Cyberpunk e o apagamento da população amarela

Giulia Nakayama
11 min readAug 31, 2018

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Como o cyberpunk produzido no ocidente não é tão legal quanto você pensa.

De acordo com a wikipedia:

Cyberpunk (de Cyber(netic) + punk) ou Cibernarquismo[1] é um subgênero de ficção científica, conhecido por seu enfoque de “Alta tecnologia e baixa qualidade de vida” (“High tech, Low life”) e toma seu nome da combinação de cibernética e punk.[2]Mescla ciência avançada, como as tecnologias de informação e a cibernética junto com algum grau de desintegração ou mudança radical na ordem social.[3] De acordo com Lawrence Person: “Os personagens do cyberpunk clássico são seres marginalizados, distanciados, solitários, que vivem à margem da sociedade, geralmente em futuros distópicos onde a vida diária é impactada pela rápida mudança tecnológica, uma atmosfera de informação computadorizada ambígua e a modificação invasiva do corpo humano.”

As primeiras obras cyberpunk que temos registro no ocidente é o famigerado filme “Blade Runner” de junho de 1982 e o romance “Neuromancer” do americano William Gibson datado de 1984 (propositalmente relacionado a obra de mesmo nome de George Orwell). No Japão temos a primeira publicação do mangá Akira em dezembro de 1982.

Sei que ao longo dos anos 80 e 90 houveram diversas (e maravilhosas, diga-se de passagem) obras cyberpunk lançadas no Japão, mas o que quero tratar no texto a seguir é sobre a apropriação do cenário japonês (ou asiático) e o apagamento da população amarela nas obras produzidas no ocidente.

Cyberpunk nasceu como uma exploração das ansiedades tardias da era da Guerra Fria: o papel da tecnologia em nossas vidas, o lento colapso do ambiente, o consumismo desenfreado e a perda da potência econômica americana. Na época, o Japão era visto como a próxima superpotência econômica e um dos cenários apocalípticos para os Estados Unidos era a “compra” de seu país pelas gigantes Zaibatsus* (*grandes conglomerados de indústrias e empresas japonesas).

Para contextualizar melhor, faremos um breve resumo sobre a economia do Japão pós Segunda Guerra Mundial.

Em 1945, após ser derrotado na Segunda Guerra Mundial, o Japão assinou sua rendição e permaneceu sob o domínio norte-americano até 1952, quando recuperou sua autonomia.

Com os Estados Unidos no comando, medidas como a realização da reforma agrária no país foram tomadas. Assim o Japão deixou para trás seu passado feudal. O Exército nacional foi desfeito e transformado numa força unicamente para autodefesa, cuja interferência externa estava proibida pela nova constituição do país.

Considerado uma espécie de colaborador dos EUA, o governo japonês recebeu um alto investimento econômico possibilitando a modernização de sua indústria. Por seu pequeno território com poucos recursos naturais a serem explorados, a criação de uma indústria de base no país era praticamente impossível, portanto a indústria japonesa foi direcionada (quase que) unicamente a produção de tecnologia, seja maquinário ou softwares.

Entre 1950 e 1953, durante a Guerra da Coreia e depois em 1960 a 1975, durante a Guerra do Vietnã, a indústria japonesa foi uma das principais fornecedoras de armas para os Estados Unidos.

Unindo a mão de obra barata que o país possuía, ao aumento de investimentos na pesquisa tecnológica e, ainda, na educação em massa. O Japão cresceu proporcionalmente mais do que qualquer outra nação no período de 1947 a 1970.

A economia japonesa cresceu 9,7% entre 1957 e 1950, enquanto os Estados Unidos evoluíram 2,4% no mesmo período. Entre 1966 e 1970 o Japão cresceu 14,6%, mais do que França (6%) , Estados Unidos (3,1%), Reino Unido (2,6%) e Alemanha (5,2%).

Como já dito anteriormente, era a indústria tecnológica a principal indutora do crescimento do Japão na era moderna. O país estava na ponta da pesquisa da robótica, da nanotecnologia, eletrônica e informática. Mesmo dependente da exportação de matéria prima, a transformação dos produtos pelo suporte tecnológico garantiu ao Japão o destacado crescimento econômico.

(fonte: https://www.todamateria.com.br/economia-do-japao/)

Com base em todos esses dados económicos, fica simples traçar os porquês desse medo imaginário da dominação do ocidente pelo Japão (para não usar o termo “oriente”). Agora, porque se apropriar do país e excluir seus cidadãos?

Em uma entrevista Gibson disse: Modern Japan simply was cyberpunk. The Japanese themselves knew it and delighted in it. I remember my first glimpse of Shibuya, when one of the young Tokyo journalists who had taken me there, his face drenched with the light of a thousand media-suns — all that towering, animated crawl of commercial information — said, “You see? You see? It is Blade Runner town.” And it was. It so evidently was.

“O Japão moderno era simplesmente cybeypunk. Os próprios japoneses sabiam e se deleitavam com isso. Lembro a primeira impressão que tive de Shibuya, quando um jovem jornalista de Tokyo me levou lá, com o rosto iluminado pela luz de mil sóis da mídia — todo aquele rastro animado de informações comerciais — disse: Você vê? Entende? É a cidade de Blade Runner. E foi. E tão evidentemente foi.” (tradução livre).

A partir desse trecho, podemos supor que Gibson e Ridley Scott nunca criaram um cenário cyberpunk, apenas se apropriaram de algo que já estava lá apenas esperando por eles.

Em sua pesquisa “How Information Technology Has (Not) Changed Feminism and Japanism: Cyberpunk in the Japanese Context” (Como a tecnologia da informação (não) mudou o feminismo e “japonismo”: Cyberpunk no contexto japonês) Kumiko Sato coloca o seguinte trecho: An editor of Japanese science fiction anthology once expressed that post-Fordist Americans felt that “the Japanese people are already living in a version of the future” (Apostolou 11).

“Um editor de antologia da ficção cientifica japonesa uma vez expressou que os americanos da época pós-ford achavam que o povo japonês já estava vivendo em uma versão de futuro (Apostolou 11)”. (tradução livre).

Ao contrário do que a citação de Gibson e o trecho retirado da pesquisa de Kumiko Sato dão a entender, a autora coloca que essa (re) descoberta do Japão pelo ocidente mudou a forma como os Japoneses viam seu próprio país. Isso porque o cyberpunk americano permitiu ao Japão encontrar-se no futuro do ocidente tendo-o superado e dominado graças a seu progresso tecnológico.

Isso resulta em duas visões opostas: uma, de que o Japão sempre soube que ele era cyberpunk e outra, de que o Japão abraçou a ideia de ser cyberpunk como forma de existir no ocidente. E para aqueles que não sabem, o Japão é um país que a anos vem tomando diversas medidas político-culturais para se ocidentalizar.

Essa ocidentalização do país também vem com dois diferentes lados sociológicos: o dos japoneses que moram no Japão e querem se ocidentalizar para serem aceitos numa escala global; e dos Japoneses que imigraram e seus descendentes naturalizados em outras terras, que lutam para não perderem sua identidade e herança cultural.

A diferença principal entre ambos os grupos é que um se encontra numa posição de maioria em um país onde os cidadãos são relativamente homogêneos, e o outro como minoria (que assim como todas as minorias) marginalizada.

Por isso que ouvimos coisas como quando Mas Sanders, o diretor da adaptação americana de “Ghost in the Shell”, diz que passou três semanas divulgando o filme em Paris, na Coreia e no Japão, e ninguém o questionou sobre a questão do whitewashing. Fazendo parecer que a polêmica veio apenas dos Estados Unidos.

Assim como o Brasil, os Estados Unidos possuem grande concentração de imigrantes japoneses. A questão da importância da representatividade dos japoneses é diferente para aqueles que vivem no país e para aqueles que imigraram. No Japão é comum vermos japoneses estrelando novelas, comerciais, desfiles de moda e na mídia em geral. Lá eles são maioria, então um filme a mais ou um filme a menos com whitewashing não faz uma diferença significativa, além do mais para eles é um orgulho ver uma produção originalmente japonesa sendo tão bem aceita a abraçada pelo ocidente. Porém em locais majoritariamente brancos onde pessoas de cor são sempre apagadas, se identificar em um personagem de filme é extremamente importante.

Além do mais, apesar de se basear na ameaça econômica que o Japão representava nos anos 80 a narrativa cyberpunk segue de uma forma completamente techno-orientalista.

Orientalismo é um termo utilizado para definir estudos orientais, ou seja, o estudo das civilizações orientais atuais ou históricas a partir de visões eurocêntricas. Dessa forma, determinados aspectos da cultura oriental acabaram tornando-se estereótipos.

Edward Said, um crítico literário norte-americano, desmistifica em seu livro “Orientalismo, o oriente como invenção do ocidente” a visão que o ocidente tem do oriente como um local misterioso e prodigioso. Ele também coloca que tal representação dos povos orientais foi importante para a própria definição da identidade ocidental na legitimação de seus interesses colonialistas.

Um usuário do reddit, em um tópico sobre cyberpunk, colocou o termo Tecno-orientalismo como o retrato do oriente pela perspectiva de escritores e diretores brancos como um futuro tecnológico distópico criado com base no cenário econômico dos anos 80.

Vale lembrar que enquanto a Ásia como continente era um tema alvo de diversos estudos orientalistas, seu povo que havia migrado para o ocidente era rejeitado através de inúmeras políticas anti imigrantes amarelos.

Nos Estados Unidos, o sentimento anti-japones teve seu inicio bem antes da Segunda Guerra Mundial. O preconceito contra os imigrantes asiáticos começou a ser construído logo após a chegada dos trabalhadores chineses no país em meados do século 19, já antecipando o que os japoneses viriam a enfrentar nos anos 40 (século 20).

Embora os imigrantes chineses tenham sido recrutados em massa para trabalhar em indústrias de mineração e ferrovia, devido a mão de obra barata, os brancos passaram a ver tais imigrantes como uma fonte de competição econômica e como uma ameaça à pureza racial. Em 1870 foi instaurado o “Naturalization Act” (Ato de Naturalização, em tradução livre), tal ato limitava a naturalização e o direito a cidadania de imigrantes africanos e seus descendentes, porém excluía bruscamente todos aqueles de origem asiática. Em 1882 o sentimento anti-chineses cresceu e foi colocado em prática o “Chinese Exclusion Act” (Ato de exclusão chinês, em tradução livre) banindo por 10 anos a imigração de chineses para os Estados Unidos.

(fonte: https://www.us-immigration.com/asian-american-history-timeline/)

Citando um outro texto meu: Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939–1945), o Japão se aliou às Potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) dando início a um segundo momento do “Perigo Amarelo”. O japonês “Súdito do Eixo” é caracterizado como perverso, extremamente inteligente, astuto e eficiente. Uma releitura do vilão “Doutor Fu Manchu” criado por Arthur Sarsfield Ward (Sax Rohmer). Fu Manchu antes representava a sinofobia a respeito dos chineses nos Estados Unidos, mas no cenário da Segunda Guerra Mundial os japoneses assumiram o papel.

(texto completo: https://medium.com/@giunakayama/porque-eu-como-descendente-de-japoneses-e-como-pessoa-n%C3%A3o-posso-aceitar-a-mudan%C3%A7a-de-nome-da-5724bdec98a2)

Entre as muitas formas que o ocidente tem de imaginar a Ásia (como continente), uma das principais é através da imagem de robôs. Essa imagem que temos no ocidente do Japão como um país habitado e constantemente salvo por robôs gigantes surgiu em 1948 com a estreia do mangá “Nuclear Power Android” a primeira obra a possuir um mecha pilotado pelo protagonista. Desde então, inúmeras obras do gênero surgiram no país e eventualmente foram exportadas, como o Godzilla que ficou mundialmente conhecido.

Por outro lado, temos os asiáticos retratados como a minoria modelo, constantemente trabalhando de cabeça baixa. Os homens asiáticos são ou completamente emasculados, ou colocados como figurões Yakuza (que possuem capangas emasculados); e as mulheres são as eternas boas donas de casa submissas aos seus maridos, ou as misteriosas e promíscuas gueixas submissas aos seus senhores.

No início dessa pesquisa me dispus a ler novamente a obra “Neuromancer” e posso dizer que os únicos personagens asiáticos que identifiquei foram: Linda Lee e os Yakuzas (corrijam-me se eu estiver errada). Linda aparece brevemente na história e é descrita como o que seria a típica “garota ao lado” num futuro distópico (sei de todo o desenrolar da história dela, mas vamos focar agora apenas no primeiro livro). Já os Yakuzas por sua vez são simplesmente descritos como… Yakuzas! Nem nomes próprios eles tem, são apenas essa espécie de força onipresente que assume forma na imagem de um japonês tatuado (bem genericamente falando). Ou seja, de um lado temos a figura da mulher asiática, quieta, calma, idealizada como a tímida e meiga garota ideal; e do outro lado a imagem do mafioso. Ambos completamente fetichizados e estereotipados pelo olhar ocidental.

Agora, como pode-se salvar um país, com uma população quieta e submissa, e que está sob a constante ameaça de monstros gigantes? Colocando brancos no lugar!

Ouso dizer que a falta de protagonistas amarelos em produções ocidentais que se passam no Japão é pela crença (já enraizada culturalmente) de que os povos asiáticos jamais teriam força para salvarem a si mesmos, ou caso tentassem e falhassem, recorreriam imediatamente ao suicídio. Já os brancos por sua vez são destemidos, corajosos e não tem medo de falhar inúmeras vezes até conquistar seus objetivos.

Podemos ver isso em filmes como “O Último Samurai” (2002), que foi um enorme sucesso de bilheteria no Japão, e mostra a história de um oficial branco do exército (interpretado por Tom Cruise) que enfrenta adversidades ligadas ao preconceito para ensinar o exército japonês como lutar com armas de fogo. Ou no mais recente “A Grande Muralha” (2017) onde Matt Damon (branco) e Pedro Pascal (latino) interpretam dois mercenários que acabam sendo fundamentais na defesa da muralha da China.

Voltando para o gênero cyberpunk, temos “Círculo de Fogo” (2013) tentou ser mais ousado a colocar duas pessoas de cor em papéis de destaque, Idris Elba (negro) como o general da operação responsável por proteger o mundo de monstros gigantes, e Rinko Kikuchi (amarela) filha adotiva de Idris Elba, que é uma exímia lutadora e estrategista, porém que não consegue ir a campo devido a um trauma de infância ligado aos Kaijus (como os monstros gigantes são chamados no filme). Como ela consegue superar o trauma e criar coragem para enfrentar os monstros? Com a ajuda do protagonista branco.

Claro que nem precisamos falar do polêmico remake americano de “Ghost in the Shell” cuja boa parte do elenco, incluindo a personagem principal, é constituído por atores brancos. Na tentativa amenizar o embranquecimento da obra, a personagem principal que antes se chamava “Motoko Kusanagi” passou a ser chamada apenas de “Major” quando vivida pela atriz Scarlett Johansson.

“Blade Runner 2049” (2017) se passa no que seria um futuro multicultural onde a globalização alcançou seu estágio final. Ao longo de todo o filme vemos inúmeros neos, propagandas e sinalizações em caracteres chineses, japoneses e coreanos. O problema é que ao longo do filme o único momento em que vemos um rosto amarelo é de uma manicure cuja câmera foca por meio segundo (para aqueles que não sabem, a profissão de manicure faz parte dos estigmas e estereótipos de asiáticos nos Estados Unidos). Uma das coisas que mais me intriga é que o filme aborda a questão de racismo ao levantar a discussão dos replicantes que ao longo da trama são sempre vistos como menores e inferiores simplesmente por serem replicantes. Meio hipócrita, não?

No “Blade Runner” original de 1982 temos também todos os personagens principais como pessoas brancas, porém existe uma presença relativamente maior de asiáticos do que na versão mais atual. Claro que de forma extremamente estereotipada, mas vejam só! Alguns deles até possuem falas!

Resumindo, em minha opinião, o gênero cyberpunk traz discussões muito importantes e interessantes sobre como lidamos com a tecnologia, como o capitalismo vai eventualmente destruir a todos nós, como se não possuirmos um estado forte e com foco social seremos explorados vampirescamente pelas grandes corporações, etc. Mas o gênero como é abordado no ocidente é excludente, para não dizer racista. Existem pessoas que até hoje se intitulam cybepunks pois, como o próprio nome insinua, querem lutar contra o sistema através da tecnologia, mas como eu uma pessoa de cor posso me intitular cyberpunk e abraçar essa ideia se a existência de pessoas como eu é negada nesse futuro?

Por isso, vamos abraçar, valorizar e olhar para o cyberpunk como algo que traz coisas positivas mas ainda não está livre de problematizações. Consuma obras que não foram produzidas por ocidentais e saiba identificar tais questões.

Esse texto foi escrito por mim e por mais que eu tente, é difícil não escrever sob minha ótica de itallo-nipo-brasileira. Meu local de fala é amarelo e sendo ainda mais específica ele é japonês. Essa discussão pode e deve ser levada para caminhos que englobam outros grupos não-brancos, por isso fica aqui minha recomendação para que também pesquisem sobre “Afro-futurismo” :)

Seja cyberpunk, não seja cyberbranco.

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Outras fontes e artigos interessantes sobre o tema:

https://www.bustle.com/p/altered-carbons-showrunner-responds-to-whitewashing-concerns-with-a-thoughtful-analysis-8098041

http://www.slashfilm.com/blade-runner-2049-asian-culture/

https://www.vice.com/en_id/article/59dxmb/cyberpunk-cities-fetishize-asian-culture-but-have-no-asians

https://www.jstor.org/stable/40247417?read-now=1&loggedin=true&seq=5#page_scan_tab_contents

https://www.reddit.com/r/Cyberpunk/comments/2znzv0/why_is_cyberpunk_so_heavily_influenced_by/

https://www.jstor.org/stable/40247417?read-now=1&loggedin=true&seq=1#page_scan_tab_contents

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