Sobre a palavra de ordem que ressoa dos bloqueios junto com o Hino Nacional

Hugo Souza
5 min readMay 27, 2018

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Piquete de Seropédica (Foto: Marlene Bergamo/Folhapress).

Ontem, sábado, horas depois de escrever o artigo “Se é greve ou se é locaute?”, percorri no início da noite 40 quilômetros da Via Dutra, num trecho nevrálgico para o transporte de cargas no eixo Rio-São Paulo, que é o chamado RIP (Resende, Itatiaia e Porto Real), pólo industrial que já chegou a ser incensado como o “novo ABC”. Michel Temer, aliás, esteve em Porto Real na quarta-feira, na fábrica da PSA, que produz modelos da Peugeot e da Citroën. Esteve lá para entregar carros a conselhos tutelares. Sequer mencionou a greve de caminhoneiros, que já estava em seu terceiro dia de bloqueios nas estradas de norte a sul do país.

Passei por três pontos de grande concentração de caminhoneiros “paradistas”, e parei em um deles, o maior, com cerca de 150 caminhões espremidos nos acostamentos e na grande área de um posto da rede Olá. A mim, que acabara de escrever sobre os “pleitos difusos” da categoria, causou surpresa a quantidade de vezes que a palavra de ordem “Intervenção Militar Já!” aparece escrita com pasta de dente nos parabrisas e com tinta preta em enormes lonas cobrindo as carrocerias. Não vi palavra de ordem progressista, democrática, classista escrita em lugar nenhum. Só mesmo essa, digamos, reivindicação.

Temer se gabou, na sexta, de atender 13 reivindicações do movimento. Talvez alguém se anime a atender 14. Mas “greve é greve”, não é? Pois sim… Se a categoria é “heterogênea” (que diabos, até o indivíduo é, não, amigos psis? Lado feminino, a fera ou a criança que tem dentro de vc, aquele sujeito bipolar, nem vou falar em Dr. Jekyll e Mr. Hyde…), é essa aí a sua linha política pra lá de hegemônica.

Na tarde desse sábado, vi ao vivo imagens feitas de um helicóptero da Globo News do piquete de Seropédica, que ocupa os dois lados da Dutra. No meio, escrito bem grande no asfalto, para quem quiser e para quem não quiser ver: “Intervenção Militar Já!”. No grande piquete da Régis Bittencourt, em São Paulo, também está lá na pista: “Queremos intervenção militar já!”. Talvez a mensagem de um dos maiores piquetes do Rio, onde dizem que a greve começou, bem como de um dos maiores de São Paulo para os helicópteros da radiodifusão nacional, talvez ela tenha saído de intensa “disputa de narrativas” travada num acostamento mui plural.

Na sexta-feira circulou pelos grupos de Whatsapp do RIP (que sigla, não?) a seguinte convocatória: “Caminhada em apoio à greve dos caminhoneiros. Resende 26/05. Às 14 horas. Saída da rodoviária velha. Traga sua bandeira, cornetas e panelas. Intervenção militar já. Divulguem para os grupos”.

Pouco depois de ver na Globo News as imagens de Seropédica, ouvi um buzinaço aqui perto do apartamento dos meus sogros, em Barra Mansa, a cerca de 30 quilômetros do grande piquete no posto Olá. Daqui de cima vi várias picapes com os capôs cobertos com a bandeira do Brasil, pessoas com a camisa da CBF em pé nas carrocerias e umas inscrições com pasta de dente, ou qualquer coisa branca, nos vidros de trás. Estava longe, não consegui ler. Corri pra saber onde a carreata iria parar (no sentido literal, não no figurado, por enquanto).

Parou em frente à Igreja Matriz de Barra Mansa, obstruindo a principal avenida da cidade. Consegui chegar lá a tempo, a tempo de não sei o quê. Mas adivinhem o que estava escrito nos vidros das SUVs, mas também de carros populares, todos sob aplauso da galera nas calçadas, enquanto ecoava pelos vales do interior o Hino Nacional, desde potentes caixas de som instaladas na caçamba de uma Hilux?

Walmir, William e Carlos Augusto e o bloqueio no trevo de Manilha

Há 30 anos, em 1988, acontecia a poucos quilômetros da praça da Matriz de Barra Mansa o episódio que entrou para a história (história?) como o Massacre de Volta Redonda. No dia 9 de novembro daquele ano, durante o governo Sarney, tropas do Exército invadiram a Companhia Siderúrgica Nacional para debelar uma greve operária e a ocupação pelos trabalhadores das instalações da CSN. Três operários morreram e nove ficaram gravemente feridos, massacrados por blindados Cascavel e fuzis automáticos.

Morreram no Massacre de Volta Redonda os operários Walmir Freitas Monteiro, de 27 anos, e William Fernandes Leite, de 22, atingidos por disparos de fuzil, e Carlos Augusto Barroso, 19, com o crânio esmagado. No ano seguinte, em 1989, o monumento erguido em homenagem aos operários mortos na greve seria destruído por um atentado a bomba, ao que tudo indica cometido por grupos, digamos, “heterogêneos”, do Vale do Paraíba fluminense já então saudosos da recém-acabada ditadura militar.

As imagens de caminhoneiros aplaudindo e batendo continência para oficiais do Exército de Caxias, em plena greve dita “contra o neoliberalismo”, é um insulto à memória do sangue proletário derramado na longa e cruenta história da luta de classes no Brasil, assim como a transigência de figuras e setores da esquerda (“Hoje quem move a historia é o bloqueio no trevo de Manilha”) com um movimento que se fortalece ao passo que se fortalece aquela famigerada palavra de ordem.

2018: palavras de ordem da greve dos caminhoneiros.
1988: palavras de ordem da greve na CSN.

É esse movimento que pessoas de esquerda querem apoiar, aproveitar, disputar, ver crescer. É desse movimento, essa velha nova onda, com essa natureza, com um gatilho desses, que pessoas de esquerda acreditam que pode sair algo de bom para o Brasil. De resto, desejo saúde para o “comunista” que quiser aparecer num piquete desses, numa hora dessas (assim, não mais que de repente, sem organização, sem unidade, sem programa para as massas debaixo do braço) para “disputar a categoria com a direita”.

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