Eleitas, apesar da Democracia da Branquitude Antropocêntrica

Desabafos e radicalismos para (re)configurar a "democracia" eleitoral do Brasil em 2023

Juão Rodriguez Kyntyno
71 min readOct 7, 2022
Os caminhos criminosos do garimpo na Terra Indígena Munduruku, município de Jacareacanga (PA)

Sobre a eleição,

Você quer começar pelas notícias boas ou ruins?

Quem poderia dizer em 2018 que teríamos uma eleição tão mais atípica do que em 22, feita propriamente em plena pandemia. Quase 700 mil mortos por Covid-19. Pré-Copa do Mundo de 2022. 200 anos de independência dos então Estados Unidos do Brasil à condição formal de colônia europeia. 100 anos do rádio. 101 anos de Paulo Freire. Carta histórica pela "democracia". Invasão do Capitólio. Racismo Estrutural. Alguns atravessamentos das pautas dos movimentos sociais por direitos à vida nos ensinam que passamos por um momento de profunda reflexão sobre o que é, o que foi, e o que pode ser o Brasil para além das efemérides e dos botões de 4 em 4 anos.

Já que hoje temos uma estrutura midiática profundamente influenciada pelo pessimismo que as Big Techs e o monopólio de mídia cruzada burguesa nos empurra para alimentar o medo consumista, decidi começar analisando alguns motivos para pensarmos que o futuro político não é uma catástrofe como o tucanato tem se arrepiado, ou não ainda.

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@nailahnv instagram/ Nailah Neves Veleci

"Para Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional Brasil, o orçamento secreto “é o maior esquema de institucionalização da corrupção de que se tem registro na história brasileira, com danos profundos e variados”. “O pior é o prejuízo para a própria democracia, já que essa apropriação do orçamento público serve como verba de campanha para políticos corruptos e fisiológicos perpetuarem seu poder”, disse. Além disso, o orçamento secreto gera enormes prejuízos na execução das políticas públicas, avalia ele, pois os recursos, já escassos, são destinados sem lógica de prioridades. “Isso tudo potencializa a corrupção na ponta, nos municípios que recebem quantidades desproporcionais de recursos, sem transparência nem controles mínimos”, comentou Brandão."

A eleição é um momento de reflexão política mais aprofundada. As obras públicas que pareciam estacionadas se movimentam. Abre metrô. Abre quilombo. quando lembramos melhor que nosso trabalho também paga outras coisas além de nossas contas, ou que nossas contas financiam outras contas. É quando precisamos escolher candidatos e somos bombardeados pela suposta propaganda gratuita que na verdade pagamos. Sim, eu e você pagamos a conta do Tiririca imitando o Roberto Carlos. Saudade de quando financiávamos a candidatura de Cacareco, o rinoceronte.

Pra além de eleger ou não alguém, espero que tenhamos todos, minimamente, expressado a escolha das candidatas cujas ideias nos identificamos, o que pressupõe que pesquisamos nomes, buscamos pautas e precedentes, vimos alguma possibilidade de sentir nossas vozes serem ecoada por alguém que não nós mesmos, ou os simulacros de nós mesmos nas redes sociais.

Apesar do voto mudar muito pouco da realidade concreta e complexa que vivemos — numa democracia eleitoral narcísica e profundamente egoísta, cujo presidencialismo se torna uma redenção messiânica que apaga a importância legislativa — é um grande avanço político se politizar no voto, ainda mais no momento em que fomos às urnas, cheia de ameaças golpistas. Nesse processo da ressaca eleitoral regada a Orçamento Secreto e a inconstitucionalidade banal do dia-dia, sujamos as ruas de santinhos, mesmo sendo crime.

"Ah, mas não levou o cargo". Eleição não pode ser só cargos, do contrário, repetimos o próprio critério da política patrimonialista — cargos e poder. Política não é só isso. Não pode ser um critério individualista. Saber porque(m) identificamos nossas ideologias, acompanhar esses trabalhos para além da eleição, desenvolver novas reflexões e sinalizar a preferência em um primeiro turno é de uma riqueza tremenda para nossa consciência política, que nunca é determinada em um ponto, é sempre um processo.

Resultados da esquerda revolucionária. Mesmo somados, os candidatos não garantiriam a eleição de Lula (que ficou com 48,43%). Ao contrário do que os petistas e simpatizantes fomentaram na divisão da esquerda, o que decidiu a não ida de Lula para o segundo turno foram os votos em Tebet (4,16%) e Ciro (3,04%), sem falar nos Nulos (2,82%) e Brancos (1,59%). É esse grupo que está em disputa no segundo turno.

O voto tem que ter uma utilidade? Em um país com tantas desigualdades estruturais, não é melhor pensarmos nele como um meio, muito mais do que um fim? E se for ambos? Será que pra além da escolha na urna, não podemos desenhar um país do sonho com as pautas das candidatas e das eleitas?

Bens dos Candidatos por Raça e Gênero. Fonte: Alma Preta — Eleições 2022: candidatos brancos têm patrimônio 9 vezes maior do que candidatas pretas

Motivos pra se alegrar

Indigenização da Política

Pela primeira vez em 522 anos de invasão, 490 anos da primeira eleição na colônia, 200 anos de independência na condição de colônia dos Estados Unidos do Brasil, 134 anos de abolição da escravidão, 133 de proclamação da república velha, 90 anos de sufrágio universal feminino e 34 anos da outorga da vigente Constituição que reconheceu os direitos originários pela primeira vez no Estado brasileiro, duas deputadas indígenas foram eleitas.

"Com mais de 446 mil votos, as candidaturas que integram a Bancada Indígena demonstraram a força da mobilização coletiva para ocupação das Casas Legislativas estadual e federal, encabeçando, principalmente, a questão da identidade territorial por meio da retomada da demarcação de territórios, principal luta do movimento indígena. Nos Estados, a maioria das candidaturas assumiu a defesa do território por meio da bandeira da reforma agrária agroecológica popular, unindo-se a movimentos de defesa da soberania alimentar, de luta contra a hegemonia de agrotóxicos e de direitos ao acesso à Educação e Saúde dentro de assentamentos"

Quem abriu caminho foi Joênia Wapichana, liderança de Roraima eleita em 2018 como a primeira mulher indígena a ocupar o parlamento federal (a título de curiosidade, Mário Juruna foi o primeiro deputado originário). A eleição de 2022 é um marco para o processo de democratização brasileiro, ainda que não tenha sido tão radical quanto se esperava.

"Com 11.221 votos, a primeira indígena eleita deputada federal, Joênia Wapichana, alcançou mais eleitores do que três candidatos eleitos pelo estado de Roraima e foi a mais votada da federação Psol-Rede no Estado. No entanto, acabou não ficando com a vaga por conta do sistema de escolha de deputados estaduais e federais que segue a proporcionalidade […] Em Santa Catarina, Kerexu Guarani totalizou 35.215 votos, tornando-se a mais votada da Federação Psol-Rede. Ela é a primeira cacica Guarani reconhecida no Brasil; coordenadora regional da Comissão Guarani Yvyrupa, da Apib e da Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras Da Ancestralidade (Anmiga), organização que ajudou a criar. Nos estados dominados pelo Agro, os candidatos a deputado federal Almir Suruí (RO) e Lúcio Xavante (MT) demonstraram força partidária ao serem os mais votados do PDT: 3.769 e 3.191, respectivamente. Também foi representativa a conquista de 4.768 votos que a candidata a deputada estadual pelo Psol, Val Eloy, obteve em Mato Grosso do Sul"

“No Norte, a candidata estreante no pleito eleitoral pelo Amazonas, Vanda Witoto (Rede) conquistou a marca de 25.382 votos para a vaga de deputada federal. Técnica de enfermagem por formação, ela ganhou destaque durante a pandemia de Covid-19 ao defender atendimento digno para indígenas nos hospitais e a construção de um hospital de campanha dentro do Parque das Tribos, território urbano em Manaus que abriga diversas etnias”

Agora, a mineira Célia Xakriabá (eleita 101.154 votos) e a maranhense Sonia Guajajara (eleita por São Paulo com 156.966 votos), ambas do PSOL, estarão demarcando territórios e aldeando a política em Brasília. Com o número 5088, em referência à Constituição de 1988, pontuaram que a prioridade será fazer a Carta Magna ser cumprida, o que, de prima, já exige por parte do Judiciário a emergência de anular a tese criminosa do Marco Temporal.

"O número de mulheres candidatas indígenas nas Eleições 2022 foi o responsável pelo crescimento de parentes postulantes a um cargo eletivo desde 2014: a participação delas registrou um aumento de 189%, passando de 29 para 84 candidaturas. O crescimento dos candidatos homens nesse período foi de 78,5%. A eleição de candidatos indígenas, movimento denominado Aldear a Política, é uma mobilização para garantir um projeto de vida, voltado à biodiversidade e à defesa dos direitos humanos. “É uma articulação por uma reparação histórica que vem para romper com avanço do projeto genocida e de privilégio de lucros e exploração da natureza em detrimento da vida”, afirma o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kleber Karipuna. O resultado é fruto da luta política do movimento indígena que vem se articulando de forma organizada desde 2004 por meio do Acampamento Terra Livre, onde são discutidas pautas fundamentais aos povos originários, mobilização contra as violações de seus direitos e reivindicação do cumprimento dos mesmos junto ao Governo Federal. A pressão promovida pelo movimento indígena este ano foi fundamental para frear o avanço do Projeto de Lei 191/20, sobre a mineração em Terras Indígenas, cujo regime de urgência foi aprovado pelo plenário da Câmara no mês de março, a partir de uma manobra que partiu do líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), passando com 279 votos a favor"

“'A política é território indígena. São nestas instâncias que se travam as lutas por leis que garantem políticas públicas para os diversos setores da sociedade e a representação indígena é mais do que urgente, é uma questão de vida e resistência em um contexto onde estão claros os interesses pela eliminação dos povos originários por meio dos ataques aos seus territórios', afirma Karipuna que também é coordenador político da Campanha Indígena"

Instagram: @raquel_tremembe

Outra grande votação foi a da deputada estadual Chirley Pankará, que apesar dos 27.802 votos, não conseguiu se eleger. Chirley foi a primeira mulher indígena a ocupar a Assembleia Legislativa de São Paulo como codeputada pela Bancada Ativista, eleita em 2018. Ao todo, são mais 3 indígenas a serem diplomadas na Câmara dos Deputados: Juliana Cardoso (PT-SP); Paulo Guedes (PT-MG); e Silvia Waiãpi (PL-AP), sendo esta última uma militar bolsonarista.

"A estratégia das novas diretas, como já pôde ser identificada desde as eleições de 2018, é deslocar-se da imagem de que são racistas elegendo candidatos indígenas, negros e mulheres, sequestrando assim o debate sobre a representatividade dos tradicionais movimentos negros, feministas e indígenas no Brasil. Mais do que eleger bancadas negras e femininas de direita, o novo conservadorismo já entendeu que não poderá mais apresentar-se na política enfrentando os direitos constitucionais sem bases sociais representativas e sem espelhar a diversidade da sociedade. Quem ainda não entendeu completamente esse desafio para a democracia brasileira foram as elites decisórias das esquerdas políticas. Candidaturas de mulheres, negras, LGBTQIA+ e indígenas não são ônus eleitoral, ao contrário, cada vez mais terão peso na política brasileira não apenas como eleitorado, mas também como partícipes do processo decisório. Mostram que representação de ideias também precisa vir acompanhada de presença, vivências situadas e valores, requisitos para a qualidade da vida democrática. Paradoxalmente estamos lidando com esses anseios de igualdade, reconhecimento e diversidade em contexto de institucionalização da extrema direita no Brasil"

Ah, mas é muita terra pra pouco "índio"? Muita terra pra pouco latifundiário.

"A monocultura para exportação e a escravidão, articulada com a forma de ocupação das terras brasileiras, pelos portugueses, definiram as raízes da desigualdade social que teve seu início no século e perdura até os dias atuais. Não por coincidência, o Brasil exibe ainda hoje a maior concentração de terras do mundo e onde se encontram os maiores latifúndios: o último Censo Agropecuário do país revela que apenas 1% dos proprietários de terra controlam quase 50% da área rural. No entanto, os estabelecimentos com áreas menores a dez hectares representam metade das propriedades rurais, controlando apenas 2% da área total. Dados dessa natureza demonstram como a construção das desigualdades é um processo de estruturação institucional que vai atravessando a história do país. A colonização europeia das Américas inaugurou um sistema mundial capitalista que ligou raça, terra e divisão do trabalho, conferindo substância à relação de dominação que se constituiu" (BENTO, 2022, p. 22)

Quilombo nos Parlamentos e a Representatividade no Brasil

Apesar da ampla desigualdade de raça e gênero (candidatos brancos, por exemplo tendo patrimônio 9 vezes maior que candidatas negras), os movimentos pela redemocratização e ocupação dos espaços de poder pelas populações socioacêntricas não se intimidou.

Iniciativa encabeçada pela Coalizão Negra por Direitos reunindo 120 candidaturas antirracistas em todas as regiões do país, o Quilombo nos Parlamentos teve 26 deputadas eleitas. "Oito ocuparão cadeiras na Câmara dos Deputados e 18 em assembleias legislativas nos estados da Bahia, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo. Juntos, os candidatos eleitos receberam cerca de quatro milhões de votos"

"Os deputados federais são Valmir Assunção (PT-BA), Dandara Tonantzin (PT-MG), Carol Dartora (PT-PR), Benedita da Silva (PT-RJ), Henrique Vieira (PSOL-RJ), Talíria Petrone (PSOL-RJ), Denise Pessôa (PT-RS) e Erika Hilton (PSOL). Esta última, a segunda mais votada do PSOL em São Paulo, será a primeira mulher negra trans a ocupar uma cadeira no Congresso Nacional"

Douglas Belchior, um dos postulantes a deputado federal, não se elegeu. Uma das principais lideranças da Coalizão Negra por Direitos, Douglas foi à COP 26 denunciar o racismo ambiental no Brasil em 2021. “Debate sobre clima é debate sobre direitos humanos. Diz respeito à vida das pessoas que ocupam territórios e que são, junto com os territórios, vítimas dos interesses econômicos que sugam da natureza tudo o que ela tem de riqueza sem se importar em repor, assim como suga a vida das pessoas. Justiça climática diz respeito ao direito à vida […] No Brasil, povos indígenas, populações tradicionais, o povo negro, os quilombolas, os povos das águas e das florestas, todos sofrem com a degradação do meio ambiente promovido pelo capital — pelas grandes corporações, latifúndio, agronegócio. É preciso garantir proteção a eles”.
Tamires Sampaio também se candidatou pelo PT e não foi eleita. Aqui sua entrevista para a TV Cultura. “A primeira coisa que quero levar é a construção de uma política cidadã, porque a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado e a maioria das mulheres assasinadas no Brasil são mulheres negras. O índice de violência contra a população negra é maior do que países que estão em guerra, então é fundamental barrar essa política de morte, porque se nosso povo não está vivo, nós temos acesso às políticas públicas […] Quero construir uma política de segurança que não seja baseado nessa lógica de apenas de manutenção da ordem e prevenção de risco que aliado ao racismo levam a cultura de violência”.

Dentre as deputadas estaduais eleitas está Mônica Seixas do Movimento Pretas — uma das candidaturas coletivas que se elegeram no boom de chapas com essa inovação parlamentar em São Paulo (onde também se elegeu a bancada feminista, ambas do PSOL).

"A melhor resposta para a violência será a eleição de uma mulher negra e favelada. A esperança vencerá o medo” ~ Renata Souza, eleita, terceira deputada estadual mais votada no Rio de Janeiro

Alma Preta: "Com mais de 80 mil votos somados, Rosa Amorim (PT) e Dani Portela (PSOL) se elegeram deputadas estaduais em Pernambuco. Elas são as únicas mulheres eleitas autodeclaradas pretas no estado, entre 49 parlamentares. Também conquistando mais de 80 mil votos, Robeyoncé (PSOL) esbarrou no quociente eleitoral e não conseguiu uma vaga na Câmara. A candidata, que esperava ser a primeira mulher trans eleita por Pernambuco à Câmara, ficou na suplência de Túlio Gadelha (Rede) na federação PSOL-Rede"

"Expressões como as rimas, as batalhas e os ritmos apropriados pela juventude são a aplicação da Lei 10.639/03, que orienta sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas. 'Levar a cultura hip hop para as salas de aula é muito importante. É a cultura negra viva e nós acreditamos que a educação deve ser participativa, com toda a sociedade se apropriando dessas ferramentas. É uma cultura que prega a união, a liberdade de expressão, a paz e deve ser valorizada', diz [Max] Maciel [eleito como 3º mais votado para deputado distrital]"

Renato Freitas (PT-PR) mestre em Direito Penal, Criminologia e Sociologia da Violência e advogado popular, e que chegou a ter o mandato cassado em uma manifestação antirracista por Moïse Kabagambe e Durval Teófilo Filho, além de também ter sido ameaçado de morte.

“Estive a maior parte da minha vida do lado de dentro do balcão, servindo aos outros como empacotador de mercado, balconista de sorveteria, dentre outros empregos que nos roubam o tempo de vida e nem ao menos nos dão em troca um salário digno para sobreviver […] O futuro é um presente que a vida nos oferece, mas é possível, hoje, agora, um de nós lá, pois um de nós lá, somos todos e todas nós lá”.

Em evento em Minas Gerais, Renato Freitas fez críticas à branquitude dentro de seu partido, o PT. Para o deputado eleito, o racismo dentro dos partidos ditos progressistas aproxima muito maisa própria esquerda das estratégias do capital algoz e racista.

Na cidade com a maior população negra do país, no país com a segunda maior população negra do planeta, Olívia Santana (PCdoB), foi reeleita com 92 mil votos, apesar de ser a única parlamentar negra em Salvador.

“'Não se trata de lutar por um projeto de Brasil para os negros, e sim por um projeto do movimento negro para todo o Brasil. Essa luta não é só a mais antiga deste país: é a mãe de todas as lutas contra a desigualdade e as injustiças sociais', explica manifesto do 'Quilombo nos parlamentos' […] Do total de 14.712 candidatos autodeclarados pretos ou pardos nesta eleição de 2022, 525 foram eleitos no último domingo. Esse número representa um aumento de 10,78% em relação a 2018"

"O Racismo forja valores, amalgama a cultura, a estética, se traduz nos critérios estabelecidos, no idioma, nas letras de músicas, nas gracinhas 'inocentes'. É absorvido e naturalizado no imaginário coletivo, que legitima lugares hierarquizados, baseados na cor da pele e modulados pelo grau de mestiçagem."

Em 2023 serão diplomadas 91 deputadas federais mulheres e 135 parlamentares negras, a maior representação da história em ambos os casos. Entretanto, "a representação segue bem abaixo da proporção verificada na população. O Brasil tem 56,1% de habitantes autodeclarados pardos e pretos, e 52,8% de mulheres". Dos 513 que assumirão o cargo na próxima legislatura, "311 (ou 60%) são homens que se declararam brancos ao registrar a candidatura".

Josy Azeviche: "Ao invés de atribuir o baixo percentual de mulheres negras eleitas ao comportamento e rejeição dos eleitores nós queremos problematizar o não investimento dos partidos de quadros políticos de mulheres negras, uma vez que os partidos não nos consideram aptas para assumir candidaturas, concorrer a cargos políticos, postos de decisão e de comando. A esquerda brasileira, ela precisa fortalecer a luta antirracista pelo exemplo. A direita nunca nos prometeu nada. As mudanças sociais pelas quais lutamos precisa começar de uma forma interna, dentro dos partidos. Nóiz precisamos de representatividade negra nos espaços de direção dos partidos, essa discussão precisa ser feita e ser levada com seriedade. A ocupação dos espaços nos diretórios municipais e estaduais já começa daí. A esquerda fala tanto em necessidade de alternância de poder, então a gente já precisa começar a discussão a partir daí, dessa colocação […] Pela primeira vez na história a gente tem o número de candidaturas negras que superaram o número de candidaturas brancas. 49,5% eram negras, superando as candidaturas brancas, 48,9%. A quantidade de mulheres autodeclaradas negras foi 37% maior do que em 2018. Noíz temos eleição recorde de parlamentares autodeclarados negros que são 135, é a maior representação na história de negros na Câmara dos Deputados segundo a autodeclaração. Mas ainda é um número muito pequeno quando a gente considera que 56% da população se autodeclara negra. Nóiz tivemos 11 presidenciáveis disputando o Palácio do Planalto, e apenas 2 se autodeclararam negros, e não tiveram espaço na mídia. Isso trás muito das transformações que ainda precisam ser feitas dentro da sociedade. A Coalizão Negra por Direitos ela atuou de uma maneira forte, lançou o Quilombo dos Parlamentos pra incentivar as candidaturas negras porque é isso, não pode ser só candidaturas negras, precisam ser candidaturas negras alinhadas com as pautas coletivas, com as bandeiras históricas do movimento negro"

Outro ponto é que existem vários candidatas brancas se declarando pardas e negras, como o caso de ACM Neto. Quase 30% dos deputados estaduais e distritais que concorrem à reeleição como pardos se declaravam brancos em 2018, de olho no fundo de cotas. Se temos também as fraudes em questão de fenótipo, também temos que considerar as fraudes cooptativas, quando utilizam uma candidatura preta e indígena para desmobilizar a luta antirracista favorecendo pautas do capital da branquitude quando o debate eleitoral democrático antirracista é esvaziado em prol do mito da democracia racial e de suas estratégias de cooptação.

Candidatos autodeclarados pardos, (logo negros segundo classificação do TSE)

Apesar do crescimento da bancada negra, o aumento foi abaixo do registrado em 2018, o mesmo foi observado na bancada feminina. No que tange as deputadas federais negras, a maioria segue a proporção de partidos da direita e do centrão (PL e PR lideram), reforçando que nem sempre o lugar de fala segue a representatividade. "Entre os partidos de esquerda, 34 candidatos negros foram eleitos. O PT puxa a fila, com 16 candidaturas pretas ou pardas consagradas nas urnas, 23% dos 68 eleitos pelo partido. Seis candidaturas de negros, entre as 14 eleitas pelo PDT, saíram vitoriosas da corrida eleitoral e chegaram à Câmara dos Deputados. Em seguida, aparecem PCdoB (4), PSOL (3), PSB (2), PV (2) e Rede (1)".

Gráfico: Folha de S. Paulo
Mulher, negra e pró-ciência, Marina Silva foi eleita deputada federal por São Paulo (REDE). Outros nomes eleitos como defensores da ciência são Teresa Leitão (PT-PE), Tabata Amaral (PSB-SP) e Professora Dorinha (DEM-TO),

Na pauta da luta por terra, o MST conseguiu eleger 6 nomes para Câmaras e Assembleias, um avanço histórico para o movimento, contrastando com o MBL, movimento de extrema-direita que só elegeu 2 nomes entre 7 candidaturas.

"O movimento avalia que teve êxito ao ampliar o diálogo sobre a reforma agrária, em especial por meio do debate ligado à produção agroecológica, que angariou apoio de artistas nos últimos meses, e do avanço da fome no país. Ainda assim, a presença do PL como maior bancada no Congresso deve dificultar o avanço de pautas do grupo".

Por fim, entre as LGBTQIAPN+, temos 345 candidaturas e 19 eleitas (aumento de 119% no número de candidatas dessa imbricação). Natália Bonavides (PT-RN) se reelegeu com 157.565 votos. Fábio Félix (PSOL), se elegeu deputado distrital, o parlamentar mais votado na história de Brasília, com 51.792 votos. Erika Hilton, travesti preta eleita, se elegeu de forma inédita com 256.903 votos. "Duda Salabert, por sua vez, se tornou a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte nas eleições de 2020. Desta vez, com 208.332 votos novamente fez história".

No âmbito estadual, Linda Brasil (PSOL) com quase 30 mil votos em Sergipe e Dani Balbi (PCdoB) com mais de 65 mil votos no Rio de Janeiro também serão diplomadas. Leci Brandão (PCdoB-SP), Drª Michelle Melo (PDT-AC), Rosa Amorim (PT-PE), Clodoaldo Magalhães (PV-PE), Dani Monteiro (PSOL-RJ), Verônica Lima (PT-RJ), Dandara (PT-MG), Bella Gonçalves (PSOL-MG), Thainara Faria (PT-SP) e Guilherme Cortez (PSOL-SP) fecham a lista das candidatas LGBTQIAPN+ eleitas, apesar da falta de dados para essa população e a ausência de ações afirmativas para a inclusão política desse segmento que têm crescido exponencialmente no país.

Há de se pontuar, se pra algumas corpas estar viva já é uma vitória política de (r)existência, o que dirá ser eleita? Mas será que existe democracia em um país onde candidatas(es) fazem campanha e votam de colete à prova de balas?

Duda Salabert, de colete, votando. Ela foi eleita, e junto com Erika Hilton, serão as primeires corpes transvestigêneres a ocupar o Congresso Nacional. O Estado brasileiro, notadamente transfóbico, será capaz de protegê-las para que exerçam seus direitos de nos representar?

E apesar do clima de violência e resistência pela luta por mais representatividade e discursos transgressores, encarar uma enxurrada de fake news sobre setores democráticos e/ou minimamente democráticos defenderem o voto lulista como a retomada da democratização enquanto aquele velho jargão contra os direitos humanos de defender bandido ainda encontra lastros em vilões de papelão, academia e capitães do mato. Alguns até que foram em cana.

Dos motivos pra continuar a Luta

Depois de passar esse panorama inicial, existem alguns motivos para acreditar que apesar do PL ter eleito a maior bancada na Câmara (99 deputadas, além de 8 dos 1/3 de senadores que serão empossados em 2023), existem resistências para além dessa casa, ainda que a situação esteja bem difícil para a defesa de populações socioacêntricas e por uma agenda progressita. É claro, a federação do PT (80 parlamentares), têm potencial de equilibrar o jogo, não fosse o União Brasil e o MDB em seguida com 59 e 42 eleitas, que jogam conforme o jogo. PSB e PSOL elegeram 14 deputadas cada. PP e PSDB perderam fileiras relevantes e PDT ficou com 17, e tudo aponta para uma coalizão de forças entre esses partidos. Ao PTB de Roberto Jefferson (recentemente preso por apoiar o golpismo), nem o padre ajudou — só elegeu um deputado.

A maior vitória talvez tenha sido a da ala bolsonarista raiz, que deu recado para antigos aliados sobre o preço da "traição". O Centrão se reforça com o crescimento do União Brasil, as legendas nanicas que se beneficiaram do orçamento secreto e que possuem postura contrária ao seu próprio nome (o Republicanos é quase Monárquicos com a sigla aparelhada pela Universal de Edir Macedo) e a retomada do MDB depois das duas candidatas mulheres à presidência, Soraya Thronicke e Simone Tebet atraírem um olhar de renovação conservadora. Uma coisa é certa: se Lula for eleito, não terá uma maioria que geralmente era observada no parlamento junto à sigla do presidente e de sua coalizão. Considerando que Lula é um político fora do comum e de uma habilidade de coalizão notável, isso pouco importa. Mas o preço conservador dará a tônica, isso é fato.

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Pra além disso, temos alguns figurões renascidos. Ricardo Salles, boiadeiro ex-ministro do Meio Ambiente envolvido no escândalo de venda de madeira ilegal, se elegeu deputado; Carla Zambelli e Bia Kicis, deputadas bolsonaristas envolvida com uso de verba pública no disparo de fake news se reelegeram; outros nomes são Tereza Cristina, a Musa do Veneno; Eduardo Pazuello, o general especialista em (des)logística e um dos nomes da pasta de Saúde que testemunhou o maior número de mortes por Covid durante sua gestão; Osmar Terra, o médico negacionista probicionista; Magno Malta, pastor fanático envolvido na máfia das sanguessugas e aliado de todas as últimas 4 presidentas, e o vice presidente Hamilton Mourão (o vice que disse que não existe racismo no Brasil depois que um homem foi seguido, espancado e filmado por 15 pessoas até ser morto sufocado na frente de um mercado. Mourão apareceu usando a máscara do time que viu inúmeros exemplos racistas no futebol nacional, agora é auto declarado indígena, depois de em 2018 dizer em fala racista que o brasileiro herdou a indolência do indígena e a malandragem do negro) são os demais nomes aliados do presidente a serem diplomados em 2023. Esses resultados não foram questionados para o presidente, que vinha fazendo campanha aberta contra as urnas, e tudo indica que agora terá mais força para fazê-lo no segundo turno.

"Só no PL de Bolsonaro foram sessenta deputados reeleitos com a mão invisível do orçamento secreto, pois puderam destinar às suas bases 1,6 bilhão de reais das chamadas emendas de relator. O valor total, porém, chega a incríveis 6 bilhões de reais nas emendas de relator — valor superior aos 4,9 bilhões de recursos do fundo eleitoral distribuído entre todos os partidos. Essas são as marcas em processos eleitorais que a extrema direita tenta perenizar. A política do assédio religioso, a política do uso do dinheiro público para a compra de votos em formatos e patamares impossíveis de se fiscalizar, a política da desorientação constante entre notícias verdadeiras e falsas, favorecida pelos algoritmos das redes sociais e pela não regulação de ferramentas como WhatsApp e Telegram. Tudo isso regado ao incentivo do uso da violência de diferentes formas e ao velho método de candidaturas que, na ausência do que dizer, resgatam medos olhando para o retrovisor, enquanto aquelas que têm o que dizer precisam passar toda a campanha esclarecendo teorias da conspiração de toda ordem. Eleições emblemáticas nesse sentido e, por isso mesmo, exaustivas e sombrias."

A mulher e a família vivem com medo de represálias. “A gente fica preocupado porque nunca sabe de onde vem o mal”, desabafou.

"Poder não apenas nos contextos de colonização, mas também que ainda se manifestam com força nos contextos brasileiros tendo como eixo central as questões raciais contemporâneas. O racismo permite o exercício do biopoder, 'este velho direito soberano de matar. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é 'a condição para aceitabilidade do fazer morrer'. Vigilância e punição que pudemos observar num fenômeno trágico que ocorreu em novembro de 2020 nas dependências do supermercado Carrefour, em Porto Alegre. Um cliente negro, João Alberto Freitas, foi vigiado, perseguido e espancado até a morte. Enquanto seu sangue derramava-se sobre o chão branco, durante cinco minutos, foi observado e filmado por aproximadamente quinze pessoas, até que estivesse morto. Assassinato similar a outros milhares que ocorrem no Brasil, já que um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos, caracterizando o que o movimento negro define como 'genocídio da população negra'” (BENTO, 2022, p. 31)

É difícil apontar motivo único e até mesmo os motivos principais que levaram o bolsonarismo a essa ascensão, porque são vários e diferem a depender da localidade, contexto e das imbricações de cada eleitora. A própria disputa dos governadores mostra o quão fragmentada é a forma do eleitorado avaliar a polarização entre o atual presidente e o ex-presidente. Mas é possível tatear alguns caminhos.

31.mai.2020 — Apoiador do presidente Jair Bolsonaro exibe faixa em que diz que notícia falsa não seria crime em manifestação em BrasíliaImagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Aqui, entra meu achismo e toco aquela sineta majoritariamente opinativa. Os efeitos que acredito terem sido mais fortes foi o do medo, da soberba e da centralização presidencialista — principalmente na esquerda hegemônica, que continua a reforçar um modus operandi de poder supremacista, apesar de também ser vítima dele.

O roda viva com Boulos após o primeiro turno é um registro histórico. Acuados pelo medo do bolsonarismo avançar no segundo turno, uma bancada majoritariamente branca esqueceu qualquer tipo de pergunta sobre antirracismo ao perguntar sobre combate à corrupção; relativizou o combate à fome e incentivou uma conciliação de classes radical com a Faria Lima; repetiu as lorotas de autocrítica pelo prisma de 2018 da democracia racial; o pensamento em curto prazo das perspectivas políticas a partir da democracia eleitoral desconsiderando o povo além do voto como correlação de forças e agente político em atividade; um joga pedra na Geni na esquerda; a falta de humildade de jornalistas homens brancos que supostamente se dizem progressistas e integram a chantagem das perguntas da mídia hegemônica para esvaziar lutas por direitos sociais; despolitização do voto parlamentar; a falsa assimetria entre lulismo e bolsonarismo (apesar de ambos beberem de uma fonte comum, a branquitude); recalque do antipetismo; e o fato de que uma pergunta a respeito da inclusão social antirracista só foi feita depois de mais de 1 h de entrevista, e por um jornalista negro; um dos poucos pontos positivos das perguntas foi no incentivo da defesa da democracia nas ruas e o evitar do clima de "já ganhou" que tomou as redes da classe média branca de ativismo de sofá.

Conjuntura da "democracia" eleitoral

Primeiro, pedagogia das perguntas. A intenção é refletir, não responder.

O retorno raíz

Brasileires não sabem votar? O voto define a qualidade de uma democracia? Que democracia? Quem vende e quem compra voto? Será que não construímos a identidade brasileira em detrimento de mentiras que se reforçam pelo voto? Política é só voto? Falta educação política ou sobra doutrinação? Quais sentimentos são explorados na decisão racional de voto? Quais recados o povo tenta nos dar através do voto? Nos vemos como parte do povo? As identificações estão a serviço do que? Temos tempo para aprofundar a educação política queremos? A serviço de quem? Reforçando tutelas? O povo não sabe o que é melhor pra ele? Se identifica com algozes? Porque? Os salvadores erram aonde se são tão salvadores? O que nos escapa das réguas da autocrítica ampla e irrestrita? Que projeto de poder queremos? Queremos projeto de poder? Quais pautas são cooptadas? Quais são admitidas? Quem fala? Quem ouve? Porque?

Tivemos e temos uma eleição atípica, marcada por ameaças golpistas, polarização assimétrica, atentados variados tanto à democracia como a policiais, candidatas, candidates e candidatos, apoiadores do ex-presidente Lula (também foi registrado um recente atentado contra um bolsonarista). Apesar dessa polarização ser agressiva em ambos os lados, é evidente que ela é assimétrica na medida que existe um lado com o privilégio de poder adesivar seu carro sem medo de ser linchado ou batido, existe um lado que não tem medo de usar a cor de sua camiseta estampando uma entidade corrupta do futebol, existe um lado que tem amplo apoio de um setor armado civil da sociedade em franca expansão. Setor armado também, militar e policialesco, que aparece para fiscalizar as urnas e apoia esquema de segurança durante o pleito.

"É principalmente na extrema direita, mas não só, que esses posicionamentos sobre ordem, segurança e defesa da pátria atraem setores de segurança, desde as forças armadas e policiais até as milícias e a bancada da bala. Um nacionalismo antidemocrático que tem como base o supremacismo branco e o conservadorismo social e religioso" (BENTO, 2022, p. 35)

A Redenção. 🎨 @daiaratukano , acrílica sobre tela 1mx1m. 2022.

“et si habuero prophetiam et noverim mysteria omnia et omnem scientiam et habuero omnem fidem ita ut montes transferam caritatem autem non habuero nihil sum
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E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.”
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Tributo a León.

Sem dúvidas, para alguém com o olho clínico no dia da eleição, em plena pandemia, era possível farejar o medo dos vários eleitores, poucos de camisa vermelha ou com algum emblema de esquerda. A grande maioria claramente sabe que não estamos em uma eleição normal, há muita coisa em risco, e a democracia não parece ter a mesma garantia de sempre. Esse fato deveria nos mobilizar para defendê-la, mas muitos devem questionar-se de forma confusa, se realmente há alguma vantagem em defender um sistema que não é integralmente perfeito em relação à disrupção prometida pelas promessas golpistas, tão sedutoras em momentos de crise internacional, guerras (culturais e bélicas) e apelo às masculinidades e feminilidades tóxicas atreladas à família, fé, raça e pátria monocultural.

"Os atletas 'vencedores' seriam o equivalente ao presidente duro e autoritário que levaria a nação ao sucesso. A branquitude convicta e autoritária permite ao político ser grosseiro, violento, antidemocrático e abertamente racista, homofóbico e machista, uma atitude que provoca identificação de muitos apoiadores de lideranças públicas, mais do que suas políticas. […] Em cada um dos estados do Sul dos Estados Unidos, a democracia foi atacada por grupos terroristas brancos de direita, como a Ku Klux Klan, os Cavaleiros da Camélia Branca, a Liga Branca e os Camisas Vermelhas, de Wade Hampton, na Carolina do Sul. Havia vários deles. Essas manifestações guardam semelhanças com aquelas que vêm ocorrendo no Brasil, como a de maio de 2020, quando manifestantes fizeram um ato na Praça dos Três Poderes, em Brasília, defendendo medidas antidemocráticas e portando faixas pedindo intervenção militar e o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. E já tinham realizado ato em frente ao usando máscaras brancas e tochas, a exemplo dos supremacistas brancos dos Estados Unidos" (BENTO, 2022, p. 33)

Incêndios no Pantanal já destruíram número incalculável de animais Foto: EFE/Carlos Ezequiel Vannoni

Isso, claro, não justifica uma preferência direta ao apoio da extrema-direita, mais certamente influencia o olhar daqueles que se absteram ou que votaram em outro nome diferente daquele que não escolheriam se não vivessem em uma situação de violência política cercada de medo e ameaça armada, isso sem contar toda a nova cultura reacionária que engloba o bolsonarismo e suas bolhas, inclusive com as tendências do Telegram: uma mistura de várias culturas de evangélicos, lutadores de MMA e esportistas gran fino, incells, games, armas, orações, sertanejo dito universitário e tudo que engloba o reacionarismo contemporâneo. Dos males, o melhor, apesar do bolsonarismo sair vitorioso em governabilidade, as urnas não foram questionadas pelo próprio resultado que favoreceu os reacionários. Mas engana-se quem pensa que a chantagem não vá ocorrer de novo. Esse é um dos problemas de adiar uma decisão, ou de se silencia por medo de retaliação: a opressão não deixa de ocorrer. Como em um sistema de chantagem e máfia, a dívida e extorsão vai aumentando. Nessa doideira toda, cabe o questionamento de Anielle Franco, quem vai defender as corpas eleitas contra esse sistema de medo? Como o Brasil vai proteger as mulheres negras e indígenas eleitas? Porque(m)?

O PT não existe sem Lula. Apesar de isso ser seu grande triunfo, também possui um grande ponto cego: o messianismo, que encontra seus melhores ecos no aparelhamento da fé. O messianismo pode atrair a polarização assimétrica, assim como também, em caso de má administração, não se converter em governabilidade, justamente porque a centralização do executivo e da figura do presidente faz com que muitos esqueçam que existem nomes tão mais importantes a se colocarem no Congresso para garantir o seu governo. Isso não explica a vitória bolsonarista nessas casas, mas ajuda a entender como o PT, apesar de ter ganhado nomes em sua federação, teve uma má resposta aos ataques de corrupção que Lula sofreu, o que explica porque parte da população Tebetista e Cirista mudou de opinião para aderir ao bolsonarismo de última hora pelo voto útil e porque escolheu dar a governabilidade um tom claramente anti-petista. Não foi só o medo, foram vários medos impulsionados pelo ritmo de consumo, processamento e militância informacional, ainda que estejamos melhorando na expressão das ruas, mesmo que morosamente.

Que tal, além de não votar em psicopata, redefinir o prisma pelo qual vemos privilégios que acabam por estruturar um sistema de psicopatia generalizado nas instituições, relações sociais e marcadores de opressão estruturados? Que tal pensar a política pra além da eleição?

Em um clima de soberba das faltas no debate, e a ideia alimentada também na imprensa e nos institutos de pesquisa do já ganhou, também entre as bolhas petistas engalfinhadas pela classe média branca que adora um simulacro messiânico, Lula não foi bem em se defender das acusações de roubalheira em seu governo indo nas raízes estruturais de seu problema (e sei bem o quão experiente é o candidato para não cair nesse papo de já ganhou, mas o mesmo não ocorre com sua militância — que acaba por alimentar a polarização pela postura cirandeira da classe média anticirista, marcada reciprocamente pela amnésia, agressividade e soberba. No que tange a falta das críticas antirracistas, creio que parece ser uma regra do jogo pra debate, mas não deixa de ser uma marca da covardia imposta, e em alguns pontos tão aceita ora pela ignorância ora pela supremacia direta, desse jogo que se diz democrático mas impõe um jogo eleitoral superficial e controlado por cartas marcadas conciliadoras).

Montanaro

Lula também invocou uma retrospectiva idílica ufanista no churrasquinho, reagiu pouco, muito porque não tinha o que se defender diante de muitos fatos incontestes, mas não explorou a Vaza Jato como poderia, não trouxe as contradições da Lava Jato e da Covid a fundo, sua aliança com Alckmin (selando uma ideia de establishment que alimenta o ufanismo antissistema que o bolsonarismo supostamente carrega, e que, pelo resultado desfavorável que colheu o PSB alckminsta, fez mais mal do que bem a Lula) e aquele discurso de autocrítica voltou, assim como a questão do retorno da base e a simbologia de sua prisão não foram rebatidas a altura pela questão do orçamento secreto, o sigilo de 100 anos, o aparelhamento da PF, o caso Queiroz e da família rachadinha, nem sequer mencionaram as ligações com o caso Marielle em resposta ao caso Celso Daniel. O caso dos caipiras, o debate da globo com um padre fake que conseguiu tirar Lula do sério num bate boca e debate de baixíssimo nível, as pregações supostamente cristãs do racismo religioso do fake padre e o apoio de Neymar ao bolsonarismo de última hora podem ter sido os últimos elementos que ajudam a compreender essa virada conjuntural.

O retorno raíz

Podem dizer que estou sendo injusto com a esquerda. Mas a régua moral da ideologia no Brasil tão conservador já faz esse lulismo alckmista de centro-direita se tornar um pânico moral cohenista. A vitória de Moro — e sua mudança bizarra, porém vitoriosa, que aderiu ao bolsonarismo depois de pular do barco dele em nome da honra de sua biografia — mostra justamente o quão desfavorável é o clima ideológico para qualquer governabilidade lulista. Aqui ganha quem ataca o PT. Para alguns, isso é ser politizado, é a cola que une tudo, porque parece que existe uma dívida de 13 anos a ser paga (para alguns, o número de anos é maior, pela bizarrice da extrema-direita que vê FHC, Temer e até Collor como de esquerda). Quero ver se, depois da era lulista, o que vai sobrar pra direita (agora engolida pelo mix antipetista com o neonazismo) fazer. Terá que governar. Duvido, vai surgir alguma maneira de continuar a tentar pregar sua hegemonia, daqui a pouco até Bolsonaro é de esquerda.

A esperança reside no nordeste? Sim, mas não só. Os ataques do presidente a esse colégio eleitoral e a sua tentativa de desmobilizar populações pobres mostra que ele já desistiu de tentar disputar os votos das classes mais baixas — a não ser pela campanha dos depósitos adiantados. É evidente que uma reeleição bolsonarista seria catastrófica (não só pra democracia civil, para a casta do Judiciário e para as populações socioacêntricas de forma ampla), mas também precisamos admitir que houve uma baixa por si só com a governabilidade conservadora vitoriosa.

Pra além dessa suposta "democracia", precisamos admitir que vivemos nesse regime eleitoral. A política só ocupa nossa mente a cada 4 anos, no máximo 2, no mínimo, tem gente — que por não se identificar com ela ou sequer vê-la em prática diariamente — sequer ocupa seu tempo em pensar na democracia eleitoral, seu voto é visto como indiferente e não transformador, a democracia é vista como uma piada porque é seu aparato bélico e repressivo que os oprime diariamente pelo etnogenocídio e o morticínio aos povos da floresta e da favela sustentados pelo narconegócio que em diferentes graus sustenta e é cria dos mandos tutelistas polarizados. Porque sabemos a diferença de abordagem em Alphaville, Paraisópolis, Terras Indígenas Pataxó, Guajajara, Guarani Kaiowá ou na casa de um armado Roberto Jefferson, ou em condomínios de milicianos.

Ademais, precisamos abaixar nossas expectativas em relação à própria esperança simbolizada no ex-presidente e seu messianismo de bolha que afasta qualquer diálogo com a base e empurra um bom eleitorado nas mãos do fascismo. Porque existe um último elemento que é o mais forte de todos nessa virada bolsonarista:

Precisamos falar do elefante na sala. Precisamos falar da branquitude.

Uriara Maciel: "O grande problema e o grande embate, pra mim, nessa internacionalização da luta é que a branquitude continua sendo Barbie Safari. Eu vou cunhar esse termo, porque Barbie Safari é o que mais tem. A branca salvadora, o branco salvador, deve ser Barbie e Ken, que não deixa a gente falar. Eles passam na nossa frente. Eles, antes que a gente abra a boca, eles já tem uma solução pro problema da gente que eles nem viveram. […] Uma branquitude que na primeira oportunidade faz o ACM Neto né gente, porque agora meu amor, qualquer corzinha que pegue no Sol, um cabelo mais enroladinho, ‘sou pardo’, deve tá na moda né Dai? Agora, na hora que a polícia chega, quem vai somos nóiz […] Não dá quando você tem uma branquitude que não tá nem aí pro real problema do Brasil. Falo sem qualquer problema, quem convive comigo sabe disso. Eu tinha medo das bronca de painho, painho agora tá no céu, só escuto as bronca de painho no sonho. O que acontece é que nóiz temos uma branquitude, uma esquerda branca, que não nos respeita, não respeita a nossa origem, não respeita a nossa história, não respeita a nossa trajetória e nunca vai nos ouvir. E aí quando a gente realmente diz 'não meu amor, a partir daqui você não passa' nóiz somos acusadas de separatismo. […] Nóiz não precisamos de salvadores, nóiz não precisamos de pessoas que pensam pela gente, nóiz somos seres pensantes, e outra, África é mãe da história, da ciência, da tecnologia, nós já descobrimos como acessar as nossas tecnologias. Tarde de mais, nenhum passo atrás. Não será necessário que branco pense por mim, mas será muito necessário que eu me articule com os meus, que eu me aquilombe"

Branquitude

Ora, mas você não é branco?

Justamente por ser racializado como branco em uma sociedade racista que estruturamente me torna universal, insensível e deformado ética-afetivamente pela falta de melanina em minha pele, que busco desconstruir esse discurso, uma herança maldita do que meus antepassados de cor provocaram tanto aos grupos sociais que verdadeiramente forjaram a identidade cultural do Brasil. Racializados que foram construídos como outros pra justificar a suposta supremacia da branquitude e suas castas de não lugares, como fizeram a si mesmos ao se colocar num lugar messiânico de tutela e autoridade intelectual sobre a maioria numérica, epistêmica e espiritual que literalmente construiu esse país. Achar que por eu ser branco implica ter uma opinião única de reforço das estruturas de supremacia branca como universalidade humana é a própria reafirmação do pacto narcísico da branquitude.

"É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse: as formas de exclusão e de manutenção de privilégios nos mais diferentes tipos de instituições são similares e sistematicamente negadas ou silenciadas. Esse pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o 'diferente' ameaçasse o 'normal', o 'universal'. Esse sentimento de ameaça e medo está na essência do preconceito, da representação que é feita do outro e da forma como reagimos a ele. Tal fenômeno evidencia a urgência de incidir na relação de dominação de raça e gênero que ocorre nas organizações, cercada de silêncio. Nesse processo, é fundamental reconhecer, explicitar e transformar alianças e acordos não verbalizados que acabam por atender a interesses grupais, e que mostram uma das características do pacto narcísico da branquitude" (BENTO, 2022, p. 12).

Aqui, não pretendo apontar a desconstrução da branquitude como cura sem me ver nela ou apenas por me ver nela, creio que são dois caminhos para o narcisismo. Prefiro uma terceira via, em que possa refletir a partir de meu olhar e de outros que me transbordam afetivamente para a politização transformadora antirracista.

A crítica à branquitude não pode estar desacompanhada da crítica ao aparelhamento da fé dita cristã em nome do lucro necropolítico que deturpa a própria solidariedade que Jesus simbolizou.

Exemplos:

"Não é que a branquitude seja invisível racialmente para pessoas brancas, a questão é que ela é vista como a 'única identidade racial normal', como a universal e não como uma das diversas que compõem o tecido social. […] É comum que pessoas brancas se acreditem desracializadas, ou seja, raça quem teria seria apenas o 'outro' negro [, amarelo] ou indígena. É através da lente do merecimento que a branquitude se reconcilia com os privilégios simbólicos, estruturais que detém — ignorando que nesta justificação moral já está operando uma ideia de racialização" (LONGHINI, 2022, p. 41)

O que é maioria? O que é minoria? Como se constroem elas nos jogos de força do processo de democratização brasileiro?

O primeiro debate presidencial dessas eleições é o prosseguimento de como se constrói a ideia de maioria e minoria. As duas presidenciáveis negras de esquerda (que por si só, juntos declararam bens 87 mil vezes menor que brancos) foram excluídos pelas regras de debate classistas e racistas, onde a burguesia branca evidencia seu medo crônico de ter candidatos radicais questionando a essência do poder colonial ainda vigente.

Para além disso, esse primeiro debate sequer teve jornalistas negros, pretos ou indígenas perguntando. O mito da democracia racial se reforçou.

"O resultado é um total silêncio para temas muito importantes para a comunidade negra. Nenhum questionamento direto sobre a mortalidade de jovens negros, os altos índices de encarceramento em massa, a atual política de drogas, a violência contra mulheres negras no sistema de saúde, a política de cotas nas universidades brasileiras, entre muitos outros temas. O Brasil mantém com toda firmeza o mito da democracia racial, a mais sofisticada tecnologia de dominação e segregação racial. O país não precisou impor leis como as Jim Crow dos EUA ou o Apartheid da África do Sul para segregar pessoas negras de todos os espaços de poder, com o bônus de negar e tentar abafar qualquer discussão sobre desigualdade racial no país. É um ciclo vicioso completo. Sem a presença de pessoas negras para tensionar a discussão, o tema não vem à tona, e sem vir a público, não se avança. É preciso romper esse ciclo para que a pauta racial tenha o lugar devido na realidade cotidiana do Brasil"

"A falta de participação do maior segmento social do Brasil, que representa 56% da população, demonstra a ausência de democracia no país. Não há como superar as desigualdades no Brasil sem incluir o principal motor das desigualdades do país, o racismo. Como a Coalizão Negra por Direitos afirmou durante a pandemia, “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”, é preciso superar o racismo, assegurar a dignidade e garantir direitos ao povo negro para que exista democracia. O debate presidencial é um espelho disso. Sem pessoas negras no posto de candidato ou jornalista, o Brasil demonstra que o atual compromisso democrático ainda é branco e não responde aos desejos das periferias, favelas e quilombos do país"

Existe uma frase que simboliza muito bem como funciona parte desse sistema:

"Entre esquerda e direita, continuo sendo preta."

Cunhada pela intelectual Sueli Carneiro, o recado é bem direto: a política do Brasil é dirigida para as minorias. Essencialmente, ela é comandada pela branquitude e sua visão hegemônica e eurocêntrica de ideologias e religião, que seguem sendo uma pequena representação do que é o país, ainda que tenham amplas vantagens históricas no jogo.

A branquitude constrói a ideia de humanidade, quem pode ser considerado mais humano que quem, em um pacto silencioso não-acordado, mas herdado por uma estrutura de construção histórica essencialmente racista e que ecoa até hoje. Alguém poderia argumentar: "mas eu não escravizei ninguém". Muito bom, entretanto existem pessoas hoje que não foram escravizadas, mas são tratadas como se fossem. Existem pessoas que não escravizaram ninguém, mas se sobrepõem socialmente como um senhor de engenho e/ou herdam privilégios desses sistema.

Importante, de passagem, frisar que branquitude é um sistema opressor de identificação racista, enquanto branquidades correspondem às várias formas de pessoas brancas se racializarem e romperem com essa deformação ética.

"Os brancos, em sua maioria, ao não se reconhecerem como parte essencial nas desigualdades raciais, não as associam à história branca vivida no país e ao racismo. Além disso, a ausência de compromisso moral e o distanciamento psicológico em relação aos excluídos são características do pacto narcísico. Os pactos narcísicos exigem a cumplicidade silenciosa do conjunto dos membros do grupo racial dominante e que sejam apagados e esquecidos os atos anti-humanitários que seus antepassados praticaram. Devem reconstruir a história positivamente e assim usufruir da herança, aumentar os ativos dela e transmiti-los para as próximas gerações. As instituições são constituidoras, regulamentadoras e transmissoras desses pactos, que em sua essência são coletivos" (BENTO, 2021)

As categorias de esquerda e direita são binariedades da ciência política branca criada ainda na Revolução Francesa, quando a modernidade decidiu que derrubar o Rei não significava mudar profundamente a estrutura de desigualdade de classe, raça e gênero. Com excessão da majestosa Revolução Haitiana, o mundo testemunha a proliferação das Repúblicas Modernas que mantém a escravidão, a misoginia e o racismo como norma dos sistemas "liberais".

"O pacto da branquitude não se quebra em decorrência do quão bons ou não somos na retórica ou explicação do que sofremos, já que para que nossas palavras furem e atravessem essa camada é preciso que haja também um engajamento ético na interlocução, uma traição ao colonial que persiste em nossos modos de vida. Essas fissuras fazem uma dobra na divisão binária do que seria interno e externo, micro e macro, pois convocam simultaneamente o singular e o coletivo e se conjugam em um trabalho intransferível e não terceirizável de si" (LONGHINI, 2022, p. 24)

No Brasil, ficamos independentes da condição de colônia portuguesa, pagamos fiança por nossa audácia às custas do sangue feminino, retinto e indígena derramado nas batalhas contra Portugal. Inglaterra e França ampliam seu imperialismo durante o reinado em nome de deus, enquanto a escravidão e o genocídio paraguaio-guarani sustentam todo o sistema verde e amarelo de patriotismo patriarcal. Quanto liberalismo!

Após as campanhas abolicionistas e os movimentos de resistência contra a monarquia, a modernidade brasileira que herda as estruturas opressoras é bem conhecida: República Velha, Era Vargas (plus ditadura), Segunda República, Ditadura, Terceira República. No meio desses atravessamentos, (sempre presentes os movimentos de resistência às opressões, desde o quilombismo às campanhas antirracistas, ondas feministas e LGBTs, sufrágio universal, caso Ferro's Bar, criação do MNU), uma ditadura sempre se mantém: a da branquitude patriarcal e suas construções de classe.

Editorial: Derrotar o inominável, sim! Mas escolher mal menor, não!

Muito se fala nessa campanha sobre a esquerda estar apoiando ditaduras na Nicarágua, baboseiras olavistas do Foro de S. Paulo e toda essa groselha herdada da campanha de 2018. Muito se fala da diferença de origem de ambos, do passado de trabalhador e militar, mas pouco se fala, pelo menos nos grandes veículos de mídia, dos projetos em comum nas ambas candidaturas.

O que não se fala é justamente um pacto narcísico existente entre ambas as polaridades desse segundo turno: homens cis, brancos, messiânicos, salvadores da pátria e que a menos que uma grande onda de consciência os atinja (no caso de um deles, talvez seria necessário um tsunami), uma certeza ditatorial é garantida: a branquitude continuará governando.

Candidato à presidência Léo Péricles (UP) em ato na porta da Rede Globo. "Realizamos hoje um ato na porta da TV Globo para manifestar mais uma vez a nossa indignação pela falta de candidaturas negras nos debates. Nosso partido denunciou o racismo institucional durante toda essa caminhada eleitoral. Sofremos ataques e não fomos convidados a nenhum debate sequer. Quando estávamos quase encerrando, o TRE-RJ e a PM/RJ agiram de forma truculenta e tentaram dispersar os nosso militantes. Nos tiraram da TV, nos tiraram dos debates e agora querem nos tirar das ruas. Como chamar isso de democracia? Nos dê seu voto se você confia em nosso programa! Precisamos mostrar aos ricos deste país que nosso projeto está crescendo!"

Isso não apaga as diferenças evidentes de projetos de poder de ambos. Um defende a "democracia" mínima e a continuação de supostos triunfos que conciliaram classes e partidos profissionais, enriqueceram bancos, governou durante a descoberta de um amplo esquema sofisticado de corrupção estatal de origem militar e escravocrata, aumentou encarceramento e genocídio preto e indígena, manteve o monopólio de mídia e propriedade cruzada, e manteve desmatamentos na maior floresta tropical do mundo. Seu vice desviou dinheiro de merenda, mandou bater em professores e estudantes, é carta marcada do centrão e sua própria chapa parece ter se aliado a grandes figurões políticos dessa Terceira "República". Ah, mas se criticar tá dando bola pro outro lado. Os números do resultado final das eleições estão aí pra provar que o voto da esquerda revolucionária foi o que menos atrapalhou alguma chance de Lula ser eleito em primeiro turno, visto que sequer chegaria aos 49% sem Vera Lúcia, Léo Péricles e Sofia Manzano. Quem atrapalhou a eleição do PT no primeiro turno foi a centro direita e a direita moderada que pelo medo do antipetismo aderiu ao bolsonarismo. Pra além disso, quantos ditos radicais assim se põem?

O outro lado tem a novidade de não esconder que defende tudo isso daí da centro-direita conciliadora e de forma ainda mais radical, com o agravante do orçamento secreto, Queiroz, fazer o pix, comer terra com leite condensado, não ser coveiro mesmo chefiando o executivo durante a maior crise sanitário-hospitalar da história recente, ameaçar as poucas instituições "democráticas" vigentes e ainda ter tempo de exaltar todo esse projeto através do falocentrismo "imbrochável" bélico exaltado por uma multidão em crise de identidade nacional com um suposto líder incancelável usando cores das famílias européias monárquicas durante a comemoração do bicentenário da independência pago com dinheiro público assim como os disparos de fake news sobre mamadeira de piroca (também pago com caixa 2), assim como pagamos umas próteses de pinto, viagra, picanha e o pato da paulista que FIESP inflou e agora tá apoiando o Lula igual o Paulinho da Força. E dá-lhe misoginia nisso tudo.

Vivemos um tempo de falta de imaginação política, em uma eleição de transição morosa, com a única certeza de que o projeto da branquitude segue intacto, o rico fica cada vez mais rico, o pobre cada vez mais pobre, esses personagens tem cor, território e gênero que identificam classes, e o motivo todo mundo já conhece é que o de cima sobe e o de baixo desce.

Enquanto temos personalidades políticas orgulhosas, extremamente aduladas por seus projetos messiânicos (alguns, com evidentes motivos em termos de inclusão social, intelectual e política, ainda que não justifique uma posição positivista), continuamos tentando entender porque diante do ruim e do mais pior ainda, o povo brasileiro escolheu dar governabilidade para o mais pior no Congresso e jogar a sorte no segundo turno, dando grandes chances do Cramulhão ganhar.

A radicalidade que a branquitude teme

Se, como defende Sueli Carneiro, são os pretos e indígenas a base da pirâmide que empurra a esquerda para a esquerda, é possível entender que enquanto a branquitude continuar uma norma nos espaços ditos progressistas, a população (e a própria hipocrisia da esquerda, indiretamente) continuará apoiando projetos de ditadura liberal ao invés da conciliação de classes "democrática", esquecendo que existe uma terceira via: a da radicalidade quilombista do antirracismo, do bem viver socioambiental. Precisamos entender a raiz desses problemas historicamente.

"A narrativa da branquitude se apresentava marcada por ressentimento e amargura e ocultava as profundas desigualdades raciais na sociedade, e alguns profissionais da mídia diziam querer viver em um lugar onde brancos não tivessem que se sentir mal por serem brancos. Por um lado, os negros eram representados como povos estrangeiros, menos civilizados, essencialmente inferiores por herança genética. Por outro, os homens brancos se definiram como vítimas de um preconceito racial às avessas" (BENTO, 2022, p.39)

Enquanto o marcador de ideologia europeia 'esquerda' não arregaçar as mangas pra questionar as normas da branquitude white savior assentada pelo mito da democracia racial, sendo antirracista na hashtag e no nortismo blackout tuesday, a direita vai continuar mantendo seu projeto intocável, justamente porque não apenas explicita sua posição opressora e tem orgulho dela, como utiliza a desculpa conservadora para a identificação de masculinidades tóxicas e de racialização que conciliam com a suposta religião cristã, o colorismo despolitizante e o anticomunismo.

"No mesmo período, começou-se a produzir estudos em que a branquitude surgia como um lugar de privilégio, de poder, construído historicamente. David Roediger e muitos outros estudiosos afirmam, então, que a branquitude é sinônimo de opressão e dominação e que não é identidade racial. Outro ponto que merece destaque é a masculinidade branca, que aparecia sempre associada ao sentimento de estar sob ameaça, provocando resposta violenta. Grande parte da minha abordagem sobre a branquitude está concentrada nessa perspectiva" (BENTO, 2022, p. 39)

Área impactada pelo garimpo na região do Apiaú na terra indígena Yanomami — Divulgação

Os motivos do campo de suposta vitória narrativa determinista da branquitude são vários: a brutalidade do lavoro do dia-dia em um país da periferia do capitalismo, e seus atravessamentos com a herança de mais de 300 anos das normas sobre corpas tornadas objetos pela colonização da roupagem dogmática dita cristã; a falta de educação política libertadora nos espaços de socialização; o monopólio de mídia e das Big Techs nortistas na formação intelectual de bolha pelo medo conspiratório-narcísico; o ativismo de sofá da classe média que só levanta indignação no dia da eleição mas não faz um levantar de dedo pra ir pra rua nos outros tantos dias de regime 'democrático' em nome do amor ao dinheiro, a cumulação egoísta da mercadoria e a falta de tempo remanejada no consumo viciado das redes; o pacto narcísico da branquitude que cola todos esses sistemas em uma lógica comum, inclusive, tornando branco o pensamento até de quem não é racializado como branco.

ISA: O “Dia do Fogo” nunca acabou na Amazônia

"Raça, racismo, branquitude e colonização são sistemas de poder e hierarquia que vão muito além da genética e do fenótipo, mas dizem respeito, sobretudo, a um certo jeito de estar no mundo. Não à toa, a crítica ao cristianismo se fez tão presente nesse trabalho, pois compreendo que a imposição global dessa moral e todas as suas hierarquias são partes indissociáveis do avanço do etnogenocídio contra nossos povos, contra os demais bichos, contra a terra. […] Para nós, branco não é uma descrição limitada ao fenótipo, mas uma sinalização que diz respeito sobretudo ao modo de pensar do branco/da branquitude. Modo de ser/pensar que também pode estar presente inclusive em pessoas não brancas, como efeito da colonização, o que é mais uma das expressões da violência da branquitude. Nessa perspectiva, raça e racismo não vêm antes ou depois um do outro, mas são partes do mesmo processo. A imposição do modo de vida da branquitude é uma metonímia para o modo de vida colonizador. Nesse modo de vida, ao mesmo tempo que a exploração capitalista, também racializada, incide (especialmente) contra pessoas não brancas, ela também se expande contra os rios, as matas, os demais bichos. Como frisa o parente Casé Angatu (2019), nós indígenas não somos donos da terra, nós somos a terra. A relação é de pertencimento, de concomitância e convivência, não de exploração" (LONGHINI, 2022, p. 90–104)

"Mas Djonga não gosta de branco?
O bang não é apenas cor, interpretem
Parece que ainda estão no ano lírico
Pela cor cê só não sente o que eu sinto
Mas pela boca e pelos atitudes, branco é seu estado de espírito"

É claro que todes nóiz temos mais o que fazer nos outros dias do que lutar pela politização intersubjetiva. Temos que trabalhar, temos conta para pagar, não temos muito tempo e nem contato de saber da próxima manifestação, até porque, quem nos lembra que tudo isso é importante? Ao mesmo tempo, possuímos tempo de mais para entrar em discussões políticas improdutivas nas redes sociais, gastamos mais de 5 horas online por dia com ansiedade nisso tudo, e quem precisa se importar com o avanço do fascismo e do reforço do racismo se a classe média branca - desconectada da ampla desigualdade que sofrem as demais imbricações porque acha que é parte da burguesia porque frequenta o mercado Pão de Açúcar - pouco vê vantagem em estender a mão para ajudar na solidariedade de luta que nos atravessa a todes, justamente porque vai conseguir garantir uma viagem de feriado, tem comida na mesa e meio que foda-se não sou eu que me fodo mais, olha alí alguém pior pra me fazer sentir melhor?

O que é prioridade? O que é redução de danos? Por que(m)?

Ninguém solta a mão de ninguém? Ninguém da branquitude nunca segurou a mão de alguém.

"Ah mas tudo agora é escravidão! Esse tempo já passou"

"Nenhum povo que passasse por isso [escravidão] como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e indígenas supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravizados e de senhores de escravizados seremos sempre servos da malignidade desulada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta, de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, serviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação, nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária" (RIBEIRO, 2014, p. 91)

Qualquer semelhança da insensibilidade com a escravidão e agora visto na urna na questão do pós-Covid-19 não é mera coincidência.

"Boa parte das ofensas e xingamentos dos não indígenas envolvem referências a animais: macaco, galinha, vaca, porco e tantos outros. Isto porque para o não indígena, ser próximo dos demais bichos costuma ser algo ofensivo e é por acreditar nisso que imagina nos ofender quando nos designa de forma animalizadora. A noção de que o corpo é algo vergonhoso de ser exposto está diretamente associado ao último eixo trazido por Kilomba, a erotização. Como já dito, a erotização é uma das projeções da branquitude, que por reter e recalcar em si o próprio corpo, hiper corporifica quem constrói como seu outro" (LONGHINI, 2022, p. 36)

Raizes do Brasil

Eu escrevo tudo isso a quente, a eleição não completou uma semana. Minha crítica essencial é que o Brasil não vive a contemporaneidade. Vive um simulacro da modernidade contemporânea, nessa transição bizarra de falta de imaginação, retrospectiva idílica, medo e narcisismo. Tudo isso é o que leva um presidente, usando verba pública durante a comemoração do bicentenário da independência do Brasil da condição de colônia portuguesa, levantar coro de ser imbroxável na República do Viagra Transfóbico (ora, não é a 'naturalidade' do corpo a imagem de deus? porque não aceitam a limitação do próprio pênis mas querem regular as corpas dissidentes da construção social do biodeterminismo?). A masculinidade tóxica falocêntrica e a supremacia da branquitude em sua fala são indissociáveis.

"Parece que os mitos (ou não) criados em torno do homem negro, que no imaginário social os colocam em situação de vantagem diante do homem branco no que diz respeito à sua sexualidade, são um importante elemento que assombra alguns homens brancos. Esse mal-estar pode definir uma relação tensa de contraste com o homem negro e ser parte da cega violência genocida de homens brancos contra homens negros, porém sobre essa questão paira um suspeito silêncio. Fanon, psicanalista negro, após extenso estudo feito com europeus durante quatro anos, chama a atenção para o fato de que as representações sobre os negros estão matizadas de sexualidade: '[…] no inconsciente europeu foi elaborado um crescendo excessivamente negro onde estão adormecidas as pulsões mais imorais, os desejos menos confessáveis'. Para Fanon, ter fobia dos negros é ter medo do biológico, pois os negros só são vistos como seres biológicos. Ele explica que para o africano não há esse medo do biológico. Além disso, para ele, o ato sexual é apresentado como natural. Enfim, as relações de dominação têm muitas facetas, e uma parte expressiva delas, às vezes a mais relevante, fica encoberta, silenciada" (BENTO, 2022, p. 40).

Quando Lula saiu da cadeia, fez um discurso histórico. Não apenas foi a virada para que o governo começasse a investir em vacina, clubes também falaram em mais golpe, e essas coisas de sempre que nos acostumamos pra evitar a dissonância cognitiva e praticar o autoengano de que nunca vai acontecer. Lula disse que era radical porque gostava de ir na raiz dos problemas: a pobreza. Não falou quais eram suas causas estruturais, tampouco citou de quem ele plagiou o discurso: Angela Davis, professora black panther de esquerda presa pelo racismo dos EUAmerikkka.

A raiz do problema brasileiro é propriamente a branquitude, que atinge todos os estratos sociais, até mesmo a da dita esquerda revolucionária, que justamente por adotar essa categoria eurocêntrica e se achar o novo hardcore porque passou a gostar do imperialismo chinês ou porque descobriu youtubers-token que determinam o que devem pensar a partir do que as Big Techs determinam que eles podem ver.

É aquela radicalidade que só veste camisa. Achando que se faz luta de classes (e aqui não sou eu a dizer o que cada um tem que fazer) vomitando impropérios a Lula pra se sentir revolucionária, esquece de radicalizar de fato suas aferições carregando sua arrogância de manual que esquece do próprio sangue e da branquitude que sustenta o liberalismo (sistema econômico da branquitude) que ela mesmo invoca porque tá preocupada em discurso de copiar e colar, conseguindo não apenas ignorar onde houveram importantes ações afirmativas no governo de conciliação de classes, como também consegue cancelar qualquer outra perspectiva além de sua binariedade e, em nome de rejeitar migalhas, ela mesmo as come indo buscar resultado no salvacionismo gringo e branco, esquecendo que num país desigual como o nosso e tão flagelado pela escravidão, a pobreza e a racialização são circunscritas e por vezes definidoras, mas que possuímos as tecnologias ancestrais de resistência desenvolvidas aqui, como a primeira nação livre de Abya Yala: Quilombo dos Palmares; porque a radicalidade da branquitude não lembra de citar autores pretos, pretas e indígenas nos seus manifestos ditos antirracistas? Será que a luta deles é mesmo pela coletividade, e será que podemos se tais radicais lembram de falar de antirracismo ou mesmo praticá-lo no dia-dia em seus ciclos sociais? O comunismo que deu certo — porque horizontal e centralizou o poder na mão do povo sem crueldade — é coisa rara, mas talvez existam pistas em um passado em que não acimentavamos rios, não comiamos papelão e nem ostentávamos cordões de ouro advindos do sangue originários que nos pariu.

É o caso de partidos centenários, que ignoram que não existe uma luta de classes descente em um país do Sul Global martirizado pela escravidão resistente no quilombismo, se essa luta é protagonizada por figuras políticas brancas e/ou masculinas, e que não fazem uma luta por reforma agrária sem ceder lugar executivo, central e não-reformista para lideranças quilombolas e povos indígenas, populações essas que podem verdadeiramente nos mostrar como ir na raiz dos problemas estruturais como saúde pública, segurança pública, revolução agrária e educação pública — tudo imbricado pelas heranças ancestrais que rejeitamos porque gostamos de ler autores europeus e não contextualizá-los em um país como o nosso, que derrubou suas árvores pra fazer o papel da teoria dos livros gringos pensarem em liberdade só pra eles, que sangrou corpos pretos e indígenas pra adoçar o café da burguesia intelectual europeia que falava em fraternidade, uma branquitude que conseguiu implementar no seu ideário de igualdade um padrão único de pensamento e melanina, do contrário, deve ser embargado e exterminado. Impedidos esses antirracistas ousados, como ousam? Eu vos dei tudo? Devem se tornar lacaios?

Adicionalmente, temos uma centro-direita dita esquerda que vive da nostalgia do boom dos commodities e churrasquinho sem politização, aproveita o desgoverno genocida como impulsão conciliadora moderada, não tem interesse em uma revolução prática da forma de encarar a política além da terceirização reformista despolitizante e da adulação a um projeto que só existe em executivo desconsiderando o legislativo e suas resistências, (além da própria composição do judiciário nomeado pelo presidente — o que pessoalmente acho bizarro, e daí que pros estadunidense é assim também? Não deixa de ser menos bizarro, na verdade até explica a própria bizarrice) de um líder messiânico que já é idoso e não é eterno, apesar de todas as várias conquistas indiscutíveis que trouxe, e que também teve seus podres na política de encarceramento e continuação de genocídio pela branquitude da ordem e do progresso, sem contar o passado conectado ao status quo político, reforçado ainda mais por suas alianças — muitos, inclusive, que foram golpistas de primeira hora e agora estão arrependidos e se tornaram socialistas, até usam o boné do MST. Aí me diz, se não é um plano perfeito pra quem odeia as injustiças do establishment ter que fazer campanha contra nomes simbolos dessa hegemonia? Aí me diz, porque falta tanta autocrítica pra ceder lugares para populações socioacêntricas? Quem quer construir um projeto de poder e quem quer construir um projeto de vida?

Sobra a elite do atraso latifundiária, que comanda a maioria dos lacaios identificados com a direita (que simplesmente foi engolida pelo nazifascismo frente ao tucanato decadente da Faria Lima), fica aquele lugar de sempre de querer entregar o país todo para os imperialistas, balançar aquele discurso de agro é pop, privatizar o pulmão da Mãe Terra e continuar o projeto etnogenocida, naquela ilusão de que a Amazônia é enorme em conciliação às críticas aos europeus predadores de sua biodiversidade da mesma forma que vende pra eles a madeira ilegal, repetindo que vai durar pra sempre a mata e sempre cabe um partido novo bandido ecocida da mineração pra trazer ouro pras offshores do ministro da economia sonegador, ou pra abrigar laranja na casa do advogado do homi da casa de vidro, quem sabe até pra perdoar ex-superministro inflável e delator justiceiro. Mas corrupção é só dos outros. Ah, mas a escala é diferente. Na luta contra a branquitude, a escala de corrupção é imbatível, mas que branco vai querer admitir que desfruta de uma sociedade que histórica, indireta e diretamente rouba seus patriotas que não tem a mesma cor de pele que ele? Ah, pessoas não-brancas são da pátria? Ele teria de admitir que o seu presidenciável favorito lhe rouba também? Parece ser um ciclo.

A esquerda cirandeira acredita que o "pobre de direita" que vota por eles não passa de um analfabeto político, esquecendo que o próprio termo é expressão de recalque da aristocracia, que queria ser europeia no passado, e agora um hooligan estadunidense, mas jamais será. Quem mais sábio do que o povo sabendo que não precisa ser tutelado porque eles mesmos sabem suas carências, vivem elas na pele diariamente. É o que disse a única candidata mulher disputando o Palácio dos Bandeirantes, Carol Vigliar. Ela chegou a pontuar em 4º lugar nas pesquisas para governadora, mas não foi chamada pros debates.

Pois devo dizer que escapa aos olhos dessa casta também supremacista e racista que ao menos a direita não esconde suas intenções e projetos de exclusão e destruição do país, enquanto o outro lado parece viajar na maionese que de um dia para o outro toda a estrutura opressora de trabalho e genocídio advinda da escravidão vai ser desligada com um interruptor com a chegada do bom velhinho milagreiro (isso se caso realmente seja essa a intenção dessa moçada ao votar nele), e que tem como vice o ladrão de merenda que adorava mandar a polícia fazer a favela sangrar. Sem contar que fazer um ministério dos povos indígenas não me engana: quero saber se vai ter autonomia pra peitar os latifundiários, propor a política de forma ampla pra além das dores coloniais também ocupando o Judiciário, a PGR, a mídia hegemônica cruzada e o incentivo para a continuidade da luta de rua, e se os originários vão ter carta indígena pra fazer política longe da branquitude, e não serem tutelados ou usados de token pra inglês ver. Nem sei se o inglês quer mesmo ver né, agora que morreu a rainha a roda tem que seguir, e acho que tem gente no Brasil de luto com ela até agora do que com um preto indo pra gaveta a cada 23 minutos.

É sério mesmo que a melhor estratégia foi tentar fazer o executivo sangrar com a CPI, desmobilizar manifestações democráticas antirracistas e abraçar parte do centrão latifundiário da mesma forma que a saída para vencer no país é despolitizar, aumentar o consumo e o individualismo na era da decolagem brasileira na capa da TIME?

Ora, isso não significa que entre a utopia burra e o pessimismo possível seja interessante abraçar o capeta. Temos que superar essa binariedade porque justamente ficar em silêncio é fortalecer quem não respeita as regras do jogo, seja qual cor use. A ideia é propriamente que o tal "pobre de direita" (e que inclui, pela classificação eurocêntrica, a própria classe média branca que não se racializa e não vê sua própria classe) não se identifica beneficiado por nenhum dos projetos, mas ao menos um deles ainda trás um ponto de identificação, ou vários, para sonhar: a manutenção de uma masculinidade tóxica enquanto resposta à crise de identidade cisheteropatriarcal global; o salvacionismo militar herdado do positivismo com toques do medo de uma guerra nuclear fomentada por uma elite mundial irresponsável e imbecil (e que jájá vai se mandar daqui e ter que colonizar outro planeta depois de destruir esse várias milhões de vezes com ogivas, isso se não conseguir a proeza de chegar ao aumento de 2ºC na temperatura); a promessa de manutenção de emprego pela dicotomia criada pela antipolítica necropolítica, genocida e nazista (na esteira do "não pense, trabalhe" vem aí o "trabalho liberta", arbeit macht frei) do combate à pandemia que justamente também ferrou nossa economia e que agora sai do buraco como se o homem lá da offshore da Disney tivesse feito algum milagre; a imagem de disrupção caracterizada pelo discurso golpista e os ataques ao STF dos martelo de juiz de doutô acima de tudo de Xangô e de Assis (que também não se ajuda, visto que adora manter seus penduricalhos e dar aumento chantagista pra si mesmo no mesmo dia qur o povo foi pra rua protestar pela 'democracia' mínima, ainda se sentindo um arauto da proteção constitucional — só que apenas quando convém, uma vez que a conspiração do Marco Temporal segue aí, e vamo ser sincero, achar que Alexandre de Moraes — o ex-advogado de Cunha que entrou nomeado por Temer após a morte no mínimo conveniente de Zavascki — é um democrata parece uma piada de mal gosto), e o falocentrismo da teocracia difusa, onde é possível ressignificar Jesus Cristo como um miliciano pornográfico da alt-right jacobita frente à estrutura quase centenária do pânico Plano Cohen.

Também não esqueço dos "radicais" que preferem lamber bota de ditador dito de esquerda do século passado lá no norte global do que olhar para abolicionistas, líderes quilombolas e indígenas e outros protagonistas descoloniais daqui na luta antimperialista de fato. Dizem que é mais fácil, talvez pela própria identificação com a masculinidade tóxica e da branquitude que faz alguns acharem que alguns ditadores são mais humanos que outros. Trotski faz falta, e Frida também, o que dirá então da noção que a categoria "humanos" (e sua primazia da necessidade de se mostrar homem como humano) precisa ser superada, uma vez que tem sido utilizada justamente para justificar o ecoetnogenocídio?

Saudades tenho mesmo é de Tybyra, Xica Manicongo e o Tamanduá Krenak de "É tudo pra Ontem" e seus ciclos de sonhos pra adiar o fim do mundo.

Uma crítica à branquitude antropocêntrica

Se queremos repensar a branquitude de maneira radical para derrubá-la, precisamos repensar como se constrói a supremacia do homem sobre outros homens. Precisamos pensar como uma categoria minoritária de forma de vida cria a construção social de humanidade (assentada, sobretudo no fenótipo configurante da racialidade colorista) para se sobrepor sobre a maioria das manifestações e formas de vida no planeta.

Pra além dos humanos tornados animais em arrobas, são os humanos supremacistas cedentos por justificar seus lugares hierárquicos que legitimam as as destruições da floresta e de formas de vida de bem viver pra criar pastagem pra gados e exportar água e nossas montanhas pra gringo, concentrando mais renda na mão de poucos em detrimento da fome, da morte e da destruição ecocida geral, o genocídio da população pobre, preta e indígena tornada animal, e, portanto, descartável, e a branquitude rica tornada humana, e, portanto, dominadora.

No Pantanal, as terras indígenas arrasadas pelo fogo

"Na visão de Freire, enquanto os animais são seres de contatos que se adaptam ao mundo e estão nele, os homens são seres de relações que interagem com o mundo na práxis e estão com ele. Em outro texto, ele completa a visão anterior, assinalando: Tanto os homens como os animais são seres inacabados, em relação a, ou em contato com, uma realidade igualmente 'inacabada'. Porém, os homens são seres conscientes de si mesmos e do mundo, ao passo que os animais são seres inconscientes de si mesmos e do mundo. A consciência é uma característica exclusivamente humana, de forma que os homens são 'inacabados' num sentido fundamentalmente diferente dos animais. . . . Enquanto o homem, ainda que condicionado pelas categorias de tempo e espaço, vive dividido entre o determinismo e a liberdade, os animais são absolutamente determinados por sua espécie e por seu próprio ambiente. Os homens não são apenas seres inacabados; reconhecem-se a si próprios enquanto seres incompletos, ao passo que os animais não são capazes de se fazer perguntas acerca de si próprios. A consequência básica da comparação feita por Freire, e que ele usa com maior frequência, é a de que os homens não são objetos, mas, ao contrário, Sujeitos criativos. Eles podem ser tratados como objetos por sistemas sociais opressivos, isto é, podem ser desumanizados, porém isso não altera sua vocação ontológica, que é a de ser Sujeito, consciente de si mesmo, que interage com o mundo e com outros homens" (LIMA, 2021, p. 31)

Aqui, Paulo Freire. O autor é um revolucionário por essência e nos ensina a nos educar mutuamente como processo intersubjetivo de reconhecimento dos homens. Entretanto, e justamente, algumas de suas premissas têm uma raiz que precisa ser questionável, visto que o próprio autor dizia que temia ser uma referência incriticável, e as críticas do feminismo afrodiaspórico de hook surgiram disso, apesar de um fandom do autor ter repudiado a escritora estadunidense por tecer críticas à teoria freireana, que só evoluiu em hooks, porque a própria autora se posicionava em uma teologia da libertação que comporta vários mundos e leituras não-competitivas sobre as contemplações das práxis.

"A diferença fundamental entre o animal, cuja atividade não vai além da mera produção, e o homem, que cria o domínio da cultura e a história através de sua ação no mundo, é que apenas o último é um ser de práxis. Um ser que cria e que se sabe um transformador e criador. O homem, em sua permanente relação com a realidade, produz não apenas bens materiais, coisas sensíveis e objetos, mas também instituições sociais, ideologias, arte, religiões, ciências e tecnologia" (LIMA, 2021, p. 30)

Apesar de Freire responsável pela transformação na forma de ver a pedagogia no mundo inteiro em relação à cultura e a comunicação, o autor errou em uma análise que cimentou a teoria da práxis como caráter antropocêntrico, o diferencial do homem em relação aos demais bichos. Com, efeito, tornou intocável a estrutura de predação do homem sobre o mundo, e a desconexão dele como parte do ambiente. Afinal, os demais bichos não produzem instituições sociais, artes, ciências e tecnologias? Alguém aí já viu como funciona um ecossistema de apiário?

"A concepção bancária da educação trava o diálogo e implementa a dicotomia homem-mundo. A libertação autêntica é humanização em processo e não uma coisa que se deposita nos homens. Na verdade, diz Freire, 'ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo'. Assim o é também para o processo de humanização, uma vez que é este o fim da educação verdadeira e dialógica. 'A concepção e a prática 'bancárias', imobilistas, 'fixistas', terminam por desconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens. Por isto mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma realidade que, sendo histórica também, é igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão'" (FREIRE, 2010, p.48–9)

Para Freire, uma das diferenças entre o homem dos outros bichos "apenas inacabados" é a ação-reflexão de seu pensamento. Apesar de seu nome ser inconteste (e com muito mérito), de forma arrogante, infelizmente, o pedagogo supõe que os demais bichos, e até outras formas de vida que não animal, não refletem sobre o ambiente que vivem, dando a entender que parecem se comportar de maneira automática, irreflexiva, aleatória e até determinista. Enquanto isso, homens, senhores do mundo que desfrutam amplamente da desigualdade que essa teoria se nivela, se sabem inacabados, detém de forma suprema a forma de criar e reiventar tecnologias, editando a natureza da qual não se sentem parte, implicando que podem nomear o que pode ser mudado, excluído e até destruído. Como rebate, com perfeição, Ailton Krenak:

“A ideia dos Krenak sobre a criatura humana é precária. Os seres humanos não têm certificado, podem dar errado. Essa noção de que a humanidade é predestinada é bobagem. Nenhum outro animal pensa isso. Os Krenak desconfiam desse destino humano, por isso que a gente se filia ao rio, à pedra, às plantas e a outros seres com quem temos afinidade. É importante saber com quem podemos nos associar, em uma perspectiva existencial mesmo, em vez de ficarmos convencidos de que estamos com a bola toda. Foi esse ponto de observação que me fez afirmar que nós não somos a humanidade que pensamos ser. É mais ou menos o seguinte: se acreditamos que quem apita nesse organismo maravilhoso que é a Terra são os tais humanos, acabamos incorrendo no grave erro de achar que existe uma qualidade humana especial. Ora, se essa qualidade existisse, nós não estaríamos hoje discutindo a indiferença de algumas pessoas em relação à morte e à destruição da base da vida no planeta. Destruir a floresta, o rio, destruir as paisagens, assim como ignorar a morte das pessoas, mostra que não há parâmetro de qualidade nenhum na humanidade, que isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade.” (KRENAK, 2020, p. 41–3)

O pensamento supremacista por trás do antropoceno da branquitude não podia ser mais um engano, uma vez que os ecossistemas estão todos conectados, e o Planeta Terra é um ser vivo. Não é o planeta que nos pertence, nós pertencemos ao planeta. E que arrogância europeia do fenótipo e de suas projeções exclusivistas de achar que sabe o que o outro pensa e reflete com esse olhar destacado da natureza como se não a sentisse te alimentando com água, ar e comida vindo dos territórios originários bem como tantas outras formas de energia?

“O século XX, com todas as suas guerras, demonstra bem isso. Foi preciso fazer uma espécie de armistício, porque nos armamos a tal ponto que seríamos capazes de destruir o planeta — várias vezes. Se nossa técnica nos levou a isso, de fato já demos prova suficiente de nossa desqualificação, de nosso abuso dos outros seres: todos estão ofendidos com a nossa grosseria. Se estamos envergonhados com o que aconteceu no nosso país, na biosfera há milhões de seres olhando a nossa baixaria e perguntando: 'O que esses humanos estão fazendo?'. Estamos vivendo uma tragédia global. Mesmo que alguns coletivos humanos pensem para além da linha-d’água, são apenas uma amostra grátis dessa humanidade. Precisamos evocar, do meio disso, alguma visão para sairmos desse pântano.
Isso que as ciências política e econômica chamam de capitalismo teve metástase, ocupou o planeta inteiro e se infiltrou na vida de maneira incontrolável. Se quisermos, após essa pandemia, reconfigurar o mundo com essa mesma matriz, é claro que o que estamos vivendo é uma crise, no sentido de erro.” (KRENAK, 2020, p. 43–4)

Ademais, por mais intencionado que seja esse pensamento é herança da raiz "iluminista" que justifica toda a predação do homem na Terra, uma vez que pela tutela da práxis, a supremacia se legitima, já que temos uma melhor compreensão do mundo à nossa volta. É como se nos descolassemos dele. Dessa casta, elegemos que somos mais humanos como se humano fosse uma qualidade. Dessa qualidade escolhemos quem é mais humano. Competimos pra fazer parte desse humano. Nos destruimos destruindo aquilo que nos constituem além humano em nome do próprio título de humanização que só dá o passaporte pra destruir mais.

“Mas, se enxergarmos que estamos passando por uma transformação, precisaremos admitir que nosso sonho coletivo de mundo e a inserção da humanidade na biosfera terão que se dar de outra maneira. Nós podemos habitar este planeta, mas deverá ser de outro jeito. Senão, seria como se alguém quisesse ir ao pico do Himalaia, mas pretendesse levar junto sua casa, a geladeira, o cachorro, o papagaio, a bicicleta. Com uma bagagem dessas ele nunca vai chegar.”

Ora, o ser humano não tem nada de especial. Minha avó costuma acertar quando pontua que somos o pior bicho nesse planeta, uma espécie de praga. A julgar pelo todo novo normal que estamos revivendo em prol da covardia da branquitude antropocêntrica, de esquecer dos que morreram e foram assassinados pelo genocídio, da falta de sensibilidade canalizada para compra de voto e transferência do ódio e do conspiracionismo contra toda forma de vida considerada diferente diante de nossa supremacia julgada por fenótipo e legitimada por um pensamento dito racional, esclarecido, e, como vimos em alguns casos, até na tentativa de ser libertador, parece que temos a governabilidade que merecemos, mesmo não merecendo-a.

“Vamos ter que nos reconfigurar radicalmente para estarmos aqui. E nós ansiamos por essa novidade, ela é capaz de nos surpreender” (KRENAK, 2021)

"Racismo é um câncer estrutural
Esse fato não depende da sua opinião
Ou você coopera com essa estrutura
Ou você ajuda na demolição"

Portanto…

Numa decisão histórica que o Brasil precisa fazer pra além das eleições, o povo brasileiro precisa sinalizar se vai querer continuar nessa tutela da branquitude antropocêntrica que na primeira crise se aglutina em autopreservação em torno do salvacionismo que supostamente lhe confere supremacia e o passar de pano pros erros de suas categorias — dando a entender de que quem não está alinhado merece sumir, ou se decide que vai apostar mais alguns anos ignorando planos de radicalidade em nome dos governos de conciliação de classes e vices dessa suposta democracia que em seus setores elitistas também vê o povo como gado e não abre mão de sua biografia e centralidade decisórias supostamente redentoras — também não sendo tão menos violenta, visto que é parte do que sustenta o discurso da democracia racial.

É pra além da binariedade que essa polarização assimétrica nos pede.

À excessão daqueles que já venderam a alma para o cramulhão (garimpeiros, milicianos e aquela galera média de bem que passa o dia ouvindo e vendo Jovem Pan), ou que já receberam dinheiro do auxílio emergencial (ignorando que quem o aumentou foi o Congresso encabeçado por olhares preocupados com o social), o brasileiro médio não ama seus algozes porque seria supostamente analfabeto político (e aqui há que se problematizar o analfabetismo como inépcia cognitiva, visto que minha avó — a que afirmou que o ser humano é o pior bicho desse planeta — é analfabeta e se formou uma sujeita incrível na escola da vida de seu jardim).

Dada essa estrutura de supremacia e castas antropocêntricas da branquitude, o eleitor se identifica no ódio àqueles bons mocinhos que teorizam o politicamente correto em sua timeline goodvibes mas praticam a exclusão elitista, racista e hipócrita (às vezes tão mais, tantas até pela desconexão mútua da natureza entre ambos), principalmente em uma estrutura de formação política fabricada para ampliar seus medos e ansiedades, sobrando o expurgo na imagem do "bom velhinho" que capitalizaria a ideia de mal supremo e origem de todos os malefícios políticos, o que os faz nutrir a ilusão que entregando-lhe a cabeça a opressão vai sumir.

É claro que essa teoria não se sustenta por nenhum olhar multidisciplinar, mas a questão é essa: quem tem acesso a esses olhares está, em maioria estrutural, ocupado de mais mantendo a estrutura cognitiva da branquitude, tá aí defendendo misoginia superficial transfóbica em nome de seu suposto feminismo, tá aí achando que sabe o que é bom pra todo mundo porque viu 3 vídeo na internet, tá aí chamando o povo de burro, adulando o nordeste quando convém, e/ou citando povos indígenas sem buscar entender a complexidade de seus pensamentos porque tava antes ocupado favoritando seu deputado branco 'radical' que não foi eleito. Ou foi também né, a galera progressista parece só lembrar que existe o Suplicy na hora de votar. Só não supera o que o eleitor sudestino e/ou sulista separatista lacaio do imperialismo ou o eleitor do tiririca que acha estar protestando quando dá voto pra sigla do centrão. Teria sido melhor votar em branco, peraí, de certa forma o fez. Sei lá.

E aí esse ciclo se repete infinitamente. Enquanto a esquerda da suposta cidadania não despertar para suas próprias contradições com a florestania e não voltar para a base quilombista de fato — a própria práxis antirracista e de bicharia com a Mãe Terra — , vai continuar ignorando que está jogando no campo adversário, com a bola do adversário, o juiz comprado pelo adversário e mais da metade dos jogadores e jogadoras faltando. Enquanto isso, a direita compra mulheres candidatas laranja, pretos racistas (sim, existe) e até indígenas garimpeiros (é, triste), usando a confusão do lugar de fala e da representatividade de uma esquerda, que sequer consegue ser esquerda de fato pra além da modernidade eurocêntrica, para aumentar ainda mais a assimentria de poder, (Damares Alves usando rosa e Sergio Camargo e a síndrome de capitão do mato que o digam).

Ai, to pegando pesado com a esquerda? Ora, já segurei muito em nome do menos mal. E alguém tem que fazê-lo, é um privilégio que precisa ser democratizado, antes que a gente não tenha nem democracia, nem liberdade para falar o que realmente pensamos. A diferença é que autocensura não é mandato, pelo menos não ainda. Pra mim, fortalecer o nazifascismo de hoje é deixar essa esquerda-pinguela de Temer acrítica em nome do menos pior. O menos pior foi escolhido em governabilidade já, a casa já foi pro brejo. Não é que fomos derrotados, é que perdemos de WO, e vamos continuar perdendo se continuarmos achando que o povo é burro e não vai perceber contradições evidentes.

Não pretendo me mostrar melhor do que ninguém nesse desabafo. Não quero me reafirmar ou ficar buscando ser mais radical ou criar a primazia de radicalidade. Estou tão perdido quanto todos que critiquei aqui. Uma das poucas certezas que tenho é que esse país não vai mudar do dia pra noite, e que precisamos de um trabalho coletivo, de formiguinha, e que honre nossos ancestrais na busca por justiça. Uns mais outros menos (a depender das lentes que usamos), estamos todos tentando sair da lama e entender o que aconteceu, depois de tanto sofrimento no país, para termos encontrado uma consciência política tão cagada, tão insensível, tão disposta a voltar pra mão autoritária. A impressão é que voltamos a um novo normal da falta de memória, com pitadas ainda mais autoritárias de resolver o medo sentindo mais medo, e que a morte de centenas de milhares de pessoas foi em vão. De alguma forma, penso que é um pouco disso, e que ao mesmo tempo tem tantas outras perspectivas que não conseguimos enxergar agora por força do tempo, da mesma forma que vejo que o resultado desse primeiro turno é também, como vários outros pontos, um recado de que precisamos reinventar a radicalidade, e os próprios critérios que a julgamos — inclusive, aplicando radicalmente isso para os próprios críticos que por vezes jogam pedra só pra tirar o seu da reta e não assumem o próprio sistema de injustiça que sustentam e só criticam pra tentar esquecer de suas contradições. É um equilíbrio fodido em um sistema desequilibrado. Mas não significa que possamos tentar. De novo e de novo. Podemos fazer isso o dia todo. Temos que fazê-lo.

Precisamos urgentemente voltar pra casa, voltar pra base, entender onde verdadeiramente erramos pra não corrermos o risco de ter que entregar o país nas mãos de gente ainda mais prestigiada para manter seu despreparo, desgoverno e destruição. E engana-se quem pensa que sob nova direção, vai tudo mudar magicamente com merendas e bessias redentores, ou que assumindo um novo governo precisamos anular a crítica porque é em nome do menos pior que tem sido a lógica do voto a não sei quantos carnavais. Precisamos continuar mobilizados, precisamos esperançar, pra além da micaretagem de hashtag, pra além da hipocrisia diária, pra além de todas nossas dores. Nessa passagem, a saída são várias. Em uma delas, vejo a desconstrução da branquitude. Pra ela, creio que todes nós precisamos nos empoderar, mas não de forma narcísica e egocêntrica como as redes nos fomentam com a deseducação política do agenda setting algorítimico.

Não acredito que Bolsonaro e Lula são dois lados da mesma moeda. Analisar com um olhar binário e simplista esse entendimento seria reforçar a própria branquitude, uma vez que temos de um lado um neonazista que sequer reconhece os prejuízos da escravidão no Brasil, e do outro um ex-presidente que combateu diversas questões de desigualdade racial (ainda que uma forma conciliadora e não-radical). Entretanto, a branquitude é uma questão estrutural que é atravessada e reforçada por ambos os nomes, visto que não cedem espaços para protagonismos antirracistas se não pela tutela, redução de danos e até o fomento às próprias opressões pelo etnogenocídio da falta de demarcação de terras e de sua preservação, estímulo ao garimpo ilegal e desmatamento da maior floresta tropical do mundo. O custo disso tudo é muito mais do que uns números na urna. Estamos falando de vidas. Muitas vidas que a noção de humano esquece, e suas categorias racistas fenótipicas são incapazes de imaginar.

O mapa eleitoral e o fogo na Amazônia

Toda essa estrutura está intimamente ligada à noção de humanidade, a categoria que transcreve ela e que funciona como cilada para populações socioacêntricas que em linhas gerais buscam se reafirmar humanes para participar dessa governabilidade. Entretanto, ao tentarmos integrar esse clubinho, repetindo suas lógicas de exclusão, sem dar espaço para outras formas de vida e sem a tentativa de desconstruir a própria supremacia antropocêntrica, a armadilha da supremacia humana, galgada inexoravelmente pelo prisma eurocristão monoteísta da branquitude, não apenas determina de forma fixa a nossa exclusão (a ser mudada apenas se adotarmos o pensamento da branquitude), ela justifica o arcabouço ecocida e usa as corpas cooptadas a seu bel prazer em seu plano de poder.

"Considerar como contribuições importantes no debate antirracista e anticolonial as perspectivas guarani e indígenas como um todo, envolve abandonar um certo centramento no humano (e de um determinado humano) como ponto de partida e chegada das reflexões. As consequências das críticas indígenas convocam não apenas a uma ressignificação do que é mente e corpo, natureza e cultura, selvagem e civilizado, humano e animal, mas a uma desistência/desobediência ao binarismo que as formula. Percebemos, assim, que da mesma forma como o negro, o indígena, o amarelo, o cigano foram inventados como 'outro' genérico do branco e este, por sua vez, feito o símbolo genérico do humano, também a natureza é o outro da cultura e o animal o outro do humano. Se como destaca Fanon (1968) 'precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado', também precisamos da mesma coragem para compreender que é o humano que cria o animal. Digo não no sentido de que o humano tenha poder para criar os animais literalmente, mas justamente porque o que se inventa nesse gesto é uma caricatura, necessariamente homogeneizada e reduzida, que jamais dará conta da multiplicidade dos demais seres" (LONGHINI, 2022, p. 106)

Temos que mudar isso daí, e olha que nem Freire escapou dessa armadilha, apesar de todos seus méritos para hoje buscarmos ferramentas para nos reconectarmos com outros homens, mulheres, populações, fauna e flora relegados à alteridade colonial. Ainda bem, alguma coisa ele tinha que errar, é um humano como qualquer outre, e também inacabade como todes nóiz, o que ameniza ainda mais essa urgência capital, individualista e competitiva de buscar o mais libertador, o especialista em práxis e diálogos com base. A dificuldade e complexidade disso tudo não significa que não possamos mudar e mostrar que as ditas minorias e defensoras dos direitos humanos são maiorias defensoras de toda a vida na Terra. Quem tem que se adaptar são as minorias mesmo, mas aquela casta 1%, que caso não desperte, vai fazer todes nóis sapiens (e tantos outros bichos, bichas, fauna e flora) desaparecer. Podemos todes ter diferenças ideológicas, mas o combate ao racismo ambiental e a proteção das terras originárias são emergências para a vida, de forma que, em outro momento em que não estejamos como refugiados climáticos, possamos exercê-las. É um plano de vida suprapartidário que garante a própria política, ou ausência dela a quem convém.

"Nesse ponto, as próprias alternativas antirracistas indígenas irão à contramão do humanismo e de uma ressignificação do humano como algo positivo e do 'desumano' como negativo, desistindo assim da chantagem que essa inclusão aciona, marcadamente, o rebaixamento dos demais parentes não humanos. Se para este Humano branco universal, as principais ofensas aos 'não tão humanos assim' se faz na associação destes com animais, chamando-nos de cavalos, macacos, vacas, galinhas, porcos, cobras, respondemos: sim, todos esses seres são nossos parentes e nos assemelharmos a eles não nos é vergonha ou ofensa alguma, pelo contrário. Aliás, o recalcamento que a branquitude faz silencia o fato de que também as pessoas brancas são igualmente 'parentes' dos macacos e dos demais bichos" (LONGHINI, 2022, p. 106)

Me senti profundamente culpado quando vi o resultado do primeiro turno. Não apenas as derrotas na governabilidade, me senti culpado porque não votei em Lula no primeiro turno como minha bolha me forçava em cada timeline e conversa de vira voto. Jurei pra mim mesmo que aquele momento com a urna me assopraria alguma consciência. No fim, foi o 16 que apertei. Por Vera Lúcia, por Raquel Tremembé e as pautas que tento trazer aqui à luz desse momento e oportunidade para refletirmos sobre estruturas e instituições. O voto foi pelo antirracismo interseccional, que foi derrotado apenas parcialmente aqui, visto que ele também têm embates em outras esferas da política que não só eleitoral. Também, porque o primeiro turno tem que ser nossa expressão mais identificada de representatividade, de quem vemos não como útil, mas como natural a desempenhar as funções que esperamos, é pelo voto natural, onde tudo é natural, e não pela ótica utilitarista. Sei que esse pensamento generalizado poderia ter fragmentado a esquerda a ponto do nazismo ganhar de novo — e que, também, desfrutei de um privilégio da branquitude ao optar pela escolha, ainda que o situe em um voto radical por sobrevivência cosmogônica — , mas não foi o que aconteceu. Os votos nos radicais não mudariam a eleição, como os petistas tanto alardearam. Entretanto, cada um dali das várias regiões do país, se caso se unissem em um ato de rua propositivo, fariamos história, e pra além dessa "democracia" eleitoreira.

Pra além das campanhas (urgentes) que precisamos fazer para virar o voto de tebetistas, ciristas e os desiludidos e/ou com medo, precisamos fazer uma autocrítica ampla e irrestrita, profunda, crítica em nós mesmos e sem essas brisa errada de supremacia, competição, individualismo e violência, democratizando todas as formas de ver a vida, também indo pra rua, por consciência, por um país realmente de mudança e justiça, e não de terceirização e messianismo. Em tempos de linchamentos virtuais-reais, onde as deep old fakes da tutela extrativista pautam e financiam a política, precisamos encontrar lentes para ler além das binariedades para o que realmente é progresso para o país.

Assumir que somos todos racistas transfóbicos antropocêntricos em desconstrução, alguns mais ou menos que outros, é importante. Não é para nos sentirmos mais desconstruídos que outros ou nos orgulharmos de nossas deformidades socio-éticas como fazem os neonazi, mas para diagnosticar neuroses e patologias cognitivas para que possamos medicá-las com realidades concretas verdadeiramente salvadoras, para curarmos a todes nóiz, nossas afetividades e sociopolitizações.

Porque as pessoas não são más, elas só estão perdidas. Todes nóiz.

Ainda há tempo.

Referências Bibliográficas

BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

FREIRE, Patrocínio Solon. "Pedagogia da Práxis": O Conceito de Humano e da Educação do Pensamento de Paulo Freire. Tese Mestrado Educação. Recife: UFPE, 2010.

KRENAK, Ailton. A Vida Não É Útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

LIMA, Venicio A. de. Comunicação Libertadora no Século XXI. Revista MATRIZes. v. 15 nº3, 2021.

LONGHINI, Geni Daniela Nuñez. Nhande ayvu é da cor da terra: perspectivas indígenas guarani sobre etnogenocídio, raça, etnia e branquitude. Tese Doutorado Interdisciplinar Ciências Humanas. Florianópolis: UFSC, 2022.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. Rio de Janeiro: Global, 2014.

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