Ponta de Areia, 9

9. Abandonar e voltar ao Litoral

Felipe Areas
10 min readNov 7, 2023

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9. Abandonar e voltar ao Litoral

Batalho com os mosquitos, mas não há posição do ventilador capaz de pará-los e a estratégia de me enrolar no lençol como uma múmia embalsamada me mata de calor -sem resolver os zumbidos e picadas. O despertador tocaria às seis da manhã, mas ainda está escuro e estou desperto, aceleradíssimo. O desconforto da noite mal dormida junto com o desafio iminente de pedalar por muitos quilômetros pela primeira vez na viagem, trazem um sentimento fresco de novidade ao dia.

Eu tinha avisado que sairia bem cedo hoje, ao que os donos da pousada disseram que deixariam um café da manhã já ajeitado pra mim. Desço, e me deparo com uma mesa completa, pra apenas uma pessoa, e fico muito feliz com o cuidado.

É meu primeiro dia de tiro longo e estou bem apreensivo por que me disseram que vou passar por lugares bem ermos. Preciso adentrar o continente pra voltar ao litoral mais à frente, já que há uma grande reserva ambiental entre Caravelas e Nova Viçosa (próximo município ao litoral).

São 100km aproximadamente pra conseguir fazer o contorno. “Acho que dou conta, acordei cedo”, penso; embora carregue uma tensão de nunca ter andado essa distância com essa bicicleta e saber que um vento contra ou um terreno ruim podem facilmente me complicar.

Logo pelo começo da jornada, me passa um comboio de caminhões do exército, daqueles com os soldados na caçamba. Nas três viaturas, vários militares me saúdam com sorrisos, acenos e punhos cerrados erguidos. A demasia inesperada da gentileza deles me assusta, mas logo, somem na distância da grande reta em que me encontro. Será que seriam tão gentis se soubessem que usei cannabis e psicodélicos semanas atrás? Dentro da monotonia meditativa da estrada, começo a pensar sobre o que acabou de se passar; pareço sentir uma estranha identidade com eles. Talvez, muita gente procure o exército na expectativa de uma vida mais movimentada e dinâmica do que a maioria dos empregos do mercado formal é capaz de oferecer -que é exatamente o que estou fazendo neste instante ao trocar minhas férias no Rio por maratonas ciclísticas em estradas que desconheço. Ainda não são nove da manhã e eu já levantei acampamento, passei por umas três cidades e cuidei do meu equipamento (bicicleta e bagagens, no caso). Minha rotina aventureira certamente está mais próxima da de um soldado em formação do que à de um estagiário trabalhando em escritório.

Odeio a forma militar de se existir no mundo; a “hierarquia acima de tudo”, a lógica da paz através da guerra, a maneira autoritária, o não-compartilhamento dos processos decisórios etc. Vou escrevendo e percebo que, na verdade, não há nada nesse sistema de valores que eu tenha vontade de elogiar. Porque então, achei tão legal ser saudado por aqueles soldados? Talvez, os soldados seja, seduzidos por essa promessa de uma vida ativa sem dar conta do quão lobotomizante pode ser a lógica militar. A carreira começa com trenamentos e práticas bastante físicas e vai, cada vez mais, se convertendo em quadros mais burocráticos e administrativos conforme o indivíduo vai sendo promovido. Sinto haver uma estranha semelhança entre a vida do militar iniciante e o dia-a-dia de um aventureiro, mas não consigo elaborar ainda e recebo essa intuição com muito estranhamento.

Ia com a cabeça muito acelerada em pensamentos quando, finalmente, alguma coisa na paisagem muda. Depois de muito tempo em uma reta margeada por gramados secos e árvores avulsas, vejo um brejo que toma minha atenção.

Paro para algumas fotos e percebo a falta que Carol e sua boa câmera fazem. Também consigo constatar que eu de fato já avancei bastante no caminho desde que comecei o dia, a despeito da repetitividade da reta, que me fazia questionar se de fato estava indo a algum lugar. Aprenderia em aventuras futuras que mudança da paisagem ajuda muito na percepção da distância percorrida.

É meio dia e já andei bastante. Parei numa sombra para pedir água e a moça fez questão de pegar a água mais gelada que tinha em casa para me dar. Já é a terceira vez que isso acontece hoje e a gentileza das pessoas daqui me impressiona, a despeito de não saber exatamente onde estou nem nunca ter ouvido falar nas cidades cujos nomes decorei apenas para me orientar na rota (sem smartphone nem GPS).

Passei por Aparaju, Juerana e Helvécia, mas meu caminho vai dobrar numa estradinha menor já já. Ando mais meia hora e me vejo num trevo, onde acredito ter que entrar pela estrada de terra dentre os eucaliptos. Espero passar algum carro que possa me informar, mas o movimento está baixo e quase ninguém para -talvez temam que eu vá pedir carona ou ajuda. Depois de um motoqueiro que não sabia me informar, um carro me confirma que devo seguir por ali mesmo para voltar ao litoral, chegando numa orla entre Mucuri e Nova Viçosa.

Vejo o ritmo cair drasticamente agora que preciso lidar com buracos e costelas de vaca -ao menos, consertei o bagageiro ontem, penso. A moral acaba se abalando com o calor e incerteza das diversas bifurcações que começam a aparecer pelos eucaliptos “acho que estou no caminho certo. Mas e se eu pegar uma entrada errada e me perder?”. Está ficando tarde e sinto estar ainda longe do litoral, mas olho o relógio e descubro que ainda é uma e pouco da tarde.

Depois de horas vendo apenas eucaliptos e uma meia dúzia de casas ao longe, atravesso uma ponte e vejo um bar abaixo, perto do rio. Paro pra pegar uma sombra, encher a água e comprar uma paçoca; é o primeiro comércio que vejo no dia. Pela quantidade de gente ali bebendo àquela hora, temo estar num lugar de alcoólatras, mas dou conta que estamos num sábado e o povo da roça acorda cedo.

Fico no aconchego daquele bar por um tempo e descubro que o asfalto está perto. Volto a pedalar e, em cinco minutos, estou no litoral. O mar é a melhor referência, pego à direita sem precisar pedir informação.

Voltar a pedalar na beira-mar é bom demais, só que agora, o vento está contra e é muito difícil avançar. Com muito esforço, vou chegando ao perímetro urbano de Mucuri e sinto como se esses últimos quilômetros tivessem pesado mais do que o resto do dia inteiro. Paro num comércio e, num breve lanche, descubro que precisaria atravessar o Rio Mucuri de barco e que logo partiria o último do dia.

Vou andando pela cidade à procura de um lugar para dormir ou do barqueiro para seguir em frente -o que aparecer primeiro. Não descubro nenhuma estrutura de camping ou pousada e decido correr para garantir o último barco, ainda que sem fazer a menor idéia como será a próxima cidade.

Demoro um pouco para entender onde é o local de partida da travessia do rio e, depois de muitas voltas, consigo alcançar um grupo num barquinho já entrando na água -descubro que é ali mesmo. Minha presença desperta muita curiosidade de todos e uma senhora, em especial, me assunta com um tom que me soa como desconfiança. Descubro que todos ali são adventistas do sétimo dia e que vêm a Mucuri todos os sábados para o culto e que a senhora e seu companheiro são vozes ativas naquela congregação.

A esse ponto, já havia atravessado vários rios, mas esse agora é imenso e parece que nunca vamos chegar. O sol já se vai deitando e, do mangue em que embarcamos, chegamos a um ponto muito aberto e isolado do rio, que me toca como algo que nunca havia visto. O barqueiro parece ser menor de idade e passamos por caminhos apertados entre raízes, mas vou percebendo que sou o único apreensivo ali. Faço alguma alguma piada de humor-podre que herdei da minha mãe, do tipo “esse barco não afunda não, né moço?” e todos riem do meu medo.

Me expor dessa forma acaba quebrando o gelo e consigo aprender um pouco mais sobre a religião deles -descubro que os cultos são ao sábados, a despeito do dia estar com uma grande cara de domingo. Aproveito para fazer algumas perguntas sobre o caminho e confirmar que há uma hospedaria em Cruzelândia, próxima cidade. Sinto uma confusão; as pessoas estão sendo gentis comigo, mas parece haver uma reticência em falar sobre a cidade. Depois de muitas perguntas, o barqueiro aponta para a senhora que me indagava há pouco e diz: “ela ali que é a dona da pousada”.

Eu começo a perguntar se estão funcionando, preço da diária etc., mas, só depois de alguma insistência da minha parte, ela me responde, brevemente: “nós somos adventistas”. Eu já havia entendido qual era a religião deles, mas não entendia como isso podia ter a ver com a pousada. Logo me atravessa um pensamento paranóico de que eu, visivelmente não sendo crente, seria “impuro” ou coisa que o valha e que não poderiam me hospedar na pousada, independente de preços. Consigo então, sinalizar minha incompreensão ficando quieto e ela, explica: “nós não trabalhamos nem falamos de trabalho aos sábados, é pecado, Deus nos deu esse dia para o descanso e para o exercício da fé”. Eu, que dentro da minha infância católica aprendera que o domingo é o dia de folga, vou me sentindo como se despistado por um Mestre dos Magos; “caramba, todo mundo falou que vai ter pousada, mas agora, já no barco, descubro que estará fechada hoje, em pleno sábado?!”. Trocamos mais algumas palavras e, tendo o rosto estampado de preocupação, recebo um “fica tranquilo que a gente vai dar um jeito pra você”. “O que significa isso? Se me hospedarem sem cobrar, ainda conta como trabalho?”, penso.

Do outro lado do rio, há uma pequena pickup à espera deles, com algumas madeiras improvisadas como banco. Sugerem que eu vá junto, ao que insisto que são poucos quilômetros e que posso andar tranquilamente. Percebo que o terreno é igual ao que andei mais cedo, confuso e cheio de eucaliptos, então, fico feliz que a insistência deles tenha vencido minha cerimônia. Vou numa posição bem desconfortável, tentando não deixar a bicicleta suja encostar em nenhum deles, que, pelas roupas parecem ter no culto, o dia de gala.

Chegando, dona Vilma me apresenta a casa com orgulho, o pomar, o quarto que era dos filhos do casal; acho gentil, mas estou ansioso para ver a hospedaria onde vou dormir e quanto vai custar. Em algum momento, volto a perguntar sobre o pernoite e, só então, ganho conhecimento de que o plano deles era que eu ficasse na casa deles mesmo, havendo um quarto vazio para mim já que os filhos já cresceram e saíram de casa. Poderia acabar meu relato a

Mal acabei de tirar as coisas da bicicleta quando recebo uma pergunta inesperada de dona Vilma: “Meu filho, você tem fé?”. Achava que minha aparência e o minha fala já denotassem meu ateísmo e não esperava uma pergunta, ainda mais, direta assim. Quase que como um pensamento reflexo, respondo hesitante: “tenho, se não tivesse, não teria pedalado tudo isso”. Fico em choque; acabo de contar uma mentira muito feia por medo de perder a hospedagem que acabei de conseguir -e que, provavelmente, seria a única da cidade. Conversamos um pouco mais e consigo explicar que não acredito em alguma religião, mas tento trazer um tom conciliador, temendo que ela pudesse ter uma visão restrita ou dogmática da sua crença.

Tomando banho, fico pensando o que disse; teria mentido sobre “ter fé” ou teria apenas falado do que eu acredito com palavras que pudessem alcançar minha anfitriã devota fervorosa? Fico pensando se conseguiria ser tão conciliador se não estivesse na condição de hóspede de alguém que acabei de conhecer. São muitos pensamentos, mas saio do chuveiro querendo saber um pouco mais da vida deles. O marido de dona Vilma quase não fala e tem um nome peculiar, Boldo, que me causa alguma intriga.

Ao jantar, Vilma insiste que eu coma à vontade e que não fique tímido, a despeito deles fazerem pratos modestos pra si. Queria conversar mais e saber da vida deles, mas há uma televisão monumental -que mal cabe- na sala, passando programas sensacionalistas de notícias que nunca havia visto por mais de dez segundos, mas que sempre ouvia falar ao entreouvir conversas na rotina da cidade. O tom do apresentador e as imagens grotescas acabam tirando um pouco do meu apetite, mas meus anfitriões pescam meu desconforto e sugerem de desligar. Conversamos um pouco mas todos estão bem cansados; logo nos recolhemos.

Dona Vilma e Seu Boldo, na manhã seguinte.

Ponta de Areia, 10 (próximo capítulo)

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