Foto: Jaziarki

“Não quero mais viver em meu país, é desgastante demais e sou muito sensível à Polônia”

Na outra lata: Basia, de Jablonna

Ilana Cardial
Na outra lata
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10 min readJun 23, 2020

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Exatamente um ano atrás Basia e eu estávamos juntas em Bologna. Cercadas por arco-íris e muita música, celebrávamos em apoio ao orgulho LGBT com centenas de pessoas em uma das cidades mais liberais e políticas da Itália. De volta à Varsóvia, em meio à pandemia, neste ano minha amiga Basia Grudniewska viu apenas pela internet as movimentações na capital polonesa. Às margens do rio Vístula, manifestantes condenaram as diversas falas homofóbicas e promessas excludentes feitas pelo atual presidente, Andrzej Duda. Depois de uma boa dose de confusão, a eleição presidencial (finalmente) foi remarcada e deve acontecer no próximo domingo, 28 de junho. Direitos humanos, especialmente ligados à comunidade LGBT e agenda feminista, estão no centro do debate eleitoral.

Quando perguntei o que acontecia naquele canto do leste europeu, com seu sarcasmo característico, Basia me garantiu “o melhor do ridículo conteúdo polonês”. “Meu país é uma grande piada sem graça. Nosso governo começou uma campanha homofóbica de novo, mas dessa vez é um tema crucial na corrida eleitoral”, conta. No dia anterior, candidato à reeleição pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (PiS), Andrzej Duda disse durante um comício na cidade de Brzeg que: “Estão tentando nos convencer de que [LGBT] é sobre pessoas, mas é uma ideologia. (…) Meus pais não lutaram [40 anos contra o comunismo] para que uma nova ideologia aparecesse ainda mais destrutiva para pessoas… uma ideologia que quer eliminar todos que não sucubirem a ela”. Basia anda fugindo das notícias, mas trechos do discurso lotaram seu Instagram.

Antes, naquela mesma semana, no décimo dia do mês do Orgulho LGBT, Duda reforçou seus compromissos políticos. Dentre eles, manter o casamento (apenas) como uma relação entre um homem e uma mulher, como infelizmente estabelece a Constituição Polonesa ainda hoje, e continuar a proibir a adoção de crianças por casais homossexuais. As medidas fazem parte de um extenso pacote “pró-família” [The Family Card, em inglês neste link] apresentado pelo candidato que lidera as pesquisas de opinião. Proibir a ‘propagação de ideologia LGBT’ em espaços públicos e designar os pais como únicos responsáveis pela educação sexual das crianças incorporam a lista.

Um terço dos governos locais na Polônia se autodeclara uma ‘área livre de ideologia LGBT’

Dói que sejam justo as famílias os primeiros alvos de ataque. Família deveria ser sobre amor e segurança, com uma definição menos burocrática e mais carinhosa, envolvendo conforto e cumplicidade. Queria que tivesse menos a ver com política e mais com afeto e companheirismo que até uma amizade — como a que, junto às nossas melhores amigas Dora e Ellen, Basia e eu compartilhamos — pode proporcionar.

No entanto, o que esperar de um país cujo governante, assim como o nosso, atua em nome “da família, da moral e dos bons costumes” para propagar o ódio? Nossas duas nações têm histórias infinitamente distintas, mas hoje compartilham de ideias conservadoras, um líder de extrema direita e ampla maioria da população religiosa — quase 90% dos 38 milhões de poloneses são católicos. Ao lado da Hungria e EUA, não à toa Brasil e Polônia protagonizam a Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa, lançada em fevereiro deste ano. Na ocasião, disseram ter princípios comuns, como liberdade, democracia e economia, e firmaram compromisso em trabalhar juntos para fortalecer suas “identidades nacionais”. Dá até medo…

Foto: Polskie Radio Lublin

Os ataques à comunidade LGBT polonesa vêm se intensificando nos últimos tempos. Quase 100 governos regionais ou locais se declararam LGBT free zone, zonas livres de “ideologia LGBT”, como mostra o Canal 4 britânico. A área representa um terço da Polônia. Em dezembro, o Parlamento Europeu condenou as resoluções pelo discurso que incita a discriminação contra minorias sexuais por parte “de órgãos públicos e funcionários eleitos”.

Em maio do ano passado, uma conhecida representante do Movimento pela Vida e pela Família na Polônia disse em rede nacional que casais homossexuais desejam adotar crianças porque “querem abusá-las e estuprá-las, isso é fato”. Um grupo de homens gays processaram Kaja Godek por difamação — “fun fact: meu irmão foi um deles”, conta minha amiga Basia sobre o caçula dos Grudniewska. O advogado de Godek argumentou que os autores do processo não poderiam provar que são gays, nem que, consequentemente, foram pessoalmente atingidos por suas falas. Em sessão fechada por conta das restrições de combate ao coronavírus, no último 28 de maio uma juíza aceitou os argumentos de Kaja Godek e encerrou o caso.

Basia e eu palpitamos, mas não chegamos a uma conclusão do que seria uma prova de que se é gay. Especialmente para um Estado onde o casamento entre pessoas do mesmo gênero nem é permitido, nem válido caso tenha acontecido em outro país — alternativa buscada por alguns casais.

Essa não é a primeira vez que ouço Basia, aliada do movimento LGBT, falar sobre a homofobia que vive próxima, à espreita. São relatos pessoais demais para entrar neste texto, mas demonstram como os discursos televisionados são um reflexo em larga escala de comentários preconceituosos feitos, por exemplo, por um colega de trabalho. (A narrativa vem de cima para baixo ou de baixo para cima? Não sei bem…)

Imagem: Vecteezy

“Não sei como é no Brasil, mas aqui, tudo ligado a sexo é demonizado há tempos, especialmente para mulheres.” Basia também me conta que, com a atenção voltada para a pandemia, uma das principais preocupações do movimento feminista nesse período foi a restrição nas leis do aborto. Em abril, chegou ao Parlamento o projeto de lei conhecido como “Pare o aborto”, que visa proibir a interrupção da gravidez no caso de malformação do feto. Após petições e manifestações contrárias, parlamentares adiaram a decisão final sobre a proposta.

A Polônia é um dos países europeus com leis mais restritas para a realização do aborto.

A interrupção da gravidez é permitida em três situações: casos de estupro, quando a mulher corre risco de vida ou se há malformação fetal. No Brasil, os dois primeiros casos são legalizados. No entanto, aqui o aborto por malformação do feto é autorizado apenas em caso de anencefalia.

Também diferentemente daqui, onde as mulheres podem ser presas por interromper a gravidez ilegalmente, as polonesas não estão sujeitas a penalidades. Na verdade, é comum que elas encomendem pílulas abortivas do exterior pelo correio ou viajem para um país próximo — como República Tcheca ou Eslováquia — para realizar o procedimento. “É bem triste, mas parece que pelo menos temos algumas opções mais próximas que vocês ☹️.”

Assim como no resto do mundo, a pandemia segue sendo um problema. Entre os 38 milhões de habitantes, são 32 mil casos confirmados e quase 1400 vidas perdidas por conta da covid-19. “O triste é que nosso governo não está nem aí para a saúde pública. Nosso sistema de saúde é horrível, então o número deve ser três vezes maior”, diz Basia. A falta de transparência e o baixo número de testes não inspiram confiança. A área da saúde vem sofrendo com falta de financiamento por um longo tempo no país.

Até abril, uma a cada seis pessoas infectadas era um profissional da saúde. A mãe da Basia é enfermeira e tem trabalhado semana sim, outra não. Quando está no hospital, seu turno é de 12 horas por dia, seis dias na semana. “Ela tem tanto trabalho agora, é claramente exaustante”.

Imagem: warsaw by Befoolish from the Noun Project

“Coronavírus está na polônia e todas as universidades estão fechadas”, Basia anunciou no início de março. Dois meses depois, aos poucos, comércios e serviços começaram a reabrir. “Os números aqui continuam a subir, mas nosso governo decidiu liberar bares, salões de beleza… Sem sentido nenhum, exceto que eles não têm dinheiro.”

No fim de maio, Basia recomeçou seu trabalho em um café no centro de Varsóvia — depois de quase perder o emprego pelos prejuízos da pandemia. “Tá tãaao entediante, porque não tem ninguém durante o dia, então eu basicamente não faço nada por nove horas seguidas”, comentou na época. Com o verão se aproximando, as coisas já mudaram. Ainda assim, Basia conta que o clima geral é de tristeza. Muitos lugares fecharam e as pessoas já não têm dinheiro como antes para sair.

Com todas as aulas da Universidade de Varsóvia online, Basia continua a graduação em Estudos Culturais e ainda sofre com o final de semestre no meio desses eventos. Minha amiga mora em Jablonna, cidade vizinha à capital polonesa, e passou semanas indo direto do trabalho para casa. “Fui para Varsóvia depois de três meses! Finalmente por diversão. A gente deu uma volta e foi jantar. Eu não via meus amigos desde o fim de fevereiro!”, me escreveu ela, animada depois do primeiro rolê pós-quarentena. Não enviou fotos, mas se tivesse que apostar — e eu adoro apostar —, diria que o look envolvia uma calça pantacourt, óculos escuros gatinho e o batom vermelho que sempre usa.

Na Polônia, não foi decretado o estado de emergência pelo medo de atrapalhar as eleições. O atual presidente, Andrzej Duda, tinha expectativas de ganhar popularidade durante a pandemia e realizar a votação ainda em maio. O governo foi repreendido pela União Europeia e, há menos de três semanas, remarcou para 28 de junho — Dia Internacional do Orgulho LGBTI, inclusive. O Parlamento aprovou uma lei que permite aos poloneses votarem presencialmente ou por correio. As pesquisas indicam um segundo turno entre Duda, do Partido da Justiça e Desenvolvimento (PiS), e o prefeito de Varsóvia, Rafal Trzaskowski, que concorre pelo principal partido centro-direita de oposição, a Plataforma Cívica. O candidato da Basia, à esquerda, fica bem lá atrás.

Pelo ranking da organização Freedom House neste ano, assim como a Hungria (contei um pouco dela aqui, já viu?), a Polônia recuou em aspectos democráticos, caindo do status de democracia plena para semi-consolidada. “Parece que as pessoas não aprendem”, Basia diz fazendo referência à história de repressões e autoritarismo que marca a nação polonesa. Dessa vez, ela sente que nem a arte escapa.

Feita com 16 mil flores artificiais, a escultura de arco-íris no topo desta página [foto de capa] foi incendiada em 2013. Deputado do PiS chegou a dizer que a arte de nove metros de altura se tratava de ‘um gesto revoltante’ e até ‘ofensivo’ por ter sido construída na Praça do Salvador, em frente a uma igreja no centro de Varsóvia. A própria artista, Julita Wojcik, disse que não era um monumento aos direitos LGBTs, não havia uma mensagem política explícita. Ainda assim, um arco-íris de flores gigante conseguiu ser chamado de revoltante e ofensivo… Basia lamenta: era uma linda escultura, em um ótimo lugar da cidade.

A Lista Przebojów programu trzeciego, por sorte apelidada de LP3, é a mais antiga parada musical polonesa, transmitindo semanalmente os maiores sucessos do país. Em maio, a rádio pública responsável pela lista retirou a música mais votada, “Twój ból jest lepszy niż mój” (“Sua dor é melhor do que a minha”), do primeiro lugar. Apesar das justificativas, a estação foi acusada de censura, uma vez que a letra da canção fazia críticas abertas ao comportamento de um parlamentar, mais uma vez do mesmo Partido da Justiça e Desenvolvimento, durante a pandemia.

“A LP3, assim como a Chart Radio 3, são muito importantes na história do meu país. Vemos essa lista como uma janela para a liberdade durante o regime comunista, permitindo acesso às músicas ocidentais”, me explica Basia pacientemente, “Nenhuma canção havia sido removida. Mesmo com manifestações políticas, a arte sempre foi livre”.

Minha amiga deixou de acompanhar as notícias há mais de mês, diz estar se salvando delas. “Comigo tudo bem, mas o presidente fez mais uma coisa absurda” é uma frase que nos revezamos em dizer. Brinco que seu orgulho pela Polônia é lindo. “Considerando o fato de que todo dia tem uma merda diferente, logo eu não vou nem admitir que sou polonesa 😂.”

Neste link, você pode conferir fotos e vídeos do que Basia e eu contamos aqui, e assinar petições em apoio à luta LGBT e feminista na Polônia. Enviei a ela a cartilha e minha amiga ficou aterrorizada — “No geral, tá tudo f*dido, mas é horrível ver em um único artigo o resumo de todos esses acontecimentos”.

Traduzo livremente a nossa conversa que, desde sempre, acontece em Inglês. Ano passado Basia me contou que fala muito mais gírias e palavrões em sua língua materna. Nesse dia, me dei conta que perco um pouco dela entre o Polonês e o Inglês — precisei de meses para descobrir que ‘Basia’ não é um nome, mas apelido para ‘Bárbara’ — e provavelmente deixo escapar mais um tanto quando me atrevo a apresentá-la ao Português. Este texto junta desabafos frequentes pelo WhatsApp e explicações gentis em resposta aos meus “Amiga, mas como assim?! Por quê???”.

Entre vídeos de High School Musical e comentários sobre a série Love is Blind, Basia me diz que a conclusão é triste. Durante esse período, percebeu que não quer mais viver em seu país. “É desgastante demais e eu sou muito sensível à Polônia”, lamenta sem muita esperança. Seu irmão quer se mudar com o namorado para Alemanha ou Islândia, algumas amigas já foram para a Inglaterra e outras ainda querem ir. Os que se dizem nacionalistas e bradam seu amor à pátria polonesa fazem com que seus compatriotas tenham de escolher uma só bandeira: vermelha e branca ou todo um arco-íris. Ao que tudo indica, minha única amiga polonesa e outros vários jovens devem deixar o Leste Europeu em busca de novas cores.

com o telefone de lata, a brincadeira é bater papo. de um lado, eu, com saudades de pessoas queridas. Na outra lata, sempre um amigo. esticando bem o fio, escuto com atenção o que acontece do outro lado do mundo em tempos pandêmicos.

Basia e eu na Bologna Pride ano passado — Bologna (IT), Jun/2019

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