparecem, em três, e começam a latir e rosnar pra mim, de um jeito bem mais agressivo do que estou acostumado a passar quando pelado em região de roça. Coloco a bicicleta entre eu e eles, mas eles se dividem e tentam me acessar contornando pelos lados. São médios, mas sinto medo; uma mordida boba pode representar o fim da viagem ou, no mínimo, alguns dias perdidos para tomar vacina anti-rábica e cuidados diversos. Vou me acuando até perto de um arame farpado, gritando por alguém que possa recolher os bichos, mas nada acontece. Do nada, largo a bicicleta no chão e saio pra cima deles com um urro gutural que nem acreditava capaz de emitir, e que os faz recuar um pouco. Aproveito a deixa, monto e pedalo a todo vapor, agora, com eles no encalço. Avanço pra longe da casa velha, mas não consigo segurar esse ritmo por muito tempo e decido então, acionar os freios, temendo uma mordida em movimento -que poderia ser bem pior do que estando parado. Estou muito assustado e agindo por impulso, quando então, antes de parar por completo, os bichos decidem voltar para onde vieram. -É um milagre, penso.

Agora, a densa floresta de eucaliptos vai bifurcando em placas que indicam praias e sinto alívio de finalmente ter alguma referência pra me guiar. Depois de várias saídas, lembro que pedalar na praia -quando possível- é muito bom e quebro à esquerda impulsivamente seguindo uma placa que aponta para a “Praia do Sossego”.

Estar na areia do Mar de novo, depois de tantos dias próximo a ele, traz um sentimento muito maluco de recapitulação com distanciamento. Depois de tantos dias no asfalto e na floresta, o cheiro da maresia parece uma memória antiga que encarna na minha frente. Lembro dos dias de banhista em Cumuruxatiba como se fossem algo antigo e penso que, apesar de não saber exatamente onde estou, já desci bastante no mapa do Brasil.

Há uma longa faixa de areia onde o céu se reflete e banhistas pescam já com os pés na água enquanto o mar vem em pequenas ondas, de onde concluo posso sentir a verdade do nome dali ser Sossego. “Como que nunca ouvi falar nesse lugar? Ainda vou voltar aqui um dia pra ficar sem fazer nada”, penso. Sinto culpa de não parar por ali e ficar uns dias, mas a ansia de chegar a Itaúnas fala mais alto.

Há uma falésia à frente que me lembra a situação que passei em Corumbau; temo encalhar e ter que voltar tudo -pelo menos, poderia ir pela estrada, penso. Pergunto sobre a viabilidade do plano para alguém ao longe, num grito e, da comunicação pelo vento, pouco consigo entender. Fico com a impressão de que a resposta foi positiva e decido pagar pra ver; está tudo muito bonito e, não sei se são meus olhos emocionados, mas sinto algo parecido com a emoção das praias do começo da viagem.

Estou conseguindo pedalar pela areia mais dura, mas a areia logo fica mais molhada e pesada, então, opto por empurrar um pouco e ir turistando. Passo por um monte de gente a lazer até chegar a falésia -onde volto a estar sozinho-, quando finalmente, começo a mirar umas barracas de comércio e meu apetite se abre para a possibilidade de um almoço.

Preciso atravessar um rio com água nas canelas e estou sem paciência de desmontar as tralhas e, a seguir, empurro a bicicleta por um monte de areia, onde, acima, chego à civilização. Mal respiro e já tomo uma abordagem de um grupo de seis homens: “Ô, você tá vindo de onde, moço”? Exausto pelos obstáculos recém-transpostos e, já bem entediado com esse tipo de pergunta, respondo qualquer coisa, sem dar muito assunto. “Você tá realizando um sonho nosso”, diz um deles. Quase sempre, grupo de homens bebendo cerveja é sinal de coisa ruim; seja um bebum pentelhando ou até alguém mais agressivo e inconveniente. Levo um tempo pra processar, quieto. O rapaz, diante do meu silêncio, em tom gentil, desenvolve: “a gente tem um grupo de ciclismo, somos lá de Mucuri, você deve ter passado por lá”. Em seguida, apontam pra duas pickups e mostram as bicicletas, me exaltando ao dizer que “andar sem bagagem é moleza”. Oferecem cerveja e sento lá com eles contando histórias com se os conhecesse há tempos; aproveito e faço um prato no self service do bar.

Pessoal do Ecotrilha

Não me deixam pagar pela cerveja e insistem em me levar numa praia que tem ao lado, mas que seria fora da minha rota. Estou meio preocupado com a hora e tomei conhecimento que o caminho vai ser floresta de eucaliptos até chegar em Itaúnas, o que aumenta o temor de ficar perdido no escuro.

Com pouca exitação, coloco a bicicleta na caçamba pela primeira vez na viagem e, depois de conhecer mais uma praia, pego carona até a estrada no conforto de uma caminhonete com ar condicionado -e ainda bem lombrado pelo almoço com cerveja e pelo calor.

A praia "secreta" que o pessoal da Ecotrilha me levou

Cruzamos a divisa BA-ES de carro e eles me largam num ponto que parece no meio do nada, dizendo: “não tem erro”. É uma encruzilhada deserta, sem placas e onde todos os caminhos parecem levar a lugar nenhum, mas tento acreditar nos meus recém-amigos. Estou de novo nos eucaliptos e revivo aquele receio de anoitecer por lá, a despeito deles terem me falado que “falta pouco para Itaúnas”. No caminho repetitivo, chego a achar que nunca vou chegar, quando então, a estrada começa a ficar arenosa. Está escurecendo e penso que não terei forças pra empurrar a bicicleta por quilômetros de areia, como fiz nas praias da Bahia. O efeito psicológico do anoitecer está batendo forte e não me passa pela cabeça que aquilo já sejam as famosas dunas de Itaúnas. Meu medo aumenta quando, minutos depois, o portal de boas vindas da cidade se apresenta diante de mim.

Ainda feliz de chegar, sou surpreendido pela apatia da cidade. Estou no centrinho mas está tão vazio e calmo que parece nem ser ali a cidade; trago expectativas muito distantes daquilo que se apresenta à minha frente. Priorizo arrumar um lugar pra ficar, mas descubro que vários dos campings estão fechados e, ao chegar ao único aberto, não vejo ninguém, apenas uma barraca vazia. Percebo movimento pelo banheiro masculino e pergunto pelo dono, ao que recebo uma resposta em portunhol que não consigo decifrar. Descubro que estão abertos e que o dono não está lá no momento. Imagino que várias pessoas estejam pela praia, vendo o por do sol nas dunas, e que eu, deveria fazer o mesmo. Saio correndo, deixando a bicicleta trancada em um tronco que servia de sombra para a área do camping.

Tudo está muito deserto, mas consigo me guiar pelas placas e chegar ao topo de um monte de areia bem alto. Lá de cima, não vejo ninguém em lugar nenhum e estou completamente só, quando uma paz imensa me toma de supresa. Tenho vontade de agradecer a Deus, Alah, Oxalá e todas as divindades que consigo imaginar, mas também quero agradecer aos céus às areias, árvores e montanhas; embora não consiga enteder o objeto da minha gratidão. Vou entendendo-me incapaz de verbalizar o que sinto, quando percebo que há sinal de telefone e decido então, ligar para os meus pais. Tento comunicar a epifania que está acontecendo, mas temo que possa parecer a eles que estou numa viagem de psicodélicos ou um surto psicótico -também eu, receio estar, mas sinto, sem saber explicar, que não. Não saberia explicar a reação dos deles, mas acho que, em resumo, ficaram felizes por mim, sem grandes perguntas. Percebo não ter recursos para transmitir o que estou sentindo. Saio correndo que nem uma criança, brincando de pular nas dunas mais íngremes, com a tranquilidade de quem está na areia e pode cair sem se machucar.

Tentativas de captura do momento com correção -amadora- de cor

Conforme a exaltação vai abaixando, decido avaliar as fotos recém-tiradas e sinto uma imensa frustração; tinha uma câmera “grande”, mas escolhi pegar emprestada essa pequena, de três megapixels (por economia de peso e medo de roubo). Será que o por do sol nem foi tão espetacular assim; que foi tudo obra da minha cabeça?

Volto para a cidade levitando, tomo um banho e encontro o dono da única barraca do camping. Álvar está viajando desde a Argentina entre caronas e ônibus diversos, meio sem destino certo, e tem dois amigos brasileiros hospedados num hotel próximo. Vamos dar uma volta pelo centro vazio e paramos para comer algo. Conversamos um bocado sobre música, trocamos sugestões de compositores e falamos de projetos, bandas, sonhos e todas essas coisas que são comumente atribuíveis a um jovem músico. Meu caderninho tem uma lista de “coisas para pesquisar quando voltar”, que aumenta muito com várias referências sobre o rock argentino.

Ele não sabe se vai partir amanhã ou se fica mais e eu, me sinto dividido entre a frustrada expectativa de agito e o plano original de ficar uns dias naquele lugar. A melhor coisa é ir dormir e decidir amanhã.

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