Um bicho complicado

Ian Fraser
10 min readSep 11, 2019

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Foto que tirei durante minha visita a Canudos, BA.

Após acompanhar de perto o debate acalorado sobre os desdobramentos do cyberagreste vs. sertãopunk (expostos em um ensaio do Alan de Sá em resposta ao artigo da Lídia Zuin e brilhantemente desenvolvido pelo Paranduba do Andriolli Costa) e toda a questão do lugar de fala e das representatividades regionais, resolvi escrever esse texto.

Contudo, antes de partir para minhas opiniões pessoais, alguns pontos devem ser levantados. O texto é longuíssimo, mas cada etapa é importante para compreender como eu vejo essa conversa toda.

Primeiro ponto: como a pluralidade cabe em uma única medida?

Kobena Mercer, crítico cultural, disse certa vez:

“a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”

Pois bem, dito isso: eita bicho complicado esse ser brasileiro.

As possibilidades identitárias que cabem dentro de nosso território nacional permitem muitos saberes e muitas formas divergentes de vivências. O cidadão que se aventura todo santo dia pelo pantanal será, inevitavelmente, uma pessoa diferente daquela que vive da colheita no sertão. Se o contato que nós temos com a natureza muda, imagina o resto todo.

Agora, se a gente ainda levar em conta os efeitos da modernidade tardia, nós nos deparamos com uma problemática identitária ainda mais complexa e mutável.

“à medida em que áreas diferentes do globo são postas em interconexão umas com as outras, ondas de transformação social atingem virtualmente toda a superfície da terra.”

As palavras de Anthony Giddens sobre a globalização nos conduzem a uma indagação curiosa: uma criança que se diverte assistindo Irmão do Jorel no seu celular enquanto atravessa o rio Amazonas está digerindo da mesma forma aquele pedaço de arte que uma criança que faz o mesmo enquanto está no meio de um engarrafamento na Marginal Tietê?

As conexões são evidentes, mas a digestão artística provavelmente será diferente. Mas, independente do processo de assimilação cultural, ambas crianças são e continuarão sendo brasileiras. E se a gente não der valor a essa unidade, mesmo que seja apenas uma linha em um mapa, fracassamos na formação de uma nação realmente plural.

Em um trabalho intitulado Sociedade da informação: globalização, identidade cultural e conteúdos, Antônio Miranda alega a existência de uma identidade primária:

Há, sem dúvida, uma identidade primária em vigor no país, representada pela língua natural aqui usada e que, no caso do Brasil, é de fato considerada una e unificadora. Os diferentes modos de falar não constituem barreira séria ao entendimento entre a população, e não há, sob esse aspecto, reivindicações identitárias particularizantes.

O autor, logo em seguida, expõe uma identidade secundária, aquela própria de regionalismos e grupos de preferências de diversa natureza. Vale salientar que Ianzinho aqui prefere, assim como Stuart Hall, a ideia e o uso do termo identificação ao invés de identidade, visto que o processo do ser é sempre uma ação incompleta, um processo sempre em construção.

Então, temos a nossa identificação cultural nacional, a visão instituída, que segue de cima para baixo, e temos as nossas identificações culturais regionais, a visão instituinte, que seguem de baixo para cima, e que muitas vezes possuem caráter de resistência. E é nessa identificação mais íntima que nasce a luta pela representatividade.

Segundo ponto: representatividade e seus desdobramentos

Nas nossas divergências regionais há algo que nos conecta: a empatia.

E aprendam essa, amigos, que a lição é importante: a empatia NÃO é se colocar no lugar do outro. Ao ocupar o lugar do outro, você o anula, e acaba glorificando e alimentando o seu próprio ego no processo. A empatia é a habilidade de ver o outro, de reconhecer o outro (suas semelhanças e diferenças), de ver que o outro está em dor, fazer de tudo para entender os motivos que o levaram à dor, se permitir ser sensibilizado e ajudá-lo na medida do possível.

A dor é dele, a luta é nossa.

Um bom exemplo para contextualizar isso são as recentes queimadas que assolam nosso país. Eu, aqui em Salvador, no conforto de meu lar, estou indignado com o fato, puto da vida, mas a minha dor não pode ser comparada às das pessoas que tiveram suas vidas arruinadas pelas chamas.

O que nos leva à representatividade.

A importância da representatividade, ao meu ver, é inquestionável, e por isso não vou me alongar nessa questão. Escutar Chimamanda Adichie no seu já famoso TED Talk, The Danger of a Single Story, é o suficiente para compreender as ramificações e problemáticas culturais que podem surgir ao se digerir apenas uma narrativa e a falta de protagonismo de minorias.

Eu queria me focar em uma problemática inserida no debate da representatividade, uma problemática, ao meu ver, insolúvel, que é:

o que é identidade cultural?

Pois bem, não sou acadêmico, tão pouco uma voz de propriedade no assunto, mas acredito que, além do que já citei antes, quatro coisas podem ser ditas como verdades sobre a identidade cultural:

  • Ela é fundamental para a construção de uma vivência social de um povo.
  • Ela é sólida. (A relação acarajé/ dendê / baiana)
  • Ela é fluida. (Você pode criar um futuro sertãopunk no qual o dendê é o commodity mais valioso do mundo)
  • E ela pode ser analisada de forma micro e ela pode ser analisada de forma macro.

Eu vivi minha vida inteira em Salvador, mas seria inocente de minha parte afirmar que eu conheço na pele todas as realidades de minha cidade. Eu aposto 10 reais de Big-Big que um escritor negro de Porto Alegre faria um trabalho melhor em representar a dor de uma vivência negra em Salvador do que eu. Eu acertaria nos oxentes, no bater um baba, no não como reggae de ninguém, eu acertaria na hora de colocar referência da Timabalada ou de um BaVi, mas na hora de colocar a real experiência de um olhar racista e escroto, ele, provavelmente, faria um trabalho mais competente.

Mas nada me impede de escrever sobre tal vivência.

E nada impede o autor de Porto Alegre de fazer o mesmo.

A representatividade, nesse caso, se divide em vivências de identificação múltiplas, revelando vários lugares de fala possíveis.

Terceiro ponto: relação artista/objeto

Na arte não há impeditivos. Na arte deve haver empatia.

Como artista, no momento em que você se abre para a empatia, aceita o que ela realmente é, você se abre para os vários saberes e os vários seres. Nunca ocupando o lugar do outro, como já foi dito antes, mas se abrindo à possibilidade de compreendê-la também.

Quem tem empatia estuda.

Quem tem empatia respeita.

Caramuru é uma história nossa, de todo e qualquer brasileiro. Por morar em Salvador, eu vou ter mais proximidade física com a narrativa de Diogo Álvares Correia. Posso ir andando até a igreja que ele se casou com Paraguaçu (fica do ladinho de minha casa). Para um escritor de Porto Alegre, a viagem é bem mais longa. Entretanto, a história por trás deste casamento em particular pode ter um valor muito mais profundo para esse escritor fictício do que para mim. O fato de que um português se casou com uma tupinambá pode mexer com um lado porto-alegrense que eu desconheço, sei lá.

O que eu sei é que eu não sou mais dono daquela história do que ele.

Eu sou tanto dono do Nordeste quanto ele.

Odeio a ideia de que um escritor não possa se sentir livre para escrever sobre um local ou sobre uma realidade na qual ele não participa, na qual ele não está necessariamente inserido. O tesão na hora de escrever pode sair de lugares que você jamais imaginou possível, surgindo de sua identificação primária ou identificação secundária.

Por isso, irei sempre defender a bandeira do "escreva sobre o que você quiser".

Maaaaaaaaaas… (esse perigoso mas)

Quarto ponto: o mercado é um problema

Quando a gente sai da arte e entra no campo do mercado, o ser brasileiro fica ainda mais complicado.

Eu falei que na arte não há impeditivos e acredito nisso com toda as fibras do meu ser. Contudo, porém, entretanto, todavia, o mercado é um lugar cheio de impeditivos (paredes sólidas mesmo) e com quase nenhuma empatia.

O mercado é puramente capital.

Capital é poder e poder sem empatia é opressão.

Na minha breve vida como escritor, é evidente o poder na mão do rico.

Na minha breve vida como escritor, é evidente o poder na mão do branco.

Na minha breve vida como escritor, é evidente o poder na mão do homem.

Na minha breve vida como escritor, é evidente o poder na mão do eixo Sul/Sudeste.

Quando a ideia de representatividade ganha tração, muitas vezes não é sobre o autor ou autora em si, mas sim sobre o sistema que eles estão inseridos: um mercado já fechado e com quase nenhuma empatia.

E nesse clube do Bolinha que o mercado tem se mostrado, a única forma que nós, peixes pequenos, encontramos para conquistar o nosso quinhão é usando a singularidade de nossa voz como ferramenta de destaque. Eu sou baiano, posso falar sobre tal coisa com um sotaque baiano, e é, possivelmente, esse sotaque que vai me fazer ser ouvido e/ou relevante. E nessa matemática cruel do mercado, tal qual ele é, tal qual ele ainda se apresenta, a verdade é essa: um escritor do eixo Sul/Sudeste que usa o sotaque baiano para falar sobre coisas baianas vai estar silenciando a gente e se autopromovendo.

Quando a Globo vem pra cá fazer novela, é evidente que ela fomenta um pequeno boom no mercado soteropolitano. Alguns atores locais pegam papeis secundários, o turismo ganha força etc.

Mas o real poder jamais troca de mão.

Não somos protagonistas, somos ferramenta.

Eu vou me repetir aqui: pessoalmente, não tenho nada contra um artista não nordestino usar o Nordeste como cenário de sua história. Putz, pelo contrário, acho massa, mas, adianto logo que, como consumidor nordestino, aí o game entra no modo ultra-fucking-hard e você vai ter que suar mais para me satisfazer.

E digo mais: se você escolheu esse caminho mais difícil, porra, parabéns mesmo. Sem sacanagem. Mas aceite o fato de que seu olhar é estrangeiro. Não tente esconder ou fugir disso. A empatia tá aí também.

Sobre o cyberagreste e a importância de ser do sertãopunk

arte do @vitor_wiedergrun

Em seu ensaio, intitulado, Estão inventando o Nordeste. De novo , Alan de Sá levanta questionamentos interessantes sobre a problemática por trás desse novo subgênero, principalmente quando analisa as possíveis leituras que certos elementos regionais podem ter se não forem bem apresentados (ou representados). É evidente o descontentamento do autor com certas escolhas nas artes apresentadas pelo Vitor Wiedergrun, o ilustrador que viralizou o conceito.

Agora, veja só: eu, Ian, também nordestino, amei as artes do Vitor. Gosto das referências, gosto do traço, gosto de tudo (menos o uso do camelo. O camelo foi um tremendo tiro no pé — aparentemente, o camelo foi uma escolha de um cliente).

A arte é complicada e o ser artista brasileiro é mais complicado ainda.

E é por isso que eu fiz aquele papo todo lá no início. Em um país tão múltiplo, com tantas formas de ser, a gente nunca sabe o que vai nos tocar no fundo de nossa existência. A gente nunca sabe o gatilho que nos leva a descobrir novas paixões e novas formas de orgulho identitário. Lembrando que a formação do EU é sempre interna.

Nunca passei sede, nunca passei fome, mas o meu primeiro romance se passa no sertão seco de uma Bahia fictícia. E os motivos que me levaram a escrever o Sangue é agreste são intrinsecamente conectados com a minha própria identidade, com a minha descoberta como escritor brasileiro. O mesmo não pode ter acontecido com o Victor?

Mas eu entendo o Alan de Sá, só não concordo com o foco da angústia.

O que realmente me incomodou nesse debate todo foi a forma como o artigo da Lídia Zuin foi construído, não os artistas nele retratados. Em um meio de publicação tão grande como o UOL, com alcance e visibilidade, o que faltou ali foi a voz de um nordestino para falar sobre esse gênero, alguém que pudesse realmente contextualizar a vivência artística. Veja só o problemão: ao falar do surgimento de um possível subgênero totalmente focado no sertão, o protagonismo inteiro do artigo foi para uma campinense e um gaúcho. E ao ser publicado em uma plataforma tão poderosa, nós entramos no mundo do mercado, da visibilidade. Ou seja, nós continuamos sendo ferramenta, não protagonistas. E isso não é um ataque pessoal à Lídia Zuin, de forma alguma, não a conheço, não estou julgando seu caráter, apenas expondo a problemática dentro do seu texto: o silenciamento.

No fim, eu realmente vejo que esse deslocamento identitário é cruel para os dois lados (não nativos de uma determinada identificação regional que querem produzir algo sobre tal cultura vs. os nativos de determinada cultura que são silenciados pelo mercado). Ao meu ver, os dois tem o direito de reclamar (ambos são brasileiros) e ambos têm o direito de produzir sua arte, mas no caso de grupos detentores de poder vs. minorias, vamos lembrar que os grupos poderosos vão ter uma vastidão de plataformas potentes para divulgar sua dor, vão continuar detentores do poder, vão ter os bolsos cheios de din-din e o outro não.

Uma balança desequilibrada é uma balança sem empatia.

Existe um paradoxo bizarro nesse debate de identificação cultural que é o seguinte: fronteiras separam, mas sem fronteira não há identificação cultural. É uma dança que a gente tem que aprender a dançar se a gente ainda quiser manter os laços que nos mantém unidos.

Podemos resumir assim: fronteiras? Ok. Muros? Jamais.

E vamos que vamos para o SertãoPunk, proposto pelos nordestinos Alan de Sá, Alec Silva e Gabriele Diniz.

Volto para a empatia, a ferramenta mais forte na mão de qualquer artista, mais forte até que a caneta e o pincel.

A empatia é a sua maior aliada.

Parece uma resposta simples, mas não é. A real empatia não é conquistada por um coração bom e honesto. Ser bonzinho não necessariamente significa ser empático. Para chegar lá, você vai ter que se esforçar, estudar, se entregar, se comprometer, se abdicar dos prazeres do ego e tantos outros sacrifícios.

Quanto mais empático você for com o seu objeto de estudo, maiores são as chances de sua obra tocar todos.

Quanto mais empático você for, maior é a certeza de que sua motivação para escrever é sincera e necessária.

Quanto mais empático você for, maior a chance de você se manter calado e deixar o outro falar.

Pra terminar o texto sendo bem soteropolitano: empatia, porra!

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