Pedalando a Serra da Bocaina, pt. II

Felipe Areas
17 min readSep 14, 2023

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// Pedalando a Serra da Bocaina, pt. I aqui //

Dia 2 (Rota do dia aqui // Rota da viagem completa aqui)

Ainda está escuro, acordo com frio e vontade de fazer xixi, mas não ouso. Está gelado demais e a barraca está com água condensando pelas paredes. Uso um modelo “super-leve” emprestada por um amigo, que se prova insuficiente para o frio do Parque; Gustavo tem uma igual. Noto que escorreguei ao longo da noite por conta do isolante térmico ser liso demais e tento me ajeitar pra ficar quente, mas já estou com todas as minhas roupas. Já ter vivido perrengues de frio me tranquiliza de ter certeza de que não vou morrer agora -mas ainda é insuficiente para que consiga voltar a dormir.

O sol raia. Espero Gustavo acordar e acabo conseguindo dormir um tico mais, agora que vai ficando mais quente. Sair de dentro do saco de dormir parece tortura; quero dormir por mais três horas pra sair sem congelar ou, pelo menos, montar na bicicleta e sair pedalando pra aquecer rápido, o que imporia um jejum desfavorável à jornjada. Precisamos de comer bem pra aguentar o dia; temos comida demais em nossas bagagens, inclusas coisas que demandam preparação, como tapioca; não fazemos idéia de quanto tempo levaremos até algum comércio ou lanchonete. Fico ali, apático, ansiando pelo sol e o calor.

Enquanto isso, meu companheiro de jornada age com a gana de um náufrago que avista um barco e já corre pra montar uma fogueira no meio daquela névoa fria. Diante da possibilidade de desajunar no frio ou sair com fome, tomar café à beira do fogo parece uma terceira via melhor, então, crio coragem e me levanto. Os sapatos secados à beira do fogo ontem, amanhecem molhados de sereno e isso me lembra de como o manejo das estruturas mínimas da vida pode ser difícil nessas vivências. Já são dez e meia quando estamos montados nas bicicletas e respiro aliviado ao ver que o pneu não esvaziou mais. Noto que a corrente range, o que me lembra que o caminho de ontem foi duríssimo.

Fogo, Café, Tapioca e secagem de tênis

Ainda nos primeiros metros percorridos do dia, dois cães começam a latir e nos seguir. Tento enxotar; Gustavo, nem liga. A fêmea parece bem saudável, mas a magreza do macho dá a impressão de que ele vai desmontar se continuar seguindo a gente. Sinto vontade de fazer alguma coisa, mas lembro que se eles ganharem comida, vão colar na gente pra sempre e podem ser atropelados ou mordidos por outros cachorros. O dia mal começou e já estamos em uma subidona -propícia para que eles nos acompanhem no ritmo lento. Vislumbro uma descida longa e sinto alívio de pensar que já já nosso esquadrão K9 da sessão da tarde ficará pra trás -e que isso vai ser melhor pra eles. Descemos rápido com eles no encalço, mas, no final, disparamos.

Atravessamos um riachinho cristalino e me arrisco a encher a água ali, quando eis que nossos amigos reaparecem e se jogam na água, levantando o lodo, sujeira e complicando nosso reabastecimento das garrafas; “não basta nos seguir, é preciso causar”, penso. A inconveniência alegre deles me conquista; batizo de Bill e Madá, inconsciente da metáfora bíblica da água e o batismo. Está bem quente e fico aliviado de que eles possam se refrescar e hidratar; inclusive, porque não estou carregando tanta água quanto deveria pra poder compartilhar -e o medo de que eles desfaleçam no sol paira sobre mim. Dou-lhes um bom pedaço de bananada -com pedaços mais generosos para Bill-, incerto sobre os conceitos de nutrição veterinária, mas, crédulo que aquilo há de alimentar-lhes um pouco.

15 minutos depois do córrego inviabilizado por eles, um outro ponto de água.

São inúmeras subidas e descidas duras e no calor, sempre intercaladas com um córrego pro refresco dos nossos amigos. Especulo que ou eles são muito espertos e conhecem o caminho, ou, que o santo dos viajantes também é forte com a espécie deles. Sempre gostei muito de cães e já até tive um que andava comigo quando estava aprendendo a andar de bicicleta -nas roças de Paty do Alferes. Teco era bem forte, bem cuidado e bem alimentado, mas, ainda assim, penava pra acompanhar as pedaladas que dávamos em grupo; em ritmo lento. chegava sempre exausto, pulava na represa e ficava deitado o resto do dia. Se ele, com isso tudo, penava, imagina o pobre Bill, com suas costelas à mostra?

O caminho vai ficando cada vez mais alto; passamos por um trio de construções abandonadas, numa espécie de gramado altiplanino, que me lembra algo saído do Studio Ghibli. Atravessamos um pasto afastado de qualquer vestígio de civilização; temo uma perseguição pelos bois e me questiono se tomar uma carreira de um deles é um temor factível ou apenas induzido por vídeos de internet -que o algoritmo insiste em mostrar com uma frequência maior do que eu gostaria de ver. Lembro que temos cães e que devem ser bons nisso, mas quando dou conta, eles estão com mais medo do que eu; sempre escondidos atrás de nós. Deixamos o gado na estrada e adentramos o pasto pra passar longe; dá certo; um obstáculo a menos. Do outro lado do horizonte, a Serra de Itatiaia começa se mostrar, depois de um vale onde passa a BR116; estamos alto mesmo e logo vamos começar a descer, penso.

Do outro lado do morro, uma subida de pedras se desenha feito um caracol, cortando todos os morros à vista: toda pinta de aquele ser o caminho. A estrada se torna tão pedregosa que pode-se notar uma trilha ao lado; pela qual seguimos, incertos de se ela reencontraria a rota principal. É um longo trecho empurrando, no qual temos que escolher sempre o caminho “menos pior”. A multiplicidade de vias ruins acaba e somos obrigados a uma subida de pedras soltas que parece um leito seco de rio; talvez tenha sido uma estrada em vidas passadas, mas parece ter perdido esse status há um bom tempo. Temos que manejar as bicicletas pesadas por um longo trecho em que já seria ruim passar sem elas. Somos movidos por um sentimento de que não tem como ficar pior do que aquilo; uma coisa meio “desafio final”. Faz tempo que sinto os braços cansados e, agora, meu abdômen começa a queimar também.

Era bem pior ao vivo.

Em algum momento, chegamos ao que parece ser um cume. Encontro um resto de biscoito passatempo® no fundo da bolsa e aquilo desce como uma pâtisserie finíssima. Há uma construção minúscula, toda gradeada, com câmeras e com uma hostil indicação de “área monitorada”. Parece coisa daqueles filmes de teoria da conspiração, só que à brasileira; um segredo de Estado, só que mal guardado, com o cuidado que se espera de uma administração pública displicente em todos os patamares. Pode ser um depósito de lixo radioativo -estamos relativamente perto das usinas nucleares de Angra, vai saber…

Descemos adiante com a esperança de estradas melhores, mas as condições permitem apenas que empurremos, salvo passageiros momentos de descida em trilha, que me fazem pensar que é meio surreal a expectativa de passar ali num grupão; 2024 dirá. Não acontece nada muito diferente disso por algum tempo, exceto que Gustavo quase cai e, em outro momento, minha coroa entra numa pedra feito faca na manteiga mole; memória surrealista que viria a guardar com alguma confusão. Podemos ver algumas casas em topos de colinas, nenhuma perto.

Postes de luz nos lugares menos prováveis // Serra de Itatiaia acima das nuvens

Chegamos à última porteira: estamos em uma estrada de chão batido; encontramos uma casa para pedir água; os cães ainda estão conosco. Conversamos com seu João Carlos; ele comenta gostar de viver isolado e solitário ali e explica o caminho até a civilização. Sempre viajei assim, pedindo informação aos nativos de cada região, de modo que me esqueço que temos uma rota marcada no GPS para validar. Vou na frente pela descida -a primeira em muito tempo em que é possível andar um pouco mais rápido. Paro e penso que não seria bom descolar muito de Gustavo. Espero por um tempo anormal numa ladeira descampada, sem sinal dele. Então, lembro que ele tinha parado antes de começar a descida: seria um problema mecânico? Encosto minha bicicleta na ribanceira e subo a pé, gritando por ele. O lugar é bem ermo, mas apenas consigo ouvir o eco da minha voz; temo por um acidente grave dele. Em algum momento escuto “meu raio* estourou!”. “Merda!”, penso. Sigo acima, apreensivo de ele ter se machucado. São quase uns dez minutos a pé até chegar a ele: “cadê sua bicicleta?”. Deixei lá embaixo pra vir te ajudar. “Tá tudo certo comigo, a gente só errou o caminho”. Percebo que onde entendi raio estourado, poderia ser, na verdade, “Caminho errado!”. Lembro então que confiara cegamente na instrução do único humano que havia ali, negligenciando que a rota pudesse ser por um caminho ainda mais ermo do que o se apresentava à frente. Gustavo aponta pra uma trilha escondida por cima de um barranco e mostra que também perdeu essa entrada, mas seu GPS apitou. Explico que larguei a bike muito abaixo; proponho descermos e tentarmos retomar a rota já mais pra frente.

*Os raios são as coisas que juntam o miolo à borda da roda. Estourar um deles é um problema considerável numa jornada tipo a nossa.

Quando pedalar no pasto é melhor do que na estrada (fotos: Gustavo Saiani)

Depois de bastante tempo numa estrada ruim -que parecia, ainda assim, melhor do que a indicada pelo GPS-, com muito cocô de vaca e alguma lama, chegamos a um asfalto. Bill e Madá ainda estão conosco; vieram o caminho todo se metendo na nossa frente nas descidas -sabem andar em bando mas talvez, não com bicicletas. Me preocupa que eles nos sigam pelo asfalto, mas ainda nem decidimos pra onde ir. A dureza do terreno e as horas gastas montando e levantando acampamento nos últimos dois dias fizeram com que percorrêssemos bem menos do que o previsto pra conseguirmos chegar em Paraty ainda amanhã à noite. Meu pneu não aprontou nada desde ontem, mas sinto que quer me pregar uma peça e isso faz com que a proposta de mudar a rota e encerrar o pedal hoje mesmo, seja mais aliviadora do que frustrante. Essa sugestão parte de Gustavo, que não aparenta nenhuma quebra de expectativa ou decepção; então, está feito.

É pura satisfação revisitar o asfalto depois de todas essas estradas e trilhas, mas, prazer maior, é encontrar uma vendinha aberta logo no primeiro quilômetro. São umas cinco da tarde; os cães estão conosco; pegamos sinal e mandamos um “Oi, tô vivo” para as pessoas queridas; saboreamos os últimos salgados disponíveis na estufa. Falamos com a galera do Cascalho Carioca e me sinto como um correspondente internacional na cobertura de um grande evento. Gustavo pede comida para os cães e eu me bate uma culpa de ainda não ter feito nada nessa direção. A atendente hesita, mas diz encontrar presuntos próximos do vencimento na geladeira; percebo que são pedaços imensos e fico muito feliz pelos nossos caninos. “Agora mesmo é que não vão nos largar”, comento. Estou preocupado com eles no asfalto e já estou muito apegado também; penso que são cães aventureiros e que foram verdadeiros pet-atletas hoje; deram um verdadeiro show. Admiro o desprendimento deles saírem seguindo dois estranhos por aí e, no nosso lado, carrego a certeza de que lhes proporcionamos um entretenimento de altíssima qualidade.

“Se um deles for atropelado, vou carregar essa culpa pra sempre”, penso. “Mas eles nos seguiram por vontade própria”, reconheço. Percebo-me adentrando meus próprios labirintos éticos à procura de uma solução que não encontraria assim. -Eles precisam ficar ali! De alguma outra faceta menos filosófica, uma idéia: faço uma boa propaganda dos cães pra moça da lanchonete e transpareço toda minha admiração por eles -na esperança que isso ajude ela a aderir ao plano e, mais ainda, que queira arrumar um lar pra eles no futuro. Conto que eles vão ser atropelados se seguirem pelo asfalto conosco -em tom bem fatalista mesmo; quero que ela tema por eles que nem eu. Proponho uma encenação: “quando estivermos de partida, você vem, chama eles, mostra a comida, mas faz eles te seguirem até os fundos e, só aí, você dá pra eles, ok?”. Ela aceita, com o entusiasmo de quem raramente faz coisas inusitadas, apenas por falta de oportunidade de fazer. O plano dá certo e agora estamos girando no asfalto sem eles; peço então pra Oxalá, Deus e o Universo que cuidem deles, e, especialmente, que alguém leve o Bill no veterinário e lhe dê comida. Carrego um mini-sentimento de que deveria tê-lo adotado e acho que minha rara invocação ao divino cai num lugar de pedir pra que alguém dê conta de fazer o que não posso.

Bill e Madá 💜🥲

Pegamos velocidade em uma descida e eu estranho a dirigibilidade da bicicleta; a roda traseira está frouxa nas curvas. Passei as últimas 24hs paranóico com meu pneu, mas sei que agora é pra valer -não está normal, tenho certeza. Paramos numa subida com uma capela e mirante: preciso encher o pneu, mas não posso passar do ponto, sob o risco do furo piorar. São 48hs desde que furou pela primeira vez e nenhum espinho foi descoberto, então, a realidade de que continuará furando é inescapável. “Que sorte termos escolhido o caminho mais curto pra casa, penso”. Fico todo atrapalhado no processo de encher o pneu; estou nervoso e me culpo muito por estar travando o rolê. De Gustavo, meu inconsciente espera um “Bora?” hostil ou um “Tudo certo aí?” impaciente, mas calhamos de parar num lugar com memórias.

O Santo dos viajantes, além de proteger quem precisa, gosta de brincar com as nossas emoções, serenando preocupações e trazendo elaborações de onde se esperariam ansiedades. Quando olho para o horizonte lá está Gustavo, com o semblante calmo de pessoa que, ao revisitar um lugar, acaba sendo mais re-visitada do que re-visitante dele. É um ponto de conexão ali; por várias horas da viagem, conversáramos sobre o ultraciclismo e toda a ciência envolvida no esporte. Até então, havíamos falado de provas, distâncias, quantidade de horas pedalando sem dormir, recordes, equipamentos e tudo o que se possa imaginar dentro do mundo dos dados técnicos. Agora, estamos conversando das coisas que foram vividas e sentidas naquela estrada e dos afetos que se mobilizam a cada girada de pedal. De olhos marejados diante das montanhas opostas a uma pequena capela, Gustavo me conta de aventuras outras, ao que, ouvindo, me emociono também -sem perder o foco no pneu furado que me atormenta.

Nunca me interessei pela coisa humano-máquina de esporte nenhum; não acompanho o Tour de France nem Olimpíadas e me orgulho de não ter assistido nenhuma das últimas copas do mundo FIFA. A catarse de meu amigo me traz pra esse lugar “pé no chão” e quase-espiritual do esporte -embora essa elaboração só se tenha feito quando fui escrever.

A visão de Gustavo // Babá de pneu

“Soltar o freio e descer como um cometa”: a música do Marcos Valle ecoa na cabeça em um clima lúdico. O asfalto é um “tapete” e a luz alaranjada do poente ilumina a serra que vamos contornando em alta velocidade. O contraste com os terrenos difíceis dos dias anteriores e o clima de “estamos quase chegando” dão a esse trecho um ar festivo, enquanto o perigo das curvas e a concentração pra não errar, trazem uma energia meditativa. É um momento muito intenso emocionalmente que, pela própria natureza da velocidade, acaba rápido -e sem fotos.

A curtição da descida dá lugar a umas últimas subidas e então, chegamos ao município de Silveiras. Pretendemos pernoitar por lá e pedalar no dia seguinte para Queluz, para pegar um ônibus de volta ao RJ. Comendo em uma padaria chic, decidimos catar uma pousada, já que dormimos de graça nas duas noites anteriores e que não há lugar de acampar nos arredores; clima de fim de viagem.

Calorias em Silveiras. É difícil avaliar tortas de limão em fotos, mas essa tava bem especial.

Há duas pousadas na cidade e uma delas está completamente fechada, a despeito de ser sexta-feira. A outra, tem portões abertos, de modo que prosseguimos até a recepção, vazia. Ali, um bilhete com a instrução “se chegar, ligue”; mas ninguém nos atende. Percebemos que há hóspedes e, também, quartos disponíveis, de modo que esperamos ali com a paz de quem sabe que é uma questão de tempo até conseguir um lugar pra dormir. Uma jovem adulta aparece e nos aborda com tom inquisitorial: “Quem abriu o portão pra vocês?! Como vocês entraram aqui?! Quem abriu a porta desse quarto?!”. Em choque com a hostilidade, esclarecemos que o portão estava aberto e perguntamos: “Mas aqui não é uma pousada”? A cidadã retruca, ofendida “É uma pousada sim, justamente, não é bagunça! Temos regras! Após as 18 horas, não recebemos sem reserva prévia!”. Ficamos perplexos com a especificidade e a obscuridade dessas regras, mas Gustavo toma a dianteira na conversa, tentando um tom conciliador; que estamos cansados, e que queremos apenas dormir e partir na manhã seguinte. Ele ressalta que queremos pagar pela estadia; que não estamos pedindo uma ajuda grátis ou coisa do tipo. Ela: “Nós não precisamos do seu dinheiro, essa pousada é um hobby da minha mãe!” Aponta para uma moto: “Minha moto é “zero”, olha ali!”. Já dormi em tudo que se possa imaginar; posto de gasolina, areia de praia, casa de desconhecido rico, desconhecido pobre, resort e até uma acomodação de rodoviária cheia de baratas, mas acabo de viver algo inédito.

Voltamos à estrada ainda com a frustração latente e o desejo maior de sair daquela cidade imediatamente. Decidimos pedalar adiante e decidir o pouso no caminho: poderíamos parar em Areias ou ir direto a Queluz. São oito da noite e a lua cheia está subindo no horizonte quando caímos na estrada; a previsão é de três horas ou mais de pedal; clima de missão. Não consigo crer na estimativa de meu amigo; estamos na Rodovia dos Tropeiros; num asfalto perfeito e sem movimento de carros; “Mas ele conhece aqui melhor e eu que devo estar sendo teimoso”; -penso, desanimado de chegar apenas à meia noite.

Minha lombar, que esteve cansada o dia todo, agora dá sinais de talvez estar cruzando o limiar entre a fadiga e a lesão. Estamos num ritmo muito bom, até que começo a precisar empurrar a bicicleta nas subidas por causa da dor; temo pelo dia seguinte; talvez a lesão já esteja aí, esperando os hormônios baixarem pra mostar a que veio. Em uma hora, chegamos à metade do trecho e paramos para fotos e alongamento. Gustavo avença -ou blefa sobre- acampar ali, ao que argumento que vai ser muito bom dormir já perto da rodoviária. Estou no clima de “reta final” e adiar a chegada para a manhã seguinte não só seria frustrante, como trazia o risco de minhas costas acordarem indisponíveis. Minha dor vai aumentando nos últimos quilômetros, até que chegamos em Queluz e rapidamente encontramos pousada; dessa vez, com uma recepção muito gentil.

As únicas fotos do trecho + a foto da chegada em Queluz

Já estamos instalados, urro de dor a cada abaixada pra pegar objetos ou, simplesmente, sentar. Sinto bolotas imensas na minha lombar e o pânico de quem saiu de uma lesão pra já entrar em outra. “Mas, pelo menos, amanhã vai ser só ir até a rodoviária”; “E pra pedalar da Rodoviária Novo Rio até em casa?”; “E se o sacolejo do ônibus fizer doer minha coluna?”. Rompendo o vendaval de pensamentos histéricos, o inimigo do fim que há em mim, propõe que jantemos nas carrocinhas de comida ao lado da pousada; ao que Gustavo prefere contemplá-las da janela do quarto mesmo. Ele deve estar certo, penso; questiono minha saúde mental de querer fazer qualquer coisa naquele estado.

Quero muito tomar meu banho, mas pareço não conseguir abaixar para pegar o sabonete na pia —quem dirá o shampoo no chão. É com debilidade que vou conseguindo tirar a poeira e a terra do corpo, embora, ainda assim, consiga desfrutar intensamente do pequeno prazer que é ver a sujeira saindo lentamente da pele. Parece que nunca vou pegar no sono; qualquer movimento dói demais e a cama molenga não ajuda. “Será que é assim que se sente uma pessoa de noventa anos?”. Vou me apropriando disso e começo a sentir a serenidade de um nonagenário que viveu bem sua vida. Sei que a dor está aí, mas paro de pensar nela.

Epílogo (volta / dia 3)

Acordo ávido pela comodidade de um café da manhã de hotel, mesmo sem ter grandes expectativas — dada a simplicidade do lugar em que estamos. As passagens que compramos ainda na noite anterior são para o ônibus que parte em duas horas, o que parece bem folgado. Descemos ao saguão sem nenhuma expectativa e ainda muito frustrados pela deshospitalidade das pousadas de Silveiras ontem, e então, somos surpreendidos por uma variedade imensa de sucos e comidas. As dores já estão bem melhores, mas a caminhada para a rodoviária — empurrando a bicicleta com seu pneu furado — prova que a recuperação deve demorar um pouco mais.

Durmo pesadamente no ônibus; sonho que estou pedalando por terrenos duríssimos e caio. Acordo imediatamente dando um safanão no vento, como se fosse me equilibrar do tombo. Volto a dormir e a sonhar com montanhas e descidas. Já estamos em São Cristóvão quando acordo; Gustavo só acorda já dentro da rodoviária. Compartilho os recentes sonhos de acidentes e voltamos ao nosso papo do ônibus de ida sobre Freud e A Interpretação dos Sonhos: talvez esses acontecimentos oníricos sejam uma elaboração; uma sedimentação dos conhecimentos vividos e adquiridos dentro das dificuldades encontradas na jornada. Ninguém escapa de cair, mas talvez, eu venha caindo pouco por algo mais que sorte ou talento. Em uma vida inteira de frustração pela falta de talento pro futebol, olho pros últimos dias e é como se Oxalá falasse comigo. Consigo entender um pouco meu processo inconsciente de aprendizagem e apenas agradeço.

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