Um rolê pelo bairro
As freiras organizaram uma excursão pros meus amigos
olharem a pobreza em olhos desmilinguidos
a ideia era um rolê num bairro em crise
filho preso, filha aidética, tragédia em reprise
Achei aquilo comovente e também muito didático
Iria me lembrar, quando tirasse um sabático
Quando a kombi que nos levava a este mundo sofrido
Tomou o rumo de casa, eu fiquei constrangido
“Que porra é essa, onde cês tão nos levando?”
Era a casa do meu vizinho o tal zoológico humano
Fiquei com vergonha por morar no safári da fome
E por colar com os boys e gente de sobrenome
A vida foi boa comigo dali em diante
Dinheiro pra cerveja e livro na estante
Estudei feito um imbecil, nunca se esqueça
Depois disso a sorte passou a mão na minha cabeça
E falou: vai moleque ser gauche na vida
Mas nunca olvide dos vizinhos das antigas
Nem mesmo quando estiver numa reunião aristocrática
ou tendo uma vidinha medíocre e burocrática
De canela fina e cabelo raspado
Pedalando as magrelas depois do dia pesado
Pipa com cerol, pelada no asfalto quente
No grupo de jovens ou no culto dos crente
Perdendo o cabaço em construções inacabadas
Vira-latas correndo em cima da molecada
As brigas de casal, o choro de criança
sertanejo, no radinho, cantando esperança
O cheiro da gordura queimando no domingo
Os vizinhos bóias-frias gritando feito bingo
Moleques com fome pedindo manga do quintal
B-12, o bananeiro; cangaceiro tropical
Fiz amigos de esquerda depois da vida ganha,
que me dizem que preciso ver gente que apanha
Eles podiam pegar carona na kombi do colégio
e dar um rolê no meio do inferno
Eu bebo, bebo, bebo
E nunca me esqueço
Daquele moleque negro de olho chineisinho
Morava na minha área, tipo meu vizinho
Pra ajudar a família ele vendia pedra
o irmão tava no xis — todo mundo erra
devia ser 5 anos mais novo do que eu
Me falaram que foi preso, sei lá se não morreu
Eu bebo, bebo, bebo e tento esquecer
Procurar o lado bom que me faça crer
Que todo mundo de lá acabou assim
numa vida farta como a que tive pra mim
Tento acreditar que é só correr e pá.
Que a vida melhorou de uns tempos pra cá.
Que não foi por ser branco de sobrenome italiano
Ou por causa da bolsa que eu ganhei por tantos anos
Ou por meus pais professores com livro e enciclopédia
Quem não foi porque minha família vinha da classe média
Não foi por tudo isso que nesse mundo atroz
Hoje eu grito e eles não têm voz
Eu bebo, bebo, bebo e quando estou sozinho
Ainda me pergunto “que fim levou o Juninho?”
—
Este poema faz parte do livro “Guia poético e prático para sobreviver ao século XXI” que a Editora Patuá lança dia 31/08/2016. Reserve o seu aqui! . F
red Di Giacomo é poeta e artista multimídia; autor do livro “Canções para ninar adultos” (Ed. Patuá, 2012), do game “Science Kombat”, do Glück Project e de diversas letras da banda Bedibê — entre outros projetos que envolvem educação, jornalismo e literatura :-)
Seus poemas estão espalhados aqui.