Os inventores do espelho.

A filosofia da vida — Parte 3.

JuniorJunior
5 min readFeb 19, 2023

Eu te vejo se observando, se contemplando, se admirando em cada reflexo que aceite as suas paixões por si mesmo. Eu te vejo se procurando nos espelhos de todo canto com esse olhar curioso e vaidoso que te engana ao alimentar a ilusão de que você é aparência. Me é estranho esse seu disfarce, esse seu desejo desesperado de modificar seus traços e seus detalhes únicos por rejeitar os desenhos da sua própria natureza e se esconder sob o discurso de padrões que você ajuda a criar e manter, mesmo que não faça parte de você. Eu te vejo copiar o mundo por imaginar que só assim todo mundo irá te perceber. É lamentável você se abandonar para se fantasiar do que você não é!

Estamos perdidos? Por que nos procuramos tanto por todo canto?

Sim, estamos perdidos, mas não por não sabermos onde estamos e sim por já não sabermos mais quem somos. Estamos constantemente necessários de ver a nós mesmos para confirmar se os adornos da nossa fantasia continuam no lugar. Tudo se tornou espelho e nosso olhar rejeita todo reflexo que não oferece nossa própria imagem. A vaidade exacerbada que nos motiva diariamente a realizar todo tipo possível de transformação, e, que nos causa profunda insegurança sobre os resultados de tudo que mudamos, não está apenas nos deformando esteticamente, está também se expandindo e penetrando em todos os “setores” da nossa vida. Nosso olhar se tornou apaixonado e estamos prestes a nos afogar em nosso próprio reflexo. Nossos ouvidos se tornaram seletivos e só ouvimos aquilo que repetimos. Nossos olhos foram engaiolados, dilatados, impedidos de ver além de nós mesmos. Transformamos a beleza em um produto consumível e a opinião em uma verdade absoluta. Nunca fomos tão ridículos e tão hipócritas.

Nós nunca fomos tão feios!

“O importante é o conteúdo”, dizíamos há pouco tempo. Hoje, por outro lado, o conteúdo pode e é tão facilmente manipulado e distorcido que praticamente perdeu a importância. Nos tornamos consumidores de “embalagens” e por isso estamos vazios. Mas de onde veio essa obsessão? Quais foram as sementes que germinaram em nós essa loucura que nos atira nos abismos da futilidade? Por que rejeitamos tanto aquilo que não é um reflexo que gostamos de ver?

Espelhos não são janelas, não podemos ver nada que existe além dos seus limites e direção. Espelhos mostram apenas aquilo que está diante deles. Espelhos são ecos.

Nós inventamos o espelho para fugir da realidade que não podemos mais suportar, que não sabemos mais absorver e interpretar, na qual não conseguimos nos encaixar. A realidade pode ser assustadora quando percebemos que toda nossa primeira referência parte de nós mesmos e o receio de não sermos suficientes em comparação a tudo aquilo que podemos ver, nos faz duvidar. A solidão que sentimos ao perceber isso poderia ser instrumento de contemplação pessoal, mas justamente pela falta de conteúdo, ao constatar que não somos como aquilo que assistimos e que nos agrada, encontramos nos reflexos de nós mesmos uma infinidade de espaços vazios que distorcem nossa percepção de existência. Tudo que eu vejo, tudo que eu acredito, tudo que eu penso, falo, escolho, faço… Tudo que sai de mim é só meu, mas como eu não sei de mim, como não me conheço, não sou crente de minhas próprias certezas, busco no que me parece completo as partes que me faltam.

Mas as partes que me faltam, me faltam e continuam em falta se não forem genuinamente conquistadas ou absorvidas. Se eu copio do outro aquilo que eu imagino caber em mim e corresponder aos meus anseios e interesses, tudo se torna adorno, tudo se torna eco. Eu não me transformo em algo, eu apenas aparento ser algo e por ser aparência, por ser mera embalagem, a repercussão que minha fantasia pode atrair me causa insegurança e é pelo desespero de não estar completo, de não estar certo, de não estar representando adequadamente o que eu desejo que surge em mim uma insegurança tremenda que me obriga constantemente confirmar se tudo está no lugar, se está tudo funcionando como arquitetado. E é por isso que eu busco comprovação no outro.

Perceba então o ardil; uma vez que não sei de mim, me imagino em fantasias que extrapolam minha própria realidade. Busco no outro aquilo que eu sinto ser passível de me completar e pela metamorfose degradante de mim mesmo crio revestimentos de ilusão para me disfarçar. Com receito de não ser eficiente em minha fantasia, me aproximo de olhares que eu sei serem distorcidos como o meu e em uma legião de mesmos eu aceito a aceitação que eles me oferecem esperando que eu retribua da mesma forma; eu sou o espelho daquele que me é espelho e juntos não vemos nada que esteja fora de nossas molduras patéticas.

Tudo é igual nessas pequenas tribos de reflexos apaixonados e míopes; as mesmas cores, os mesmos sabores, os mesmos odores, o mesmo discurso, a mesma opinião, os mesmos ídolos, as mesmas críticas… e tudo que for diferente é rejeitado, rechaçado, criticado e proibido.

Somos tão medíocres que soubemos estabelecer formas de evitar qualquer tipo de apontamento e julgamento; eliminamos a parametrização das diferenças e criamos a diversificação de “estilos” com a proteção do senso de “liberdade” absoluta para ser diferente com estilo próprio. Quanto mais extravagante, mais estiloso. Quanto mais ridículo, mais inovador. Quanto mais estranho, mais inspirador.

Se esteticamente estamos amordaçando nossos corpos com roupas que não nos cabem, sufocando nossos poros com densas camadas de “corretivos”, tingindo nossos olhos com lentes horríveis coloridas… etc, no que diz respeito a comportamento, opinião e escolhas, estamos agindo como rebanhos adestrados pelo acaso. Estamos constantemente imaginando a expansão de nossa sala de espelhos e por discursos absolutamente vaidosos nos fazemos de vítimas; somos oprimidos por uma sociedade que não nos aceita por sermos diferentes. Mas quem é essa tal sociedade que aparentemente não aceita ninguém? Se fechados por nossas molduras somos incapazes de aceitar qualquer diferença que não caiba em nossos espelhos, não somos também algozes de outras vítimas?

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JuniorJunior

Eu escrevo o que penso e como penso, pois as páginas em branco não me recebem com orgulho e pré-conceitos. Eu escrevo, pois conversar se tornou um drama!