Como ser um Mestre do improviso. 2

Gabriel Abreu Lugão
6 min readMar 23, 2018

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É muito importante que, antes de continuar a leitura deste artigo, você leia a parte 1 desse projeto, pois é lá que apresento os conceitos fundamentais pra começar a improvisar numa mesa de RPG.

Agora que já entendemos que preparar menos pode trazer uma satisfação maior para os jogadores e pro mestre, fica aquela dúvida: “Tá, mas então o que é suficiente?”.

A partir daqui, é difícil dizer o que é certo; qual a melhor maneira de preparar o seu jogo, ou como você deve fazê-lo. Cada mestre vai conseguir lidar melhor com formas diferentes de preparação, e a maneira correta será aquela que faz mais sentido para a SUA mesa. Vou apresentar algumas ideias que podem ser usadas, mas cabe a você mesmo decidir aquilo que funciona.

Faça perguntas.

Faça à você mesmo perguntas simples e objetivas como essas, por exemplo:

  • Onde e como essa aventura começa?
  • Pra qual lugar/situação essa aventura pode nos levar?
  • Quais são os dois/três NPC’s (Personagens do Mestre) mais importantes pra história, e o que eles fazem?

A resposta dessas três perguntas vão dar os elementos principais para que você, como mestre, comece a trabalhar os outros elementos que serão apresentados durante o jogo.

Evite rechear as respostas dessas perguntas com detalhes que apenas pareçam interessantes. Fique apenas com o que for realmente importante.

Onde e como essa aventura começa?

Esse é o começo da aventura, a missão de partida, o motivo pelo qual todos os personagens estão reunidos.

“Numa estrada entre as montanhas enevoadas, em uma carruagem que faz o transporte de diversos itens valiosos que devem ser entregues no palácio em segurança.”

Não leia essa frase, exatamente como ela está escrita, em voz alta para o seu grupo. Você deve ser capaz de tirar informação suficiente de como começar e dar algumas opções interessantes para os jogadores.

Pra qual lugar/situação essa aventura pode nos levar?

Ao invés de construir um cenário completo, um mundo recheado de coisas pra explorar, foque apenas em algumas opções interessantes para o seu grupo. “O que podemos encontrar ao explorar o cenário em que estamos?”. Dê opções suficientes para que seu grupo possa fazer escolhas relevantes, mas não tantas que os deixem perdidos; umas três opções já é mais do que suficiente.

“Um dos itens valiosos é cercado por maldições. A rota mais curta é também a mais traiçoeira, enquanto ladrões espreitam o caminho mais longo. O atraso da entrega pode desencadear graves consequências.”

Não deixe de anotar suas opções. Anotar te faz sentir confiante, e sentir-se confiante te deixa mais confortável durante o jogo.

Quais são os dois/três NPC’s mais importantes, e o que eles fazem?

A resposta dessa pergunta é responsável por trazer profundidade à sua história. São esses NPC’s que vão tornar o mundo vivo.

Qual a motivação desses personagens? Por onde eles estiveram? O que eles faziam enquanto os personagem dos jogadores não estavam por perto? Como é a relação entre esses personagens?

“Micky, o gnomo escravizado e condutor da carruagem, corre o risco de perder a cabeça pelas mãos do próprio Barão Paperin, um verdadeiro lorde cheio de terras e riquezas. Há quem diz que ele tem uma grande rivalidade com Horácio, um conde muito influente que esconde alguns segredos, esses que em algum momento podem ter sido descobertos acidentalmente pelo gnomo Micky.”

Questões como essas ajudam a manter o cenário respirando, e podem fazer com que a história aponte pra uma nova direção a cada interação dos jogadores. E logo eles vão perceber que estão numa aventura muito maior do que num simples passeio na floresta onde criaturas agressivas saltam de trás dos arbustos.

Construa relacionamentos.

Em alguns jogos de RPG com foco maior na narrativa, é comum encontrar regras pra construir as relações entre os personagens. Fiasco, Violentina, DramaSystem, Apocalipse World, são alguns dos exemplos que me vem à cabeça. De maneira geral, esses sistemas apresentam algumas opções pré-definidas dessas relações entre os personagens, o que ajuda muito no momento em que juntamos esses personagens, bem melhor que o conhecido: “Vocês todos se encontram num bar…”.

Uma boa forma de criar esses relacionamentos é utilizando uma lista de doze a vinte relações pra amarrar as histórias desses personagens durante primeira sessão.

JOGADOR: Escolha um personagem pra firmar uma relação entre vocês dois, role um dado e escolha o histórico com o mesmo valor do dado. Pergunte à ele pelo menos duas das questões, de acordo com o histórico: Qual, Como, Quando ou Onde.1. Me ajudou a enfrentar meu maior medo.
2. Me impediu que eu perdesse o controle da situação.
3. Somos companheiros de longa data, mas fomos separados.
4. Ele sabe do meu passado obscuro.
5. Esteve comigo quando decidi abandonar minha antiga vida.
6. Eu não devia ter envolvido ele nessa situação.
7. Ele me enche de sentimentos de paixão e desejo.
8. Eu prometi guardar um dos seus segredos.
9. Estamos trabalhando juntos num plano mirabolante.
10. Me mostrou os primeiros passos, quando ainda era um aprendiz.
11. Ainda devo provar que sou merecedor.
12. Sei que algo ruim o persegue.

Cada jogador pode rolar um histórico para cada outro personagem, e as respostas das perguntas que vão surgir no momento que essas relações forem criadas, podem servir de base para a criação do mundo.

Dê um tempo para que seus jogadores exploram essa nova rede de relacionamentos, para que eles refinam aquelas relações que possam parecer contraditórias. Dê um tempo para que eles construam suas próprias histórias a partir dessas relações. Tome nota dos pontos importantes que conectam esses personagens e pense como eles podem surgir na história que acabou de ser criada.

Faça o uso de referências.

A vida de um mestre é cheia de responsabilidades dentro do jogo, tanto durante as aventuras quanto fora delas, durante a preparação. Construir um mundo inteiro e completamente único, para uma mesa de RPG, pode ser extremamente desgastante e muitas vezes até frustrante. Mas ainda bem que existem grandes autores que já criaram diversos modelos de universos, basta escolher e usá-los.

Você não precisa utilizar o mundo inteiro de uma única fonte, mas talvez as características de um personagem, de um ambiente, uma premissa ou ideia podem facilmente ser incorporados em elementos do jogo.
Usar referências ajuda muito na vida do mestre quando ele precisa descrever uma nova situação; faz com que todos os participantes do jogo se sintam familiarizados e consequentemente imersos no jogo.

Semente Modelo

Não precisamos de uma história completa, do começo até o fim. O que precisamos é de um bom começo, uma semente, uma ideia que pode se desenvolver numa grande história; e nós podemos nos apropriar das ideias de outros lugares que conhecemos como em filmes, livros, quadrinhos, jogos, etc.

Uma criatura despenca do céu e resulta num grande impacto que deixa um rastro de destruição. (Diablo 3)

Uma pequena e isolada ilha deve ser protegida de um bando de saqueadores perversos. (Os Sete Samurais)

Uma entidade mitológica e poderosa é sequestrada. (Sandman)

Invasores alienígenas do futuro se infiltram nas bases do governo e estão prestes a iniciar um ataque. (Doctor Who)

Quando utilizar essas sementes, evite basear-se naquelas que necessitem do desenvolvimento de um PnJ (NPC) como protagonista. Já que em um rpg, os personagens principais da história serão os personagens dos jogadores, não um criado pelo mestre.

Mundos que Colidem

Quentin Tarantino é um diretor bem conhecido por misturar gêneros de filmes que se tornaram muito mais que apenas a soma das partes. Os Oito Odiados, por exemplo, mistura os personagens dos clássicos Bang-Bang (Western), em um cenário de isolamento em meio à uma nevasca, que resulta em uma complexa intriga, comum em filmes policiais.

Infelizmente, dentro da comunidade de RPG, é muito comum encontrar aqueles aficionados pelo universo canônico das histórias. Alguns fãs de Star Wars, por exemplo, podem até considerar uma heresia daqueles que divergem do espaço canônico. Mesmo assim, os próprios autores desse universo costumam quebrar algumas “regras”.

Venho por meio deste texto, te dar licença total para utilizar todo e qualquer material publicado, em sua mesa de rpg, desde que ele faça sentido pra você e seus jogadores. E se você um dia precisar de permissão (e você não precisa!), considere garantida.

Aproveite para colidir mundos e inventar coisas completamente novas e diferentes, mas ainda assim familiares. Jogue uma mesa de Numenera, num universo após os acontecimentos de Shadowrun, misturado com alguns elementos dos livros de Stephen King. Coloque Waterdeep no meio do Vale de Nentir ou Undermountain debaixo da cidade de Grayhawk. Faça uma campanha onde os cavaleiros da távola redonda devem resgatar os artefatos divinos espalhados em ruínas e naufrágios na superfície da lua.

Essas referências podem vir de qualquer lugar à qualquer momento. Fique atento às oportunidades e esteja sempre com a mente aberta, com o tempo você se acostuma em pegar dois ou três elementos em potencial e uni-los em seu mundo como algo que soa único e ao mesmo tempo familiar.
As referências te poupam de horas tentando reconstruir aquilo que já foi construído. Te poupa de reinventar a roda.

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Gabriel Abreu Lugão

Entusiasta de RPG, Jogos, Cultura e atividades lúdicas. Aqui no Medium, escrevo alguns textos voltados à prática do RPG.