Pensamento hebraico e teologia no exílio
A consolidação do “ser judeu”
O século VI configura…um século de grande mudança, não apenas para Israel, mas para grande parte do mundo antigo (cf. Confúcio, Buda, Zoroastro, o nascimento da filosofia grega). [1]
O século VI é marcado pelo desenvolvimento da racionalidade, que leva a caminhos como reflexão e ética. Para Israel, levou ao monoteísmo ético. Além de todo o desenvolvimento cultural que acontece em torno da racionalidade, Israel é levado cativo, o que poderia significar o fim do povo se tornou o combustível para um surpreendente desenvolvimento do pensamento hebraico em terras babilônicas, durante os anos do exílio, a saber, entre 597 a.C. — primeira deportação — e 531 a.C. — decreto de retorno.
Ezequiel
Ezequiel abre seu livro com a visão da glória de Deus e fecha seu livro com a visão de Jerusalém e o Templo, e toda sua glória que deverá ser reconquistada após o exílio. Esta dimensão do escrito do profeta Ezequiel é importante para compreendermos que estamos diante de um texto escrito por alguém que está no exílio e que confronta a realidade do povo exilado com a responsabilidade de terem perdido a terra que Deus confiara a eles. Levado na primeira deportação, Ezequiel compreende bem essa responsabilidade, mas não deixa de olhar com esperança para o futuro. É este esperançoso profeta que percebe no exílio a importância de uma construção teológica acerca das consequências do pecado que levou o povo para a Babilônia. Por isso, ele afirma:
Pois eu os reunirei dentre as nações e os trarei de volta para sua terra. “Então aspergirei sobre vocês água pura, e ficarão limpos. Eu os purificarei de sua impureza e sua adoração a ídolos. Eu lhes darei um novo coração e colocarei em vocês um novo espírito. Removerei seu coração de pedra e lhes darei coração de carne. Porei dentro de vocês meu Espírito, para que sigam meus decretos e tenham o cuidado de obedecer a meus estatutos. “Vocês habitarão em Israel, a terra que dei a seus antepassados. Vocês serão o meu povo, e eu serei o seu Deus. Ezequiel 36.24–28
Esta passagem não deve ser entendida apenas como uma promessa de restauração de restauração de um profeta esperançoso. Há aqui um componente teológico importante inserido pelo profeta: “Eu os purificarei de sua impureza e sua adoração a ídolos … removerei seu coração de pedra e lhes darei coração de carne”. Percebam que há uma condicional aqui, a purificação. O retorno a Israel é condicionado a uma purificação que leva a uma fidelidade renovada a Javé. Mas purificação não é um elemento novo. O que há de novidade? É que a purificação não será mais uma busca do povo, mas sim uma ação direta de Javé: “Eu os purificarei”.
O segundo Isaías
O livro do profeta Isaías possuí três volumes identificados pela sua forma de escrita. O primeiro volume vai do capítulo 1 ao 39, o segundo do 40 ao 55 e o terceiro do 56 ao 66. É justamente no período do exílio, no quando da subida ao trono de Ciro o Grande, que o segundo Isaías, também chamado de Dêutero-Isaías, atua profeticamente, a partir de 550 a.C.
A pregação do Dêutero-Isaías é um chamado à unidade e fortalecimento nacional. O povo está num país estrangeiro, vivendo sob profunda influência religiosa e cultural, é preciso reforçar os valores e se preservar como povo. É nesse período que ganha força traços característicos do judaísmo, como a circuncisão, a observância do sábado e as leis de pureza ritual. Ganha tamanha força que se tornam sinais distintivos de pertença ao povo de Israel. Havia um forte sentimento de tristeza, mas o nacionalismo era presente e essa ambiguidade de sentimento pode ser bem vista no Salmo 137:
Junto aos rios da Babilônia, sentamos e choramos, ao nos lembrarmos de Sião. Pusemos de lado nossas harpas e as penduramos nos galhos dos salgueiros. Os que nos levaram cativos queriam que cantássemos; nossos opressores exigiam uma canção alegre: “Cantem para nós uma das canções de Sião!”. Mas como poderíamos cantar as canções do Senhor estando em terra estrangeira? Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita perca sua habilidade. Que minha língua se prenda ao céu da boca se eu não me lembrar de ti, se não fizer de Jerusalém minha maior alegria. Ó Senhor, lembra-te do que os edomitas fizeram no dia em que Jerusalém foi conquistada. Disseram: “Destruam-na! Arrasem-na até o chão!”. Ó Babilônia, você será destruída; feliz é aquele que lhe retribuir por tudo que fez contra nós. Feliz aquele que pegar suas crianças e as esmagar contra a rocha.
A história Deuteronomista e outros aspectos
Vimos que Josias deu início à redação da história de fonte Deuteronomista (para compreender melhor, leia A formação do Antigo Testamento), mas sua conclusão foi durante o exílio. Os relatos deuteronomistas relê toda a história de Israel à luz da aliança de Deus com seu povo e a infidelidade por parte de Israel. É este olhar que permite o povo esperar por ajuda, mesmo reconhecendo sua culpa. É interessante notar que 1 Reis 8, de redação deuteronomista, coloca nos lábios de Salomão, no quando da dedicação do templo, um pedido de perdão de misericórdia em relação aos conquistadores de Israel:
Perdoa teu povo que pecou contra ti. Perdoa todas as ofensas que cometeram contra ti. Faze que seus conquistadores os tratem com misericórdia, pois são o teu povo, a tua propriedade especial, que libertaste do Egito, uma fornalha de fundir ferro. 1 Reis 8.50–51
É nesse período do exílio que, além das fontes deuteronomistas, surgem as fontes sacerdotais. Os sacerdotes hebreus se tornaram guias espirituais do povo no exílio. Assim, passam a escrever a história a partir da perspectiva sacerdotal, relendo-as a partir do exílio. O passado se torna modelo para o presente e esperança para o futuro. São os sacerdotes que vão impulsionar a importância da relação entre Lei e Aliança, tema desenvolvido pelos deuteronomistas.
Outro aspecto importante nesse período é a mudança da língua. O hebraico começa a perder força em relação ao aramaico, a língua que era usada internacionalmente na época. Sob forte influência babilônica, a língua não resiste e acaba sendo influenciada, mas em contrapartida, o monoteísmo recuperado por Josias ganha força em resposta ao panteão babilônico. Israel passa então da monolatria, culto a um só Deus, e do enoteísmo, existem vários deuses, mas apenas um é por nós, ao monoteísmo convicto: há um só deus e os outros são falsos.
Conclusão
O período do exílio foi um momento de virada na história de Israel. Se pudéssemos apontar os dois fatos relevantes para compreendermos toda a história do Antigo Testamento, o Êxodo e o Exílio na Babilônia seriam estes dois fatos, os eixos pelos quais toda a literatura e composição do Antigo Testamento circula. O Êxodo leva à terra prometida e à consolidação da religião javista. O exílio consolida o monoteísmo e a identidade nacional judaica. No entanto, neste período do exílio, tivemos judeus que não ficaram na Palestina, nem foram levados ao exílio forçado. É sobre eles que falaremos na próxima aula.
Além desses judeus levados à força para a Babilônia, outros — e certamente não poucos — deixaram voluntariamente a pátria para buscar segurança em outra parte. [2]
[1] MAZZINGHI, Luca. História de Israel: das origens ao período romano. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2017
[2] BRIGHT, John. História de Israel. Edições Paulinas. São Paulo, SP, 1978
O presente texto foi escrito para a aula da Academia Bíblica da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, escrito em 11 de fevereiro de 2020
Índice das aulas
O índice é atualizado no artigo da primeira lição.