Tecnologias para Paz de Espírito vs. Tecnologias para Impacto Social

Guilherme Lichand
8 min readAug 24, 2018

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Wearable technologies — as chamadas tecnologias vestíveis — estão em alta. Sensores embutidos em objetos cotidianos (de cintas peitorais a relógios e pulseiras) capturam sinais vitais e indicadores-chave (do número de passos diários a frequência cardíaca) em tempo real, tornando-os imediatamente acessíveis no seu smartphone.

Já pensou o que essas tecnologias poderiam fazer pelo desenvolvimento infantil?

Wearables para crianças

Uma área em que wearables têm produzido hype particularmente é a de monitoramento de bebês e da jornada do desenvolvimento infantil. Nessas aplicações, os wearables permitem acompanhar sinais vitais e marcadores de habilidades cognitivas e não-cognitivas, desde o padrão de respiração da criança até o número de palavras faladas.

Alguns exemplos de como isso funciona:

Owlet, uma meia inteligente (ou smart sock)
A Owlet envia informações em tempo real sobre batimento cardíaco e saturação do bebê
Mimo, um macacão inteligente (ou smart onesie), que envia informações em tempo real sobre a posição em que o bebê está dormindo e seu padrão de respiração
Starling, um contador de palavras faladas
O Starling envia informações sobre número de palavras faladas pela criança (análogo à contagem de passos diários, que seu smartphone já monitora diariamente)

Que impacto? E para quem?

Wearables para crianças vem rapidamente ganhando mercado e popularidade. Isso quer dizer que eles resolvem alguma dor fundamental de uma classe de consumidores. Mas que dor? E para que consumidores?

Primeiro, é preciso reconhecer que essas tecnologias são bastante caras. Na Amazon, um monitor da respiração de bebês não sai por menos de US$ 89.99; uma Owlet não sai por menos de US$ 299.

Sendo assim, seus consumidores são famílias ricas, quase sempre em países desenvolvidos. Mas quais os benefícios dessas tecnologias para crianças nascidas em famílias desse perfil?

Exceto no caso de condições de saúde bastante específicas — que impliquem riscos compatíveis com a necessidade de monitoramento contínuo de determinados marcadores ou sinais vitais — , é seguro dizer que essas crianças se desenvolveriam igualmente bem mesmo que essas tecnologias não existissem. Afinal, todos nós fomos criados sem elas!

Nascer na família certa — com as condições para permitir que essas crianças possam acessar as melhores oportunidades — importa muito mais. Minha impressão é que a literatura sobre a importância da estimulação precoce para o desenvolvimento infantil (resumida no ótimo livro do Paul Tough, How Children Succeed) tem sido mal interpretada.

Para mim, a principal conclusão que emerge desses estudos é que circunstâncias inicias importam muito. Famílias ricas estimulam muito mais seus filhos durante a infância, e transmitem comportamentos importantes para o sucesso futuro. O famoso teste do Marshmallow, que associa capacidade de resistir a impulsos de gratificação imediata a sucesso futuro, foi recentemente refutado por um novo estudo que aponta que, controlando para o status sócio-econômico domiciliar, o desempenho no teste não tem nenhum poder preditivo sobre resultados educacionais futuros das crianças.

Isso não quer dizer que habilidades não-cognitivas, como habilidade de resistir a impulsos, não importem. Desenvolver essas capacidades em crianças vindas de condições de desvantagem pode mudar sua trajetória. Meu ponto é que, para crianças vindas de famílias ricas, essas habilidades provavelmente já estão sendo transmitidas e desenvolvidas, sem que esses pais precisem fazer algo fora do que já fariam ao basicamente replicar os comportamentos que seus pais tiveram com eles.

Em contraste, o que as famílias ricas parecem ter inferido a partir desses estudos é que precisavam fazer ainda mais. Uma discussão em alta nos Estados Unidos é que pais que tentam controlar de forma tão estrita o desenvolvimento de seus filhos tolhem sua liberdade de experimentar, e podem estar produzindo indivíduos sem resiliência e despreparados para as frustações inevitáveis da vida adulta.

De fato, wearable technologies para crianças nos países ricos são, para mim, o melhor exemplo de tecnologias para paz de espírito: a dor que elas resolvem não tem a ver com desenvolvimento infantil, mas, sim, com pais ansiosos.

Consumidor de monitor de respiração da criança satisfeito com a “paz de espírito” que “não tem preço”
Tirando o alarme falso, esses pais agora podem dormir sem preocupações

Não só de wearables vivem tecnologias para paz de espírito. Apps com modelo de assinatura para pais preocupados com o que os filhos comem diariamente na merenda também não têm impacto sobre desenvolvimento infantil (embora contribuam para reduzir a ansiedade de seus pais).

É importante dizer: é legítimo que pais queiram consumir essas informações, e que empresas desenvolvam serviços para atender a essa demanda.

Mas eu costumo me perguntar: qual poderiam ser os impactos dessas tecnologias se conseguíssemos colocá-las à disposição daquelas famílias que mais poderiam se beneficiar delas?

Para colocar em perspectiva, você sabe qual é a wearable technology mais disseminada no Malawi?

Fita métrica que ilustra, para cada idade da criança, se a circunferência do braço — um indicador importante de desnutrição crônica — está adequada para o nível de desenvolvimento esperado da criança

As consequências de não termos a tecnologia certa para quem mais precisa são dramáticas, por dois motivos. Primeiro, porque as principais causas de mortalidade infantil no mundo ainda são pneumonia e diarréia, altamente tratáveis desde que identificadas a tempo e tratadas adequadamente. Sem as informações necessárias para ativar comportamentos das famílias e dos profissionais de saúde, o progresso para salvar a vida dessas crianças tem sido lento e inaceitável: mais de 2 mil crianças ainda morrem diariamente de causas relacionadas a diarréia.

Segundo, porque ter que desenhar políticas públicas sem dados leva a oferta de serviços que não representam as reais necessidades do cidadão. Isso é tanto mais dramático quanto mais pobre é o país, já que nesses contextos é maior a proporção da população que depende fundamentalmente de serviços públicos para dimensões essenciais de sua vida.

Wearables para impacto social

Em contraste, tecnologias para impacto social são aquelas capazes de melhorar a vida daqueles que mais precisam.

É possível fazer isso com wearable technologies? Se fosse fácil, já estaria resolvido…

% de adultos que possuem smartphones, por país

Com tão baixa penetração de smartphones nos países pobres, como colocar wearables a serviço do desenvolvimento infantil? Num país como o Malawi, cerca de 85% dos domicílios estão em regiões rurais e muitas vezes remotas, e somente 4% deles têm acesso a energia elétrica!

Dito isto, o Malawi possui uma infraestrutura muito especial que pode tornar essa aplicação de wearables possível: o maior corredor humanitário de drones do mundo!

A ideia é que os drones — que já estão sendo utilizados para mapear terreno e entregar ajuda humanitária e resultados de teste de HIV — possam coletar os dados que os smartphones coletariam de outra forma.

Ainda que os pais não recebam as informações em tempo real, esse talvez seja o elemento menos importante dentre aqueles que esses dados podem proporcionar. A seguir, enumero o que coletar esses dados de forma centralizada permitiria implementar:

  1. Entender, em alta frequência, as jornadas de desenvolvimento dessas crianças e seus pontos de inflexão: quais os momentos críticos para intervir? Quais os impactos de aleitamento materno exclusivo? De higiene? De estimulação? De violência contra a criança?
  2. Criar sistemas de detecção de doenças e alerta precoce: utilização de machine learning e abordagens epidemiológicas para antecipar condições que exigem tratamento e ativar comportamentos de familiares e de profissionais de saúde, através das tecnologias certas para chegar àqueles que mais precisam.

3. Avaliação de programas governamentais e da UNICEF: em alta frequência, e baseados em marcadores e sinais vitais, ao invés de aproximadamente a cada 5 anos, quando pesquisas face-a-face caras e infrequentes documentam percepções dos pais sobre desenvolvimento das crianças.

4. Inteligência Artificial: para recomendar quais serviços deveriam ser acessados por crianças em condições de vulnerabilidade, quando do pagamento de transferências governamentais ou em programas de visitação domiciliar, não mais com base no melhor palpite do assistente social ou do visitador, mas, sim, informado pela previsão do algoritmo sobre os serviços de maior impacto — a partir das leituras dos wearables — para as crianças de cada perfil.

Outras tecnologias para impacto social

A discussão anterior ilustra uma máxima importante: para promover impacto social, precisamos da tecnologia certa, mais do que tecnologia sofisticada.

Muitos dos problemas mais complexos para melhorar a vida daqueles que mais precisam têm a ver com a última milha das políticas públicas: comportamentos difíceis de mudar que, em muitas situações, geram círculos viciosos e armadilhas de pobreza.

Diante disso, tecnologias capazes de mudar comportamentos e formar novos hábitos são, ao meu ver, aquelas com maior potencial de produzir impacto social.

Uma das tecnologias emergentes com maior potencial para fazer isso são os Nudgebots. Se você nunca ouviu falar disso, nesse artigo explico o que são nudgebots e porque são diferentes dos chatbots que você provavelmente conhece.

Para explicar como nudgebots podem promover impacto social, uso o exemplo do Eduq+, Nudgebot da MGov para engajamento na Educação.

Nudgebot de engajamento da Educação da MGov

O Eduq+ envia duas mensagens por semana, seguindo uma estrutura de comunicação para formação de hábito validada pela MGov. Começa com um fato motivador, seguido por sugestões de atividade simples para o participante fazer sozinho, com a sua classe ou junto com sua família. Interatividade e reforço são combinados para maximizar o potencial de formação de hábito. A cada 2 semanas, o Eduq+ trata de um novo tema.

Abaixo, os comportamentos que os Eduq+ ajuda a modificar:

  • Resistência de professores à adoção de tecnologias e melhores práticas;
  • Falta de engajamento dos pais na vida escolar dos filhos;
  • Crenças dos alunos de que o aprendizado é resultado do talento, e não do esforço.

O Eduq+ nunca é cobrado do usuário final; mais do que isso, todas as interações com o Nudgebot são gratuitas. Compare o Eduq+ com apps contratados por famílias de alta renda para saber o que está acontecendo com seu filho na escola… fica aparente a distinção paz de espírito vs. impacto social.

O Eduq+ têm impactos comprovados: estudo da universidade de Stanford com cerca de 20.000 pais do 9o ano do Ensino Fundamental da rede estadual de São Paulo documentou aumento de 15% sobre frequência escolar, melhoria equivalente a um bimestre de aprendizado em testes padronizados, e redução da repetência equivalente a 1/3 da média da rede estadual.

O impacto é tão grande que equivale a melhoria projetada do indicador-chave para as Secretarias de Educação (o IDEB) em apenas 6 meses de comunicação equivalente àquela tipicamente planejada para 4 ou 5 anos. Apenas em função da menor repetência, o Eduq+ pode economizar um montante enorme da Secretaria: R$ 12,44 por Real investido no programa.

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Guilherme Lichand

One of the top under-35 Brazilian innovators, according to MIT Technology Review, and social innovation specialist at the WEF Expert Network.