O que nos tornamos quando não reagimos a notícias absurdas? (e outras reflexões)

A busca dessa semana está em Georg Simmel, sociólogo que escreve no início do século XX e nos apresenta o conceito de indivíduo blasé.

Giulia Tessitore
8 min readJul 15, 2020

Estes são textos que eu recorro quando reflito sobre assuntos diversos, e que podem parecer desconexos em uma primeira vista, como:

  • A quantidade de estímulos que recebemos na vida digital
  • A incapacidade de reagir de forma proporcional a notícias trágicas
  • A nossa necessidade de atrelar um valor monetário a tudo
  • A reafirmação da nossa individualidade

São muitas as questões pensadas pelo sociólogo Simmel na virada e início do século XX e pela forma que comecei este texto, fica claro como são temas que ainda voltam à tona. A duas obras em particular eu me apego: O dinheiro na cultura moderna e A metrópole e a vida mental.

Ilustrações de Andrea De Santis

Em O dinheiro da cultura moderna, a reflexão posta é de que toda liberdade trazida com o dinheiro, carrega consigo suposições falaciosas. O caráter libertador — o dinheiro tudo compra — faz dele um alvo em sim mesmo, incondicionado. Se, por exemplo, tenho o objetivo de comprar uma casa hoje, isso pode mudar no próximo ano caso surja um imprevisto e precise dele para outra finalidade. Diferentemente do alvo fixo, a casa, o dinheiro é um alvo flexível, como um coringa. Tendo o dinheiro, ele estará sempre lá, potencialmente, como objetivo alternativo. Assim, começamos a tatear a problemática apresentada pelo autor.

Nunca antes aconteceu que um tal objeto de valor meramente instrumental assumisse o papel de um fim satisfatório por si mesmo.

Essa análise parece ser central para Simmel entender a vida na metrópole, uma vez que estamos falando do mais precioso objeto que irradia a sua influência em vários traços característicos da vida moderna. Com as inúmeras possibilidades geradas pelo dinheiro, é imediata sua associação com a felicidade. Mas disto também vem a inquietude, a falta de pausas na vida moderna, vida propulsionada pelo motor desenfreado do dinheiro.

Outro ponto analisado neste texto confere à base comum monetária um caráter impessoal, o que rompe com a dependência de uma relação pessoal entre os negociadores. Fatores subjetivos desta relação são substituídos por aspectos objetivos e tem como ápice a sociedade anônima das ações, na qual não é um indivíduo que faz parte daquela empresa, mas sim o montante de seu dinheiro. Com isso, somos livres para criar mais laços do que em uma antiga associação feudal.

A atenção deve estar nessa nova constituição de laços impessoais. Todas nuances da relação se reduzem ao aspecto quantitativo e este se torna o único valor vigente. A superioridade monetária de um indivíduo acaba por significá-lo por inteiro. Há na configuração social atual o que Simmel chama de arrogância blasé, ao abordar a atitude das classes que possuem mais dinheiro ao lidar com o mundo externo ou ao consumir determinada mercadoria.

O que Simmel aponta é que nestas relações, muitos homens agem com maior irresponsabilidade e ambivalência quando se trata de assuntos meramente monetários enquanto seria de sua disposição um comportamento eticamente orientado em outras situações.

A arrogância blasé de nossas classes que têm dinheiro é somente um reflexo psicológico desse fato [o processo de subordinação crescente dos valores qualitativos pelos valores quantitativos, o que faz com que o indivíduo não reaja às diferenças e propriedades específicas dos objetos com uma graduação correspondente da sensação, mas sim senti-las de maneira nivelada e, por isso, com uma coloração abafada sem amplitudes significantes de contrastes]. Eis por que elas têm, agora, um instrumento que permite, apesar de sua indiferença uniforme, comprar o mais variado e o mais especial.

Alguns anos depois, Simmel escreve o segundo texto que apresentei, A metrópole e a vida mental. Ao analisar os indivíduos imersos em metrópoles (sempre em comparação com a vida no campo), identifica que são mentes cercadas de estímulos heterogêneos. Estes constantes e intensos estímulos nervosos, a longo prazo, geram um gasto de energia tão grande para os indivíduos das metrópoles que uma forma de autopreservação é a indiferença e eventualmente, a incapacidade a reagir às novas sensações com a energia apropriada. A estimulação neural é intensa por tanto tempo até que os nervos cessam de reagir. Outra forma de proteção encontrada por este indivíduos, é a reserva para que sejam poupados de maior exposição à novos estímulos e esta tende a uma leve aversão ou repulsa, que é mútua entre os agentes sociais das metrópoles.

Dando certa continuidade a seu conceito de arrogância blasé, Simmel apresenta a atitude blasé. Também guiada pelo fator econômico da incapacidade de discriminar por outra característica senão a econômica, a atitude blasé é própria do individuo que não consegue distinguir um estímulo de outro. A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção das coisas, tudo aparece em tonalidades de cinza.

“Não podemos aprofundar um pensamento no momento que logo recebemos um novo estímulo diferente.”

O autor conclui que a atitude blasé é psicologicamente uma recusa a reagir aos diversos estímulos proporcionados pela metrópole, que encontra na reserva uma forma de acomodar-se, e economicamente, uma incapacidade do poder de discriminar uma vez que todos objetos e relações são nivelados ou intermediados pelo dinheiro. A reserva também é qualificada como uma certa repulsa ao outro, que em momento de contato, pode transformar-se em ódio. Assim, o indivíduo manteria quase que por sobrevivência a sua liberdade pessoal.

Quando o círculo que nos rodeia é pequeno, ele é mais controlador das atitudes e restringe as liberdades individuais. Na cidade, o círculo é amplo e o esperado da liberdade obtida é a solidão.

Claramente podemos atualizar este conceito para nossas relações. Entendo como um modo válido de pensar a subjetividade urbana atual. Mas, se Simmel aponta a atitude blasé como um mecanismo natural, o que proponho é um passo além da inocência e até dialogar com o último texto publicado aqui. Esta reserva aponta para uma incapacidade de lidar com a alteridade? Qual a nossa atividade neste processo de parece ser tão passivo?

Quando falamos do apagamento das características qualitativas em detrimento das quantitativas no primeiro texto, vem a minha mente quadros do expressionismo alemão que mostram o ser humano em sua crise existencial máxima. Já que não operamos mais com diferenças e sim com o que há de comum, o valor econômico, como ser notado? Como se destacar da multidão? É difícil fazer valer a personalidade na cidade grande e a solução está no que Simmel denomina distinção social.

Arte à direita por Ben Shahn em On Nonconformity

A distinção social ou o destaque na multidão, para Simmel, opera em duas chaves: por um lado, você pode se distinguir por sua especialização em uma área do conhecimento, por outro pelo seu comportamento.

A especialização do conhecimento é feita pela educação. Parece bastante razoável pensar nesta forma de distinção. A minha qualidade como indivíduo é devolvida quando sou reconhecido em certa área. Meu salário se torna maior, e ganho destaque na multidão. Assim, mesmo que economicamente, a distinção também é social.

Pelo seu comportamento, que pode tender ao extravagante para se destacar, uma das possibilidades de expressão é a moda. Expressar sua individualidade encontrando o seu estilo parece algo completamente cabível nos tempos atuais. Tenho, graças a meu estilo único, a possibilidade de ser notada no meu círculo social. Ou, quem sabe, expandir meus horizontes e ganhar novos seguidores ao me destacar. Porém, este mecanismo de distinção social também pode ser bastante problemático.

Mais do que se destacar, o indivíduo busca satisfazer a necessidade de distinção de classes sociais. Quando classes mais baixas se aproximam da moda das classes superiores, estas abandonam a moda anterior e seguem para outra moda.

Logo que as classes inferiores começam a apropriar-se da moda, ultrapassando assim a fronteira instituída pelas superiores e rompendo, destas, a homogeneidade da co-pertença assim simbolizada, as classes superiores desviam-se para outra, graças à qual de novo se diferenciam das grandes massas, e na qual o jogo mais uma vez se inicia.

Não precisa de muito mais para deixar claro o processo ilusório de distinção que é apresentado. É claro que nós, como indivíduos, sempre estamos nos expressando de alguma forma, seja com o que escrevemos, com o que falamos, inclusive com o que vestimos ou quem seguimos nas redes sociais. E também acho válido apontar que expressões simbólicas não necessariamente são ilusórias. Acontece que a reflexão que proponho aqui é de entender até que ponto a distinção econômica diz mais sobre quem somos ou por quê ficamos incomodados a nos deparar com a popularização de algo que tínhamos como chave para compor nossa individualidade.

Talvez você tenha notado que adicionei mais um texto (Filosofia da moda e outros escritos) à discussão mas me justifico dizendo que são pontos essenciais para encerrar este pensamento.

Por fim, parece-me que além de ainda caber a discussão proposta por Simmel no início do século passado, devemos recorrer a estes textos para reflexões de como nos comportamos frente à multidões, como lidamos com o valor monetário atrelado a todas relações de trocas e como nos buscamos nossa identidade neste mundo que nos cerca.

Arte de Andjelka Djukic

Bibliografia.

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. G (org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

______. O dinheiro na cultura moderna. In: SOUZA, J; ÖELZE, Berthold. Simmel e a modernidade. Brasília: UnB, 1998.

______. Filosofia da moda e outros escritos. Edições textos & Grafia. Tradução: Artur Mourão. Lisboa, fevereiro de 2008.

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Giulia Tessitore

oficialmente, estudante de cinema. realmente, estudando arte, filosofia e política.