Uma visão geral da teoria integral (parte 1)

Um sistema plenamente abrangente para o século XXI

integrália
12 min readDec 7, 2016

por Sean Esbjörn-Hargens, Ph.D.

"A palavra integral significa abrangente, inclusivo, não-marginalizante, abarcante. As abordagens integrais, em qualquer campo, buscam exatamente isso: incluir, dentro de uma visão coerente do tópico, o maior número possível de estilos, metodologias e perspectivas. De certa forma, as abordagens integrais são “meta-paradigmas”, maneiras de unir os diversos paradigmas isolados, já existentes, em uma rede inter-relacional de abordagens mutuamente enriquecedoras."

- Ken Wilber [1]

O mundo nunca foi tão complexo quanto agora — é mentalmente atordoante e, às vezes, emocionalmente exasperante. Além disso, essa cacofonia mundial parece tornar-se cada vez mais complexa conforme enfrentamos os grandes problemas do nosso tempo: o fundamentalismo religioso extremista, a degradação ambiental, o colapso dos sistemas educacionais, a alienação existencial e a instabilidade dos mercados financeiros. Nunca houve tantas disciplinas e visões de mundo a serem consideradas e consultadas para lidar com essas questões — uma verdadeira cornucópia de perspectivas. Porém, sem uma forma de ligar, alavancar, correlacionar e alinhar essas perspectivas, a maioria de suas contribuições para os problemas que estamos encarando são perdidas ou comprometidas. Agora nós somos parte de uma comunidade global e precisamos de um sistema que consiga sustentar as diversas perspectivas válidas, que possuem algo a oferecer para nossos esforços individuais e nossas soluções coletivamente criadas — um sistema de visão global, porém que esteja ancorado nas minúcias da nossa vida cotidiana.

Em 1977 o filósofo norte-americano Ken Wilber publicou seu primeiro livro, O Espectro da Consciência — uma obra revolucionária, que integrava as principais escolas de psicologia dentro de um contínuo de complexidade crescente, com diferentes escolas focando nos diversos níveis ao longo desse espectro. Ao longo dos trinta anos subsequentes ele deu prosseguimento a esse impulso integrativo, escrevendo livros sobre temas como antropologia cultural, sociologia da religião, filosofia, física, ciência e religião, saúde, estudos ambientais, e pós-modernismo. Wilber publicou mais de vinte livros até hoje, e nesse processo criou a teoria integral [2]. Sua obra foi traduzida para mais de vinte e quatro idiomas — o que dá uma ideia de seu alcance e utilidade globais [3]. Desde que foi criada por ele, a teoria integral tornou-se uma das principais abordagens dentro do campo de estudos integrais e meta-teorias [4]. Seu papel proeminente é em grande parte resultado das inúmeras aplicações dentro das quais ela se provou eficaz, assim como do trabalho de diversos praticantes-acadêmicos que contribuíram e seguem contribuindo para seu desenvolvimento contínuo.

A teoria integral costura os insights significativos de todas as grandes disciplinas humanas do conhecimento, incluindo tanto as ciências naturais e sociais quanto as artes e as ciências humanas. Devido à sua natureza abrangente, ela vem sendo utilizada em mais de trinta diferentes campos acadêmicos e profissionais — tais como arte, saúde, gerenciamento organizacional, ecologia, congregações religiosas, economia, psicoterapia, direito e feminismo [5]. Além disso, ela tem sido usada no desenvolvimento de uma abordagem de transformação e integração pessoal chamada Prática de Vida Integral [ILP, no original em inglês]. O sistema ILP permite que os indivíduos explorem e desenvolvam de forma sistemática os muitos aspectos de si mesmos, tais como seu corpo físico, sua inteligência emocional, sua percepção cognitiva, seus relacionamentos interpessoais e sua sabedoria espiritual. Como a teoria integral inclui sistematicamente mais aspectos da realidade e os inter-relaciona de maneira mais minuciosa do que qualquer outra abordagem atual de avaliação e construção de soluções, ela possui o potencial de ser mais bem-sucedida ao lidar com os complexos problemas que estamos enfrentando no século 21.

A teoria integral fornece a indivíduos e organizações um sistema poderoso, adequado para praticamente qualquer contexto e utilizável em qualquer escala. Isso se deve ao fato de que ela organiza todas as abordagens e disciplinas de análise e ação atualmente existentes, e permite que o praticante selecione as ferramentas, técnicas e insights mais relevantes e importantes. Consequentemente, ela vem sendo utilizada de maneira bem-sucedida em um grande número de contextos — desde o ambiente íntimo da psicoterapia individual até o programa “Liderança Para Resultados”, das Nações Unidas, que foi usado em mais de trinta países como resposta global à AIDS. Na parte final desse artigo irei fornecer outros exemplos da teoria integral em ação, a fim de ilustrar a variedade de contextos nos quais as pessoas estão descobrindo a utilidade desse sistema.

Foi após a publicação de seu livro seminal Sex, Ecology and Spirituality [em livre tradução: Sexo, Ecologia e Espiritualidade], em 1995, que Wilber começou a utilizar o termo “integral” para se referir à sua abordagem. Nesse livro ele introduziu o modelo quadrante, que desde então se tornou um ícone de seu trabalho em geral — e da teoria integral, em particular. Esse modelo é frequentemente denominado modelo AQAL, onde a sigla AQAL (pronuncia-se áqual) quer dizer “todos os quadrantes, todos os níveis, todas as linhas, todos os estados e todos os tipos” [em inglês: all quadrants, all levels, all lines, all states and all types]. Esses cinco elementos representam alguns dos padrões repetitivos mais fundamentais da realidade. Ao inclui-los, portanto, você “cobre o básico”, certificando-se de que nenhuma parte importante de uma solução seja esquecida ou negligenciada. Cada um desses elementos pode ser utilizado para “olhar” a realidade — e, ao mesmo tempo, representam os aspectos básicos da sua própria percepção agora e em cada momento. Nesse texto eu irei lhe conduzir ao longo das características essenciais de cada um deles, além de fornecer exemplos de como são utilizados nos mais diversos contextos, qual o motivo de serem tão úteis para um praticante integral, e como identificá-los em sua própria percepção nesse exato momento. Ao término dessa visita guiada, você terá uma compreensão sólida de uma das mais versáteis e dinâmicas abordagens integrativas dos insights de inúmeras disciplinas. Então vamos começar com os fundamentos do modelo AQAL: os quadrantes.

TODOS OS QUADRANTES: As perspectivas e dimensões básicas

Figura 1: Os quatro quadrantes

De acordo com a teoria integral, existem pelo menos quatro perspectivas irredutíveis (subjetiva, intersubjetiva, objetiva e interobjetiva) que devem ser consideradas ao se tentar compreender plenamente qualquer questão ou aspecto da realidade. Portanto, os quadrantes expressam o simples reconhecimento de que tudo pode ser visto a partir de duas distinções fundamentais: (1) uma perspectiva interior e uma exterior; e (2) uma perspectiva singular e uma plural. Um rápido exemplo pode ajudar a ilustrar isso: imagine que você está tentando compreender os componentes de uma reunião bem-sucedida no trabalho. Para apreender de forma plena o que está envolvido na condução de reuniões frutíferas, você precisará se remeter aos insights psicológicos e crenças culturais (o interior de indivíduos e grupos), e também às observações comportamentais e dinâmicas organizacionais (o exterior de indivíduos e grupos).

Esses quatro quadrantes também representam dimensões da realidade — aspectos concretos do mundo, que estão sempre presentes, em todos os momentos. Por exemplo: todos os indivíduos (inclusive os animais) possuem alguma forma de intencionalidade e experiência subjetiva, ou interiores, assim como vários comportamentos observáveis e componentes fisiológicos, ou exteriores. Ademais, os indivíduos nunca estão sós — são membros de grupos e coletivos. Os aspectos interiores dos coletivos normalmente são chamados de realidades culturais intersubjetivas, enquanto seus aspectos exteriores são denominados sistemas ecológicos e sociais, e se caracterizam pelas dinâmicas interobjetivas. Essas quatro dimensões são representadas por quatro pronomes básicos: “eu”, “nós”, “isso” e “issos”. Cada um deles representa um dos campos do modelo quadrante: “Eu” representa o Superior-Esquerdo (QSE), “Nós” representa o Inferior-Esquerdo (QIE), “Isso” representa o Superior-Direito (QSD), e “Issos” representa o Inferior-Direito (QID) (vide Figura 1).

Figura 2: O Grande Trio

Como ambos os quadrantes do Lado Direito (QSD e QID) se caracterizam pela objetividade, também nos referimos aos quatro quadrantes como sendo as três esferas de valores: subjetividade (QSE), intersubjetividade (QIE) e objetividade (QSD e QID). Esses três campos da realidade são encontrados, em todos os principais idiomas, nos pronomes que representam as perspectivas de 1ª pessoa, 2ª pessoa e 3ª pessoa. Wilber também os chama de “O Grande Trio”: Eu, Nós e Isso(s). Outras caracterizações possíveis dessas três esferas são, por exemplo: estética, moral e ciência; ou consciência, cultura e natureza (vide Figura 2).

A teoria integral afirma que não se pode compreender qualquer uma dessas realidades (os quatro quadrantes, ou O Grande Trio) através da lente de outra. Observar as realidades psicológicas subjetivas através de uma lente empírica objetiva distorce muitos dos aspectos válidos dessas dinâmicas psíquicas. Na verdade, a irredutibilidade dessas três esferas é algo que foi reconhecido ao longo da história da filosofia ocidental, desde os conceitos platônicos de Belo, Bom e Verdadeiro; passando pelas famosas três críticas de Immanuel Kant sobre a razão pura, o juízo e a razão prática; e chegando às três pretensões de validade de Jürgen Habermas: verdade, correção e sinceridade (vide Figura 2). Wilber é um defensor ferrenho da necessidade de evitar a redução de qualquer uma dessas esferas a qualquer outra. Ele especificamente nos pede cautela contra aquilo que chama de “terra plana”: a tentativa de reduzir os interiores a seus correlatos exteriores (ou seja, reduzir as realidades subjetivas e intersubjetivas a seus aspectos objetivos). Isso é algo frequentemente visto nas abordagens sistêmicas do mundo natural, que representam a consciência através de loops de feedback — e no processo deixam de fora a textura e a sensação afetiva das experiências de 1ª e 2ª pessoa.

Uma das razões para a teoria integral ser algo tão útil e iluminante é que ela abrange a complexidade da realidade de uma forma que poucos outros sistemas ou modelos conseguem. Em contraste às abordagens que, explícita ou inadvertidamente, reduzem um quadrante a outro, a teoria integral entende os quadrantes como simultaneamente surgidos. A fim de ilustrar essa simultaneidade vou fornecer um simples exemplo, utilizando a Figura 1 como base. Digamos que eu decida comprar algumas flores para o meu jardim e tenha o pensamento “Preciso ir à floricultura”. O sistema integral demonstra que esse pensamento e a ação associada a ele (ou seja, dirigir até a loja de flores e comprar algumas rosas) possuem pelo menos quatro dimensões que não podem ser separadas, pois são co-emergentes (ou tetra-enlaçadas) e se embasam reciprocamente. Em primeiro lugar, há o pensamento individual e a forma como eu o experiencio (calculando mentalmente a distância até a loja, sentindo alegria em estar no shopping, vivendo a ansiedade financeira de como pagar pela compra) — essas experiências são embasadas por estruturas psicológicas e sentimentos somáticos associados com o QSE. Ao mesmo tempo, tal pensamento é acompanhado por uma combinação única de atividade neuronal, química cerebral, estados corpóreos e qualquer comportamento que ocorra (colocar um casaco, entrar no carro) — esses aspectos estão ligados às várias atividades do nosso cérebro e ações do nosso corpo, ambas associadas ao QSD. Da mesma forma, existem sistemas ecológicos, econômicos, políticos e sociais que fornecem produtos à floricultura, determinam o preço das flores, etc. — esses sistemas se interconectam através de mercados globais, leis nacionais e ecologias, todos associados ao QID. E há também um contexto cultural que determina se eu associo “floricultura” a um mercado a céu aberto, um grande shopping center, ou uma barraquinha em um beco; e que, além disso, determina os vários significados e interações culturalmente apropriadas que ocorrem entre as pessoas na floricultura — esses aspectos culturais estão associados a visões de mundo no QIE.

Logo, para apreciar e compreender plenamente o pensamento “Vou à floricultura”, não podemos explicá-lo exclusivamente em termos de psicologia (QSE) ou neurobiologia e fisiologia (QSD) ou dinâmicas sociais e econômicas (QID) ou significado cultural (QIE). Para ter uma visão mais completa, conforme veremos, deve-se levar em consideração todos esses domínios (e seus respectivos níveis de complexidade).

Você pode estar se perguntando: mas será que isso é algo prático? Bem, se tentássemos resumir essa simples situação da floricultura deixando de fora uma ou mais perspectivas, algum aspecto fundamental da totalidade integral seria perdido — o que comprometeria nossa habilidade de compreendê-la e lidar com ela. Portanto, os quadrantes costumam ser o primeiro elemento utilizado pelos praticantes integrais ao analisar uma situação ou questão, e isso permite que tragam múltiplas perspectivas para a investigação ou exploração a ser feita.

Quadrantes e Quadrívia

Como mencionado anteriormente, há pelo menos duas maneiras de representar e utilizar os quatro quadrantes: como dimensões e como perspectivas. A primeira é uma abordagem quadrática, que retrata um indivíduo, situado no centro do modelo (vide Figura 3). As setas partem do indivíduo para apontar as várias realidades que ele pode conhecer devido à sua percepção corporificada. Ele é capaz de encontrar essas diferentes realidades, de maneira direta e cognoscível, tanto utilizando os vários aspectos de sua própria percepção quanto através de métodos formais baseados nessas dimensões perceptivas. Em suma, ele possui acesso direto a aspectos experienciais, comportamentais, culturais e sociais da realidade — pois essas são as dimensões concretas de sua própria existência. Isso é útil porque o capacita a notar, reconhecer e interagir de forma mais efetiva com seu mundo. Quanto maior for o número de “canais” abertos, maior será a quantidade de informação obtida acerca do que está acontecendo ao redor — e, consequentemente, mais oportunas e perspicazes serão as ações e sensações do indivíduo. Você, nesse exato momento, está se relacionando com todas as três perspectivas: percebendo seus pensamentos enquanto lê esse texto (1ª pessoa), lendo minhas palavras e interpretando o que eu estou tentando dizer (2ª pessoa) e notando as luzes, os sons e a temperatura ao seu redor (3ª pessoa). Viu como estamos sempre experienciando o mundo a partir de todos os quatro quadrantes, aqui e agora? É simples assim.

Figura 3: Os quatro quadrantes de um indivíduo

Outra maneira de representar o modelo quadrante é através de um quadrívia. Esse termo se refere a quatro maneiras de olhar (o singular seria quadrívium). Nessa abordagem, as diferentes perspectivas associadas a cada quadrante são direcionadas a uma realidade específica, que é colocada no centro do diagrama. Digamos que centenas de peixes estão morrendo em um lago. A morte deles se torna o foco, o objeto de investigação e análise, e as especialidades de cada um dos domínios quadráticos ajudará a avaliar a situação. As setas apontando para o centro indicam as metodologias que os diferentes especialistas (cada um associado a um quadrante) utilizam para estudar o peixe que está morrendo. Em uma abordagem integral isso inclui: explorar as emoções, a autoidentidade e as crenças dos indivíduos que vivem perto do lago, através de pesquisas psicológicas e experienciais; observar os fatores empíricos, químicos e biológicos que contribuíram para a mortandade dos peixes, através de análises comportamentais e fisiológicas; descobrir os pontos de vista éticos, filosóficos e religiosos da comunidade ao redor do lago, através de investigações culturais de visões de mundo; e estudar os fatores ambientais, políticos, educacionais e legais da situação, através de avaliações ecológicas e sociais (vide Figura 4).

Em resumo, os quadrantes sublinham as quatro dimensões irredutíveis que todos os indivíduos possuem, e os quadrívia se referem às quatro perspectivas fundamentais que podemos ter sobre qualquer fenômeno. Em ambos os casos, os quatro domínios são conatos — literalmente, nascem juntos e estão mutuamente implícitos um no outro. Eles são co-emergentes e tetra-enlaçados. Essa compreensão é útil porque honra a complexidade da realidade de uma maneira que permite ao praticante lidar de forma habilidosa e sutil com seus problemas. Além disso, os quadrantes representam as maneiras inatas pelas quais experienciamos a realidade a cada momento; e os quadrívia representam as maneiras mais comuns pelas quais observamos e compreendemos a realidade.

Figura 4: Os quatro quadrívia de um lago

NOTAS:

[1] Da Introdução escrita por Ken Wilber para o livro de Frank Visser, Ken Wilber: Thought as Passion (2003), pp. xii-xiii

[2] Uma listagem complete das obras de Wilber pode ser encontrada no Apêndice 2 do livro de Brad Reynolds, Embracing Reality: The Integral Vision of Ken Wilber (2004). A maior parte desse material pode ser encontrada em The Collected Works of Ken Wilber.

[3] Frank Visser reporta que vinte e dois dos livros de Wilber foram traduzidos para mais de vinte e cinco idiomas, fazendo dele o autor acadêmico mais traduzido dos EUA. Visser diz: “Até agora seus livros foram traduzidos para as línguas alemã, holandesa, francesa, espanhola, portuguesa, italiana, russa, tcheca, húngara, turca, búlgara, letã, estoniana, eslovena, eslovaca, sérvia, grega, hindu, chinesa, coreana, suazi, japonesa, polonesa, dinamarquesa e sueca. Além dessas, algumas edições ilegais foram feitas em dialetos africanos e indianos.” Para uma tabela com todas essas traduções acesse www.integralworld.net/translations.html

[4] Há uma diferença importante entre estudos integrais e teoria integral. Os estudos integrais são uma categoria mais ampla e incluem pensadores integrais como Jean Gebser, Sri Aurobindo, Ken Wilber e Ervin Laszlo. A teoria integral, por outro lado, é um subgrupo dos estudos integrais focado principalmente na obra de Ken Wilber e comprometido com a crítica, aplicação e desenvolvimento teórico do modelo AQAL. O campo das meta-teorias inclui também o trabalho de indivíduos como Roy Bahskar e George Ritzer.

[5] Vide o Journal of Integral Theory and Practice para artigos sobre essas e muitas outras disciplinas.

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