Quem foi Renato Guttuso?

Larissa Silva
6 min readJun 11, 2020

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Protagonista da arte neorrealista italiana, Renato Guttuso já não é mais tão lembrado nos dias de hoje. Por isso, trago aqui um pouco dos seus talentosos trabalhos.

Autorretrato (1936) — Renato Guttuso

Renato Guttuso nasceu em Sicília, Itália, em 1917. Cidade cujo artista é declaradamente apaixonado, como vemos em muitas de suas telas. Seu pai era agrimensor, mas pintava aquarela nas horas vagas. Talvez seu interesse pela arte tenha partido daí.

Outra importante características herdada pelos seus pais foi o forte antifascismo. Sua adolescência é cheia de estímulos, graças aos ambientes artísticos frequentados e às ideias liberais de seu pai em contraste aberto com o regime da época. São essas experiências que o levarão a desenvolver uma concepção abertamente antifascista da vida, tornando-o o porta-voz mais eticamente comprometido da jovem geração de artistas do grupo “Corrente” — grupo de intelectuais decididos a lutar contra a moral alienante do regime fascista.

Seu ideal socialista é expresso por meio de um estilo expressionista realista vindo de uma Sicília contraditória e atormentada, cuja exacerbação emocional e resignação ele imprimirá nas suas melhores telas. Ao mesmo tempo, suas obras capturam uma denúncia social feroz que carrega consigo a esperança de uma mudança nos aspectos mais injustos da sociedade.

“Shooting in Rome”, da coleção “Got mit Uns” (1944)

Sua arte busca conciliar a verdade e a atualidade dos temas com um estilo puramente realista e incisivo que pode ser usado por todos, para que as pessoas comuns, socialmente dominadas pela injustiça, possam ser abaladas pelo torpor submisso. Não por acaso, suas melhores pinturas parecem emitir o grito de dor das classes sociais mais fracas e oprimidas.

Segundo o artista, para uma obra estar viva é necessário que quem a crie tenha raiva. E é essa raiva que deve ser expressa com fúria dentro de uma tela.

“Agricultores trabalhando”, 1950 — R. Guttuso

A corrente expressionista que surgiu no início do século XX é caracterizada pela exasperação dos contrastes, mas Guttuso vai além disso quando ele não apenas privilegia as emoções como também enfatiza a própria realidade manisfestada em cores e detalhes crus.

Um exemplo marcante da obra de Guttuso pode ser encontrado na pintura “O tiroteio no campo”, apresentado em 1938. A pintura representa a matança pelos falangistas de Franco do conhecido poeta Federico Garcìa Lorca. Inspirado em “Três de Maio de 1808 em Madid”, de Franscisco Goya, que havia contribuído com seu trabalho para mostrar a ferocidade e a crueldade presentes em todas as guerras de ambos os lados, Guttuso também adota o esquema de composição.

“Atirando no campo”, 1938 — R. Guttuso
“Três de Maio de 1808 em Madrid”, 1814 — Francisco Goya

Outro grande exemplo do expressionismo agressivo de Guttuso é a tela “Fuga do Etna”, em que o artista retrata, com efeitos cromáticos, uma cena trágica na cidade de Sicília. A pintura tem como base uma mensagem principalmente sócio-política, mas o pano de fundo da pintura é a Sicília, em particular o Etna.

O tema da pintura é uma cena apocalíptica: as pessoas fogem durante a erupção do Etna e o caos que gera pode ser facilmente comparado à condição de submissão da Itália ao regime fascista entre os anos 30 e 40. No entanto, o objetivo do pintor era mais provocar um sentimento de rebelião naqueles que o viam, manifestando sua dissidência contra o regime e enfatizando a vontade do homem de se salvar e sobreviver a eventos catastróficos.

“Fuga do Etna”, 1940 — R. Guttuso

Nessas telas, fica evidente que Guttuso não está interessado em procurar beleza e espetacularidade. Ele simplesmente quer mostrar a realidade ao mundo, por mais odioso e insuportável que possa ser. É uma revolta artística apaixonada cujas principais referências culturais são, Vincent Van Gogh , Eugène Delacroix, Gustave Coubert e, principalmente, seu grande amigo Pablo Picasso.

Talvez o homem que teve mais impacto em mim tenha sido Picasso , também como uma pessoa com quem sou amigo. Ele era um homem extremamente vitalizador. Quando você estava com ele, uma noite, para almoçar, algumas horas, para ver suas obras com ele, saía enriquecido, excitado, quase fertilizado.” Guttuso sobre Picasso.

Umas das principais referências a Picasso nas obras de Guttuso é em seu quadro mais conhecido: “A Crucificação”. Uma vez que a posição que o cavalo se encontra nessa tela nos remete ao quadro “Guernica” de Picasso, fazendo uma forte alusão ao tema de repúdio às consequências das guerras, em que ambos os quadros propõem. (Mais sobre essa obra aqui.)

“Crucificação”, 1940 — R. Guttuso
“Guernica”, 1937 — Pablo Picasso

O compromisso político foi, sem dúvidas, o elemento mais característico da pintura de Renato Guttuso. Sendo ele próprio muito envolvido na política, era quase impossível que esse fator não aparecesse em suas realizações artísticas. No final dos anos 70, Guttuso teve a oportunidade de entrar na política em todos os aspectos, obtendo a posição de senador da República Italiana como expoente do pórtico comunista italiano. O vínculo com o PCI começou, no entanto, já na década de 1940.

Fundamental para entender o envolvimento político de Guttuso é o quadro “O funeral de Togliatti” . Pintado em 1972, tornou-se um verdadeiro manifesto do anti-fascismo do pós-guerra. Nele existem muitos caracteres simbólicos do comunismo presentes, mesmo que de maneira anacrônica, no funeral do secretário geral do PCI Palmiro Togliatti. Na multidão, você pode ver mais de 140 figuras importantes para a esquerda marxista.

“O funeral de Togliatti”, 1972 — R. Guttuso

Com a sua paixão pela cidade que nasceu, Guttuso também pintou outra das suas obras mais conhecidas “La Vuccirìa”, criada pelo artista em 1974. A pintura confirma o realismo bruto do pintor e o senso de cor que mostra as carnes expostas no famoso mercado de Palermo. O impacto, como acontece em quase todas as suas pinturas, é bastante traumático, mas torna o aspecto do arabesco inerente à cultura siciliana, cercado pelos gritos e cantos dos vendedores do mercado antigo. Como ele aponta: “Não é uma imagem nem uma série de imagens. É uma síntese de elementos objetivos e definíveis, de filas e pessoas: uma grande natureza morta com um túnel no meio, onde as pessoas fluem e se encontram”.

“La Vuccirìa”, 1974 — R. Guttuso

Fora da categoria social, outra paixão do pintor era o universo feminino, sobretudo a sua mulher, Maria Luisa Dotti, a quem ele dedicou muitas de suas pinturas.

“Mimise a dormir”, 1941 — R. Guttuso
“Van Gogh leva a orelha cortada ao bordel de Arles”, 1978 — R. Guttuso
“Ainda Vida”, 1958 — R. Guttuso

Enfim, isso é só um pouco do legado que esse grande artista nos deixou. Busquei registrar essas obras aqui mais porque, ao fazer uma pesquisa sobre o autor, não encontrei quase nada em sites brasileiro e, ao descobrir a riqueza das obras desse artista, me propus a escrever esse breve relato.

As principais obras de Guttuso encontram-se no Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Roma.

Mais sobre Renato Guttuso aqui: www.guttuso.com

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Larissa Silva

Arte: História, Crítica e Curadoria da PUC-SP. Paulista, 27 anos.