Pedalando a Serra da Bocaina, pt. I

Felipe Areas
11 min readSep 6, 2023

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Rota completa da viagem aqui

Prólogo

Era junho de 2023, quando meu amigo Ernesto me arrastou para o “Rio Unite”. Porém, aquilo que poderia ser o nome de uma empresa de ônibus ou uma marca que vende paletós no mundo online, era, na verdade, uma grande pedalada entre amigos, organizado pelo coletivo Cascalho Carioca. Aderi sem nenhuma expectativa -quiçá, tendo expectativas negativas-, mas achava que ia servir como um propósito pra viajar de bicicleta e isso, por si, já valeria a pena.

Foram 40 pessoas fazendo uma rota mista de terra, asfalto e trekking (empurrando bicicleta), em quatro dias e com um nível de dificuldade bem maior do que os dias difíceis das minhas viagens de bicicleta. Se eu nunca tinha compartilhado uma estrada com mais de uma pessoa pedalando ao meu lado; de repente, me vejo num pelotão de quarenta. Um clima ameno “de encontro dos amigos” pauta a jornada, a despeito dos muitos quilômetros e subidas.

A largada // A rota (e o porquê do nome) // A chegada

Saí dessa jornada cheio de caminhos abertos -também internamente- e, com o entendimento de ser profundamente verdadeira, a metáfora cafona de que a bicicleta me ajuda a equilibrar a vida. Também, com uma tendinite no calcanhar de Aquiles -mais sobre isso, depois. Encontrei uma “turma” e comecei a trocar com muita gente pra planejar novas viagens, realizei um sonho antigo de ir a Petrópolis de bicicleta e encarei a Avenida Brasil pela primeira vez na vida. Era incrível perceber-me num grupo onde, pela primeira vez na vida, não sou o “doidão da bike”.

Conversando e participando ativamente do Cascalho Carioca, pesquei um movimento se articulando para o ano que vem. Queriam estudar rotas e planejar algo no formato do Rio Unite para 2024. A essa altura eu já sabia do trabalho que dava pra montar um negócio desses, e, me sentia muito grato por quem fez o de 2023 acontecer.

Sondaram quem animaria de ir para uma expedição de reconhecimento e, hesitante, me candidatei. No final, seriamos três, mas Diego teve que desmarcar na véspera, sobrando eu e Gustavo, que tinha estudado as rotas por bastante tempo. Estava muito feliz de poder retribuir ao coletivo a alegria que o Rio Unite me trouxe; de poder abrir e validar caminhos pro grupo; de passar perrengues para que os próximos não precisem.

Dia 0 (rota disponível aqui)

Nem comecei a viagem e já estou exausto. Mil imprevistos foram surgindo na noite de ontem, embora esteja tudo certo com a bicicleta. Eu tinha esquecido que a arrumação das bolsas é ciência à parte, e isso me toma até o sol raiar. Acordo exausto e parece que as coisas do dia não vão caber a tempo da nossa passagem para o ônibus das 16:15. A técnica de se programar pra sair 20 minutos antes do que seria realmente necessário funciona e chegamos na rodoviária na hora certa.

A saída do prédio e a pedalada pra Rodoviária Novo Rio

No Ônibus, conversamos sobre Freud e coisas diversas, e isso me faz esquecer brevemente que meu companheiro de jornada tem bem mais experiência em longa distância; e que eu, vindo de uma lesão, posso ter surpresas ruins com o tendão.

Já é noite quando saltamos em Barra Mansa; noto que as bikes mexeram mas chegaram bem no bagageiro do ônibus. Não temos nenhuma meta de pedalada para noite de hoje, mas precisamos encontrar um lugar pra acampar. Pedalamos rumo a Bananal, que seria o início “oficial” da rota em elaboração. A lua está enorme, o asfalto está perfeito e quase não há movimento na estrada. Vamos seguindo num clima de curtição purinha com essas condições maravilhosas, além do tempo fresco e o luar iluminando a paisagem rural.

Se em minhas viagens passadas, a regra era evitar ao máximo pedalar a noite, agora, venho equipado e preparado psicologicamente pra isso. O inconsciente lida de formas bem diferentes com o dia e a noite, especialmente, fora de casa; qualquer coisa que mobilize inseguranças se amplifica depois que o sol cai.

Rodoviárias e gambiarras

Chegamos em Bananal já bem à noite, fazemos um lanche, especulamos sobre possíveis lugares de pernoite e seguimos. A estrada se mantém nas mesmas boas condições de antes, mas agora, ainda mais vazia. Vamos pedalando sem nenhuma pressa de achar lugar pra dormir -a despeito da hora- até que, uma alvenaria de casa-por-vir nos aparece à vista. Estamos exaustos e, depois de termos especulado descampados e reentrâncias diversas, bate a certeza de que aquele é o lugar perfeito para fazer janta e dormir. Gustavo propõe uma fogueira enquanto eu estou cabreiro com a possibilidade de sermos vistos e expulsos dali; mas, diante de seu entusiasmo, paro de reticenciar. Esquento um salgado comprado em Barra Mansa, que, no calor fogo, transmuta de entulho para iguaria, num processo artesanal que me demanda a paciência de um escultor -mas que me entretém enquanto Gustavo faz o risoto acontecer.

Pracinha de Bananal // Cozinha de guerrilha

A produção de cozinhar, manejar o fogo e levantar acampamento acaba levando mais tempo do que o esperado e já é mais de meia noite quando cada um se recolhe à respectiva barraca.

Dia 1 (Rota aqui)

Acordo às seis da manhã, fazemos tapioca, café e desproduzimos o acampamento. Vamos sem pressa e com a incumbência de reabastecer a água, toda consumida na hidratação, café e para cozimento do risoto na noite de ontem.

Café no equilíbrio // Tapioca de cócoras // Clima de muamba

Celebro o asfalto porque conheço o pessoal do Cascalho Carioca, e sei bem que é uma questão de tempo até a estrada piorar radicalmente. Uma subida monstruosa logo se apresenta nos primeiros minutos de viagem e percebo o quão pesada a bike está. Se no Rio Unite, a hospedagem era planejada, aqui, levamos barracas, sacos de dormir, panelas e todo tipo de tralha necessária à autossuficiência.

Mais de uma hora se passa até a chegada ao topo da serra, de forma que todos nossos indicadores de performance estão baixíssimos, à exceção do altímetro, que já marca mais de mil metros de subida com pouco mais de uma hora de percurso.

Começo da subida // Meio // Final

Miramos uma pousada no alto de um morro e lá vamos nós sacar; um dos propósitos de uma viagem de reconhecimento é colher informações sobre os lugares e possíveis pontos de apoio da rota. Lembro que o Rio Unite só foi possível por que pessoas fizeram esse estudo e agora me vejo na posição delas, de modo que sou tomado pela alegria de poder ajudar essa roda a girar. A recepcionista, nos presenteia com um café e bolo fresquinhos e seguimos viagem. Passamos perto de uma represa abandonada; contemplamos a paisagem; especulamos sobre como teria sido legal pernoitar ali.

A pousada // O lago // café com bolo

Do nada, a bicicleta fica pesada. Pneus furam e há mil maneiras de isso acontecer, mas agora, sou pego de surpresa. Já tive um que furava o tempo todo e mecânico nenhum conseguia descobrir a causa, mas esse deveria ser diferente, um pneu famoso por ser parrudo e durar milhares quilômetros; vai saber…

Conseguimos consertar rapidamente e já paramos numa vendinha-restaurante pra encher a água; o sol está a pino. Entendemos que ali vai ser um dos últimos lugares pra comprar alimento por um bom tempo. A bicicleta fica ainda mais pesada com o queijo e os doces que adquirimos.

O desmonte // A sujeira // A senhora dos doces.

Estamos em outra subida puxada, dessa vez, na terra e com o calor da tarde. Chegamos então a uma parte de sobe e desce, que demanda um bocado de técnica: um leigo pode achar que quem acelera na descida é kamikaze, mas a real é que, num dia inteiro de pedalada, frear cansa bastante as mãos e o corpo (e todos os músculos que trabalham pra te jogar pra trás e te impedir capotar), além de tirar o embalo pra próxima elevação. As subidas estão difíceis pra mim, é a primeira vez que viajo com peso no guidão e a direção está super dura; é como se tivesse que fazer muita força pra me equilibrar. Vivo um misto de curtição com apreensão pelo que vem pela frente; tentando ter disciplina e foco.

Sobe e desce ∞

Chegamos num vale com sombra e Gustavo sugere de comermos o que temos (pão sírio, queijo, salame e doces) por ali mesmo. Penso que ele está certo; que essa é a única opção; que preciso aceitar que realmente não haverá restaurantes naquela estrada por um tempo; nada de refeição. Queimamos o estoque de pão sírio e provamos os doces recém adquiridos da vendinha anterior; celebro o paladar dos doces caseiros e artesanais, mas realizo que não daremos conta de comer tudo aquilo.

A capelinha de beira de estrada; O fogo e o pão sírio

Seguimos por poucos metros, chegamos ao povoado de Sertão da Onça e meu pneu está murcho novamente. A idéia de a expedição ser abortada por causa de negligência e azar meus é terrível; fico muito ansioso. Gustavo maneja a situação com louvável paciência, me tranquiliza e auxilia no reparo. Estamos em um lugar muito ermo, comprar um pneu novo será impossível ainda por muitos quilômetros. Paramos em frente à Escola da Onça -amei esse nome- e pedimos ajuda às senhoras que assistiam os alunos jogarem bola. Com uma bacia d’água, encontramos o furo da câmara de ar, mas não achamos sinal de espinho ou problema na roda. Era certo o problema ser no pneu, mas procuramos nas duas vezes e não encontramos nada que pudesse ser a causa. Remendamos ambas câmaras de ar furadas; cada um remendando uma ao mesmo tempo -parecia o pit stop da Formula 1- e eu tinha pouquíssima esperança de o problema se resolver definitivamente. Uns 500 metros à frente senti que tinha furado outra vez. Gustavo avalia e diz estar normal; seguimos. A paranóia de que já já esvaziará me persegue; as condições da estrada pioram.

Final de subida // 2º Furo // Chegada na área do Parque Nacional da Serra da Bocaina.

Atravessamos um rio e uma placa nos avisa que já estamos na área do Parque Nacional da Serra da Bocaina; a estrada vira uma trilha. Subimos empurrando as bicicletas por um trecho longo e começo a sentir dor nos braços -parece que estou fazendo flexões o dia todo; as barras de doces pareciam tijolos e sinto vontade de jogar fora toda aquela comida que trazíamos. Se eu tivesse fazendo academia, tudo seria mais fácil? Esse pensamento é a porta do inferno para os pensamentos de “por que estou fazendo isso comigo?”; “Qual é o propósito disso tudo?”. A trilha piora e agora, já não caibo nela com a bicicleta, de modo que alterno entre ficar fora e deixar a bike no caminho ou o contrário.

Alguma hora, a subida acaba, mas a descida é quase tão ruim quanto: um trecho muito esburacado e super inclinado que demanda toda a concentração, já com o sol a se pôr. Sabemos faltar ainda muito pra chegarmos a qualquer lugar dos que tínhamos no roteiro; está ficando escuro e frio

O GPS indica que vamos finalmente chegar a uma estrada -o que acaba sendo verdade a estrito senso- mas, na prática, o caminho segue igual ou pior. Já é noite e estamos num sobe e desce constante, com muitas pedras, poças, barro e galhos caídos. Na largura, cabe um carro; mas que carro passaria ali? Chegamos a um entroncamento: “Pousada Vale dos Veados x Entrada do Parque” e recordo: quase fui nessa pousada com os meus pais há uns vinte anos, mas eles acabaram desistindo por que seria perrengue demais chegar lá de jipe. Bem, eis me aqui, de bike.

Vamos com a motivação de que as condições vão melhorar perto da chegada, e, como estamos há muitas horas assim, poderia ser a qualquer momento. Toda hora vejo coisas que percebo como sinal de que estamos perto de chegar a alguma civilização, mas a lua já está a pino e nada. Estamos em estado de perrengue; já não tiramos fotos há horas; a fome existe e não está aguda, mas, talvez, esteja comprometendo a dirigibilidade.

Gustavo leva um tombo: sua bicicleta escorrega no buraco enlamaçado e ele, tomba pra um montinho que acosta a estrada, por baixo da bicicleta. Caiu até bem. Aquilo chega pra mim como um alerta máximo: se ele, com dois pneus bem mais próprios pra nossa aventura do que os meus, rodas maiores e, ainda, com a bicicleta mais leve, então, era uma questão de tempo até minha vez chegar. Estou penando pra me equilibrar no meio de tantas pedras e pequenas subidas; a moral está baixa.

Não olho o relógio, mas sei que é tarde; estamos mortos de fome, mas só temos os doces-tijolo. então, lembro que comprara ontem um salgadinho nas Casas Pedro e ele está à mão. Paramos, degustamos cada pequeno milho celebrando o sal, enquanto o tempo vai esfriando. Vontade de chegar logo; fome; e o sentimento persistente de que meu pneu pode me trair a qualquer hora: trago os nervos à flor da pele enquanto a hora avança -mas, pelo menos, o lanche ajudou a recuperar um pouco da agilidade e do reflexo.

O fiscal pelo menos tirou uma foto pra gente // Risoto na brasa.

Vou esquecendo de ver as horas, mas sei que já é bem tarde. Atravessamos um rio por uma ponte estreita e finalmente estamos na portaria do Parque -só então percebo que já são dez horas da noite. Vemos uma área perfeita para acampar e então, um fiscal aparece como se tivesse escutado nossos pensamentos: “Não é permitido acampar aqui”; “Mas a gente tá exausto e já são dez da noite”; “Então vou tentar ver com meu supervisor”. Depois de uma dose desnecessária de lero, optamos por seguir a estrada até um descampado onde o fiscal disse que seria possível pernoitar. Foi até rápido de chegar e Gustavo logo agiliza uma fogueira ao que aproveito pra tentar secar meus tênis recém-molhados de poça à beira do fogo. Terminamos a janta já depois de meia noite e carregamos nas roupas o aroma defumado para as respectivas barracas.

Parte II aqui

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